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ACÓRDÃO N.º 882/2024

 

 

PROCESSO N.º 1078-B/2023
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 

I. RELATÓRIO
Augusta João Afonso, melhor identificada nos autos, veio, nos termos da alínea a) do artigo 49.º e 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade da decisão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo nos autos do Processo n.º 2622/19 que confirmou a decisão da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda, julgando improcedente o recurso interposto pela Recorrente.
Para o efeito, a Recorrente alega, em síntese, o seguinte:

1. O douto Acórdão do Tribunal Supremo, assenta no erro, vindo já da sentença da 1.ª instância, de equiparar autonomia de facto entre os dois pisos do edifício principal com autonomia jurídica imobiliária traduzida no reconhecimento conservatorial de um e outro andar como fracções autónomas, logo imóveis, dentro do regime de propriedade horizontal.

2. O douto Acórdão vem, por um lado, reconhecer o direito de propriedade da ora Recorrente sobre o imóvel no seu conjunto, inclusão feita das suas benfeitorias (anexos), mas, por outro lado, contradizendo-se, vem negar ao titular desse direito de propriedade o seu próprio "conteúdo", traduzido nos "direitos de uso, fruição e disposição" aqui, uso e fruição (artigo 1305.º do Código Civil) da coisa que é objecto desse direito de propriedade.

3. Em aberta oposição ao referido Acórdão, o artigo 1306.º, n.º 1, também do Código Civil, sob a epígrafe "Numerus clausus", descreve incontornavelmente, “Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional.” (sic).

4. No caso em apreço, por via judicial (não negocial), foi imposta ao direito de propriedade reconhecido judicialmente à Recorrente uma restrição desmedida ao uso e fruição desse direito de propriedade.

5. Com atinente explicitude absoluta, na Secção de "Defesa da propriedade", sob a epígrafe "Acção de reivindicação" descreve o artigo 1311.º do Código Civil: “1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.

2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei.” (sic)

6. O Acórdão recorrido fez exatamente o contrário do que manda fazer o supratranscrito n.º 2 do artigo 1311.º do Código Civil, ou seja, reconheceu o direito de propriedade a quem declarou ser seu titular (a Recorrente), mas recusou-se a condenar a contraparte (Recorridos) na restituição da coisa havida como objecto desse direito de propriedade. Portanto,

7. Os Juízes criaram direito novo desprezando o direito expresso vigente. Por outras palavras, evitando eufemismos de reverência,

8. "In casu ", os juízes, titulares do Poder Judicial, "tomaram de assalto" o Poder Legislativo, único Poder (Parlamento e Presidente da República como Titular do Poder Executivo) que, segundo a Constituição da República de Angola (CRA), tem competência para legislar.

9. O artigo 1306.º, n.º 1, do Código Civil enumera, exaustivamente, os Direitos reais incompletos que, na Lei, são excepções restritivas do direito de propriedade, entre as quais o usufruto (artigo 1439.º e ss.), o direito de superfície (1524.º e ss.), a servidão (artigo 1547.º e ss.) e a propriedade horizontal (1414.º e ss.).

10. A propriedade horizontal, consabidamente, tem de passar por um procedimento administrativo específico, plurifásico, da competência do respectivo Governo Provincial (anteriormente, Câmara Municipal territorialmente competente), sujeitando-se, no âmbito desse procedimento administrativo, à verificação técnica de requisitos da natureza urbanística, arquitetónica, estética, securitária, hígida, funcional e interoperável.

11. O alvará com que termina esse procedimento administrativo, caso obtenha provimento o requerimento ou requisição inicial de constituição de propriedade horizontal, terá de ser averbado na respectiva Conservatória do Registo Predial e, somente a partir de então, fica dividido em fracções autónomas, como tal designadas em Direito Civil e Registral/Conservatorial, constituindo cada uma delas, autonomamente, um imóvel para todos os efeitos de Direito, inclusive para efeitos de poder ser objecto de direito de propriedade (em regime de propriedade horizontal ou condominial) e de ser objecto de alienação.

12. A Junta de Habitação, depois Secretaria de Estado de Habitação – tal como o Ministério em que se integra ou qualquer órgão do Governo ou Tribunal – não tem competência material para se substituir ao respectivo Governo Provincial no tocante à tramitação e prolacção de decisão final no dito procedimento administrativo de constituição de propriedade horizontal.

13. Diverso procedimento administrativo, este da competência da Junta de Habitação ou Secretaria de Estado de Habitação, é o da preparação da alienação a favor dum particular do direito de propriedade, ou do direito de propriedade horizontal ou do direito de superfície, consoante o caso, sobre um prédio, rústico ou urbano, ou sobre uma fracção autónoma, tomada esta na acepção técnico-jurídico do termo.

14. Ao Tribunal Cível que julgue uma acção de reivindicação compete apenas apurar, sem desvios atentatórios das regras de Direito substantivo, processual e registral, qual das partes litigantes é titular de um título de propriedade que lhe permita exigir a restituição do imóvel reivindicado.

15. É consabido que a aquisição onerosa (compra, no caso) dum imóvel só é formalmente válida, se feita através duma escritura pública em Cartório Notarial (artigo 875.º do Código Civil e artigo 89.º, alínea a) do Código do Notariado) e só é oponível a terceiros, se registada/inscrita a aquisição na competente Conservatória do Registo Predial (artigo 7.º, n.º 1, do Código do Registo Predial).

16. É com esta formalização e com este registo que tem de se ocupar o julgador, se quiser cumprir a lei e, portanto, evitar a violação de Direito expresso.

17. A ora Recorrente fez a compra por escritura pública no Cartório Notarial Privativo da Secretaria de Estado da Habitação e fez o registo dessa escritura (inscrição no Livro G) na Conservatória do Registo Predial de Luanda, como foi dado como provado nos autos.

18. A conclusão imediata a tirar daqui, no campo do Direito Constitucional, é a de que a sentença da 1.ª instância, tal como o Acórdão do TS que a confirmou, incorreu em violação do "direito ao Direito", como internacionalmente é chamada a garantia (em Angola) tutela jurisdicional efectiva, consagrada no artigo 29.º da CRA.

19. Descreve este artigo 29.º, no seu n.º 1, sob a epígrafe "Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva": “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos [...]” (sic).

20. No seu conteúdo primário, o mais puro, o que esta garantia constitucional quer dizer, tal como entendida em todos os Estados de Direito democráticos, é que "a todo o direito corresponde uma acção" (vd. Artigo 2.º do Código de Processo Civil) e de que o direito deve ser aplicado tal como escrito e pensado, devendo ser tratado nos tribunais com respeito por aquilo que é.

21. Guardado todo o respeito, esta garantia constitucional da CRA, como ficou visto e dito, foi cilindrada pelo Tribunal Supremo de modo patente e frontal, colocando-se os Juízes Relator e Adjuntos da CCAFA prolactores do douto Acórdão recorrido no papel de fazedores de Direito, como se legisladores fossem.

22. É errado dizer-se, como diz o douto Acórdão recorrido, que o ora 1.º Recorrido "comprou o imóvel antes da referida escritura pública da Apelante" (ora Recorrente), visto que à exatamente a escritura pública que, segundo lei expressa, incontornável, marca e momento em que o imóvel é comprado, ou seja, passa do domínio privado do Estado para a esfera jurídico-patrimonial do comprador.

23. Consabidamente, o pagamento da totalidade do preço pelo 1.º ora Recorrido não lhe confere a qualidade de comprador e, portanto, de proprietário. Pois,

24. O “título de ocupação provisória" - designação perifrástica imprópria criada pela Junta de Habitação e acolhida pela Secretaria de Estado de Habitação - não é, apreciado no seu conteúdo, nem mais nem menos do que um contrato de arrendamento para habitação.

25. Ainda que se entendesse, entendimento, no mínimo, controverso - que, incidentalmente, dentro dum procedimento administrativo preparatório de venda de imóvel confiscado, havia um contrato-promessa de compra e venda entre o Estado e o ora Recorrido, o regime aplicável ao caso, ocorrendo incumprimento pelo Estado como promitente-vendedor, seria o do reconhecimento dum crédito de restituição em singelo ou em dobro a favor do ora Recorrido em relação ao Estado (artigos 441.º e 142.º, nos 1 e 2, do Código Civil) e nada mais.

26. A guia bancária do pagamento duma quantia pecuniária correspondente ao preço fixado pela CNVPHE e o instrumento de quitação de pagamento desse preço nada adiantam que juridicamente releve na óptica dos ora Recorridos.

27. O Juiz da causa, num processo de reivindicação, é livre de ordenar a prova por inspecção judicial nomeando directamente ou requisitando um “auxiliar técnico” que o assista nessa diligência probatória, mais isso, nunca por nunca, pode precludir o direito do reivindicante, para mais, no caso, titulado notarial e conservatorialmente como proprietária, apresentar e fazer produzir prova pericial, entre as demais provas que a lei processual permite até ao julgamento final.

28. Ao proferir, como proferiu, sentença precoce a favor dos ora Recorridos, depois confirmada pelo Acórdão ora recorrido do Tribunal Supremo - não seria precoce, mas, sim, pontualmente certeira, se proferida a favor da ora Recorrente, o Juiz da 1.ª instância negou o acesso ao direito quanto à Recorrente, violando assim a dita garantia jurisdicional efectiva, consagrada no artigo 29.º, n.º 1, da CRA.

29. A Junta de Habitação escolheu a ora Recorrente como compradora do imóvel no seu conjunto, inclusive dos dois pisos no edifício principal (agora com o 1.º andar e parte do r/c degradados ao ponto de não serem utilizáveis), e de todas as "benfeitorias" (anexos construídos sobre o terreno não coberto pelo edifício principal), segundo um critério que não foi explicado nos autos nem fora dos autos, não custando aceitar como tese mais verosímil a de que, na impossibilidade de acordo entre as partes ora litigantes que coabitavam o imóvel e na situação de natural indisponibilidade económica da Junta de Habitação para fazer obras de reabilitação e adequação do edifício principal, optasse pela ocupante do r/c, menos degradado do que o 1.ª andar, por essa ocupante oferecer mais probabilidades de fazer tais obras, uma vez tornada proprietária do imóvel.

30. Fosse como fosse, o critério de escolha da Junta de Habitação em relação aos seus inquilinos rivais como efectivos compradores de imóveis confiscados integrantes do domínio privado do Estado em nada releva para os presentes autos.

31. No campo dos meios legais apropriados ao dispor do 1.º Recorrido para reagir contra a decisão administrativa de venda do imóvel à ora Recorrente, caso ele visse nesta alguma irregularidade configurável como ilegalidade administrativa, podia ser usada pelo Recorrido a reclamação de precedência obrigatória contra o despacho do Secretário de Estado decretatório de tal decisão com subsequente uso do recurso contencioso de impugnação nos termos da LIAA e diplomas atinentes, com o fim de obter a declaração de nulidade ou anulação de tal decisão.

32. O 1.º Recorrido não usou de qualquer desses meios, sendo, aliás, indiferente para os presentes autos que o tivesse feito ou não.

33. O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade obedece adjectivamente ao artigo 41.º e a alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

34. No plano do direito ordinário, o douto Acórdão desrespeitou, entre outros, os seguinte artigos dos seguintes diplomas legais: do Código Civil: artigos 875.º e 364.º, n.º 1 (desconsideração de escritura pública de compra e venda celebrada em Cartório Notarial): artigos 1414.º e ss. (equiparação incorrecta de fracções autónomas de facto a fracções autónomas de direito); do Código de Processo Civil: artigos 512.º (requerimento probatório), artigo 568.º, n.º 1 (noção de prova pericial), artigo 572.º (quesitos periciais), artigo 612.º (finalidade da inspecção judicial) e artigo 614.º (intervenção de técnico auxiliar); da Lei do Ordenamento do Território e do Urbanismo (Lei n.º 3/04, de 25.06.2004) artigo 2.º, alínea d) (instrumentos de ordenamento territorial); do Regime da propriedade horizontal - Dec.-Lei n.º 40 333 - extensivo a Angola pela Portaria n.º 15 984, do Ministro do Ultramar): artigo 2.º, n.º 2, § único, n.º 3 (o acto administrativo como título de propriedade horizontal) e artigo7.º (correspondência necessária do título de propriedade horizontal no registro predial); do Código do Notariado: artigo 89.º, alínea a) (necessidade de escritura pública na compra de imóvel em propriedade horizontal); do Código de Registo Predial (Dec.-Lei n.º 47 169 ex vi da Portaria n.º 1595 Ministério do Ultramar, com as alterações da Lei n.º 1/97, de 17 de Janeiro, e da lei n.º 11, de 16 de Fevereiro): artigo 2.º, alínea d) (registo obrigatório), artigo 7.º, n.º 1 (oponibilidade a terceiros) e artigo 9.º (prioridade do registo).

35. Os princípios da Constituição violados, cuja apreciação vai pedida ao Tribunal Constitucional (cf. alínea b) do artigo 41.º da Lei n.º 3/08 - Lei do Processo Constitucional), são os do acesso ao direito e a tutela jurisdicional (artigo 29.º da Constituição), o do direito à propriedade privada (artigo 14.º, artigo 89.º, n.º 1, alínea d), da Constituição), o do direito ao recurso (artigo 47.º da Lei n.º 3/08 - LPC e jurisprudência concordante do TC), o do asseguramento de direitos fundamentais (artigo 23.º, alínea b), da Constituição) e o da indispensabilidade do julgamento justo e conforme a lei (artigo 72.º da Constituição).

36. Quanto ao princípio constitucional do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva, o douto Acórdão recorrido, objectivamente ainda que directamente, denegou justiça, à Recorrente quanto ao uso do meio probatório do arbitramento trocando-o por mera inspecção judicial, feita de resto com desconsideração ou ofensa dos meios securitários processualmente exigidos.

37. O Acórdão recorrido não respeitou, em sede de registo predial o artigo 2.º, alínea d) (registo obrigatório), o artigo 7.º, n.º 1 (oponibilidade a terceiros) e o artigo 9.º (prioridade do registo), inerentes ao direito de propriedade, violando assim o princípio constitucional do respeito pela propriedade privada.

38. O princípio da indispensabilidade do julgamento justo e conforme a lei (artigo 72.º da Constituição) é, afinal, um corolário da definição de Estado de Direito democrático, feita no artigo 2.º da Constituição, com o qual está em sintonia o artigo 6.º da Constituição, ao consagrar a Constituição como "Lei suprema de Angola" e vincular o Estado a "respeitar e fazer respeitar a legalidade" (sic).

39. O Acórdão do Tribunal Supremo, ora recorrido, não aprofundou a questão da propriedade privada à luz dos preceitos pertinentes atendo-se, por vezes na linha do "politicamente correcto" contra a do "legalmente correcto", a argumentos deônticos de sobreposição distópica do plano de jure condendo ao plano " de jure condito" e a juízos retóricos imagéticos, como sucedâneos do Direito positivo.

40. Isto quer dizer que o Acórdão recorrido não tirou as devidas consequências do reconhecimento da propriedade privada da ora Recorrente, segundo jurisprudência do Tribunal Supremo (casos em que o Tribunal Constitucional, dando como violado um direito fundamental, deu provimento a recursos de inconstitucionalidade e, nesse enfiamento, mandou o TS descer ao fundo da questão - vide Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 318/2013, n.º 334/2014, n.º 401/2016, n.º 414/2016, 441/2017, n.º 483/2018 e n.º 522/2018, que ilustram esta matéria).

41. De igual modo, o direito a um julgamento justo serviu de fundamento a não poucos Acórdãos do Tribunal Constitucional (v.g., Acórdão n.º 122/2010, Acórdão n.º 466/2017, Acórdão n.º 482/2018, n.º 490/2018, Acórdão n.º 491/2018, Acórdão n.º 524/2019, Acórdão n.º 593/2019, Acórdão n.º 595/2020 e Acórdão n.º 597/2020).
Termina as suas alegações requerendo a declaração de inconstitucionalidade do douto Acórdão recorrido e a sua substituição por outro que julgue procedente a acção de reivindicação proposta, seguindo-se os ulteriores termos processuais até final.

O processo foi à vista do Ministério Público que promoveu o seguinte:
Na perspectiva da Recorrente o Acórdão em crise denegou justiça trocando o meio probatório do arbitramento por mera inspecção judicial feita com desconsideração ou apensa dos meios securitários processualmente exigidos.

Não respeitou, em sede de registo predial, o disposto nos artigos 2.º alínea d), 7.º n.º 1 e 9.º, todos do Código de Registo Predial, em violação do princípio constitucional do respeito pela propriedade privada.
Não aprofundou a questão da propriedade privada à luz dos princípios pertinentes para tirar as devidas consequências do reconhecimento da propriedade privada da Recorrente em atenção a jurisprudência do Tribunal Constitucional, esta última firmada nos Acórdãos n.ºs 318/2023, 334/2014, 522/2018, entre outros.

Chegados aqui e extraído de forma resumida o essencial da argumentação da Recorrente, constata-se que não fundamentou a alegada violação do direito ao recurso e do direito a julgamento justo e conforme, embora os tenha suscitado.
Apesar disso, e compulsado o Acórdão em sindicância, depreende-se, sem maior dificuldade que, o mesmo fornece respostas merecidas a cada questão levantada pela Recorrente no âmbito do recurso de apelação.

O referido Aresto procedeu de forma cronológica, objectiva e com a clareza que se impõe a descrição da situação jurídica do objecto em litígio, tendo subsumido os factos ao direito e à lei.

A fundamentação e o enquadramento jurídico nele desenhado, reputa-se de legal, judicioso e didático, sendo o seu resultado qualificável de uma justiça sã e livre de censura.

Por essa razão, não procede a alegada violação de princípios e de direito consagrados na CRA.
Nestes termos, o Ministério Público pugna pelo não provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para melhor decidir.

II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é parte sobre a qual recaiu a decisão proferida pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo nos autos do Processo nº 2622/19 que manteve a decisão da Sala do Cível e Administrativo da 1.ª Secção do Tribunal Provincial de Luanda, tendo pois, interesse directo em que a causa seja apreciada pelo Tribunal Constitucional, decorrendo disto a sua legitimidade para a interposição do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC e do n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.

IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto, verificar se a decisão proferida pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo nos autos do Processo n.º 2622/19, ofendeu ou não princípios, direitos e garantias previstos na Constituição da República de Angola (CRA).

V. APRECIANDO
Nas alegações do presente recurso, de fls. 375 a 405 dos autos, a Recorrente fundamenta a sua pretensão fazendo referência a determinados factos que conduziram a decisão ora posta em crise, enunciando um conjunto de disposições normativas que considera terem sido violados pelo Tribunal a quo, sem para o efeito estabelecer uma relação de direitos e princípios fundamentais subjacentes a cada norma constitucional que citou para fundamentar a sua pretensão.

Entretanto, este Tribunal considera que as normas indicadas pela Recorrente têm a ver, como denota parte do conteúdo das alegações, com a violação de direitos e princípios da legalidade, protecção da propriedade privada, tutela jurisdicional efectiva previstos nos artigos 6.º, 14.º e 29.º todos da CRA.

Em face do acima exposto, é assim delimitado o âmbito da análise que este Tribunal irá fazer, na medida em que há clara conexão entre os direitos e princípios elencados pela Recorrente, constituindo-se em corolários dos demais.

Vejamos se da análise concreta resulta clara protecção às pretensões da Recorrente:

a) Sobre a ofensa ao princípio da legalidade e violação do direito à propriedade privada
A Recorrente alega que a ofensa ao princípio da legalidade ter-se-á verificado porque o Tribunal Supremo por um lado reconheceu o seu direito de propriedade sobre o imóvel no seu conjunto (incluindo benfeitorias), mas, por outro lado, e contradizendo-se, negou esse direito à Recorrente enquanto titular do seu próprio "conteúdo", traduzido nos "direitos de uso, fruição e disposição" (artigo 1305.º do Código Civil) da coisa que é objecto desse direito de propriedade, contrariando assim o disposto no n.º 2 do artigo 1311.º do CC, recusando-se a condenar a contraparte na restituição da coisa havida como objecto desse direito de propriedade.

Deste modo, considera a Recorrente que o Tribunal ad quem criou direito novo, desprezando o direito vigente assumindo competências que a Constituição reserva à Assembleia Nacional enquanto Poder Legislativo.

O princípio da legalidade materializa o respeito pela lei, quer em sentido formal, quer em sentido material, pelo que as decisões judiciais devem reflectir a sua conformidade com a lei e, consequentemente, com a Constituição, sob pena de afectação da sua validade.
As alegações que fundamentam a pretensão da Recorrente sobre uma eventual ofensa ao princípio da legalidade, não dão forma a que se considere que os referidos fundamentos não subjazem a compreensão dos actos violadores do referido princípio.

Desde logo, os autos denotam que o Tribunal ad quem estruturou a sua decisão com base na apreciação da existência de pressupostos legais do direito de propriedade do imóvel em litígio, atacando, precisamente a questão referente a existência ou não de propriedade horizontal bem como da autonomia das fracções em causa, e a respectiva titularidade.

De facto, a técnica de registo existente entre nós, é a de base real, como refere Menezes Cordeiro, em geral, documentam-se duas técnicas de registo: a de base real e a de base pessoal. A primeira técnica parte do prédio: este é descrito e, de seguida inscrevem-se os factos a ele relativos, dos quais resultam os direitos das pessoas sobre eles (Tratado de Direito Civil XIII Direitos Reais 1.ª Parte Dogmática Geral, Posse, Registo Predial, Almedina, 2023, p. 785).

O direito fundamental da propriedade privada traduz-se no poder conferido por lei ao titular do referido direito em usar, gozar e dispor de uma determinada coisa de que é titular bem como na possibilidade de reaver este direito de quem injustamente se tenha apossado do mesmo, sendo o seu regime jurídico regulado pelos artigos 1302.º e seguintes do CC.

Segundo, Santos Justo, o direito de propriedade abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico (Direitos Reais, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2010, p. 219).
Porém, este direito mesmo sendo absoluto, está sujeito a restrições conforme prevê o artigo 1305.º in fine, restrições estas que podem ser de direito público ou de direito privado, como são os casos da função social da propriedade, da expropriação por utilidade pública e a apropriação pública, previstas na alínea e) do n.º 1 do artigo 89.º e no artigo 37.º, ambos da CRA, nas disposições da Lei n.º 1/21, de 07 de Janeiro (Lei da Expropriação por Utilidade Pública) e da Lei n.º 13/22, de 25 de Maio (Lei da Apropriação Pública).

Ora, a Recorrente ao reivindicar o seu direito de propriedade a totalidade do prédio invoca o exemplo vertido no Acórdão n.º 334/14, página 7, desta Corte, onde vem expendido não poderem subsistir dois direitos de propriedade sobre um mesmo imóvel, pelo que, no confronto entre dois possíveis direitos deverá prevalecer o que tiver sido adquirido cumpridos os formalismos legais, no entanto, importa reter que não há paralelo de comparação entre as duas realidades trazidas à liça, a saber, a dos presentes autos e a realidade que se verificava no Acórdão n.º 334/14.

Pois que, no caso em apreciação considerou o Tribunal Supremo tratar-se de casas sobrepostas e completamente independentes, não estando assim em causa 2 pisos de uma mesma moradia, mas sim, 2 unidades distintas e autónomas, com saídas independentes para a via pública. Sendo pisos autónomos e pertencentes ao mesmo imóvel, em propriedade horizontal, porém não desanexados, está-se em boa verdade diante de dois direitos de propriedade legítimos sobre o mesmo imóvel, cuja individualização não competia a nenhum dos proprietários.

Não podemos deixar de frisar que, apesar da Recorrente ter elencado uma série de Acórdãos desta instância Constitucional, relacionados com o direito a propriedade, com o intuito de densificar os seus fundamentos, não soube escalpelizá-los e concretizá-los ao ponto de consolidar os seus argumentos e, mau grado, os fundamentos do relato e o sentido decisórios dos referidos arestos, mormente os Acórdãos n.ºs 441/17, 483/18 e 522/18, não são análogos com a presente demanda.

Dito isto, quanto a violação do direito a propriedade privada, prevista no artigo 14.º da CRA, ficou provado pelo Tribunal ad quem que a Recorrente reivindica um direito anteriormente constituído, como ficou provado pelo Termo de Quitação n.º 1253/98, de 13 de Novembro, fls. 46 dos autos, datado de 13 de Novembro de 1998. Logo, em circunstância alguma poderia a Recorrente alegar ser a legítima proprietária dos dois imóveis pois um deles já havia sido vendido pela então Secretaria de Estado de Habitação, conforme atestam os autos.

Destarte, não será demais referir que, contrariamente ao alegado pela Recorrente, em momento algum o Tribunal ad quem reconhece o seu direito de propriedade e posteriormente contradiz-se, vide fls. 340 verso dos autos e “Sendo um prédio urbano, ocupado por pessoas distintas, com consequente contrato de arrendamento, preferentes na compra e venda dos imóveis ao Estado, por estas cabia ao próprio Estado ter procedido a desanexação das referidas moradias, para que passassem a ser fracções autónomas”. E mais afirma aquele Tribunal que “…o Apelado é legítimo proprietário do referido imóvel que, sendo autónomo do imóvel da Apelante, faz parte do prédio rústico porque houve efectivamente tradição da coisa, sendo o Apelado promitente comprador, que está impedido de celebrar o contrato de compra e venda e registo devido por actuação célere da ora Apelante. A tal actuação configurou-se por erro grave, agora sanado pelo Tribunal a quo que ao proceder a venda não desanexou do imóvel ora Apelado. Tendo vendido o prédio na sua totalidade à Apelante, quando esta ocupara apenas uma parte dele, sendo que a outra pertence ao Apelado”.

Dúvidas não restam de que nos limites legalmente previstos na Constituição e na lei andou bem o Tribunal Supremo, não tendo ofendido o princípio da legalidade e o direito de propriedade privada.

b) Sobre a violação do princípio de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva
Alega a Recorrente que o Juiz da causa, num processo de reivindicação, é livre de ordenar a prova por inspecção judicial nomeando directamente ou requisitando um “auxiliar técnico” desde que a referida diligência probatória não viole o direito do reivindicante, para mais, no caso, titulado notarial e conservatorialmente como proprietária, apresentar e fazer produzir prova pericial, entre as demais provas que a lei processual permite até ao julgamento final, considerando que ao proferir, como proferiu, sentença precoce a favor dos ora Recorridos, depois confirmada pelo Acórdão ora recorrido do Tribunal Supremo, o Juiz negou o acesso ao Direito quanto à Recorrente, violando assim a dita garantia jurisdicional efectiva, consagrada no artigo 29.º, n.º 1 da CRA.

A questão a que se refere a Recorrente diz respeito a inspecção judicial ao imóvel objecto de litígio, diligência feita pelo Tribunal com o auxílio de um perito do Gabinete Provincial de infra-estruturas e serviços técnicos do Governo da Província de Luanda, ou seja, a produção de prova por inspecção.

Veja-se, pois, se assiste razão a Recorrente;
Dispõe o artigo 612.º do CPC que “O Tribunal sempre que julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das partes, inspeccionar coisas ou pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa, podendo deslocar-se ao local da questão ou mandar proceder à reconstituição dos factos, quando a entender necessária”.

O princípio ora colocado em crise emana do acesso ao direito e aos tribunais e pressupõe que as decisões proferidas pelos órgãos com competência para administrar a justiça devam dar resposta às pretensões submetidas a juízo de modo efectivo.

Segundo os ensinamentos de Joaquim de Sousa Ribeiro, Maria João Antunes e Onofre dos Santos, os interessados devem poder conhecer o direito aplicável (acesso ao direito), possam ver os seus direitos constituídos, reconhecidos ou reparados por um órgão judicial (acesso aos tribunais, direito a jurisdição ou garantia da via judicial, e tenha garantias de que o processo que nele se desenrole obedeça às exigências do processo equitativo, propiciando um julgamento justo, em efectivação da tutela jurisdicional efectiva (Direitos Humanos/Direitos Fundamentais, Os Sistemas Internacional e Angolano de Protecção, Petrony, p. 150).

Resulta dos autos que a iniciativa processual coube à Recorrente, não existindo nos mesmos quaisquer tipos de indícios que nos demonstrem que a mesma tenha de alguma forma sido impedida de aceder aos Tribunais para ver respondida a sua pretensão em juízo, tendo de igual modo a contraparte oportunidade de nas duas instâncias (a quo e ad quem) sido chamada para a devida defesa, o que efectivamente o fez sustentada nas provas documentais carreadas ao processo.

Entretanto, embora se afigure legítima a pretensão da Recorrente no que diz respeito a não valoração da escritura pública em detrimento de um termo de quitação, importa salientar que o Juiz ao julgar considera todos os aspectos intrínsecos à produção da prova e decide em consonância com o princípio da livre apreciação da prova que deve ser observado no cumprimento de todos os formalismos e procedimentos legalmente previstos e constam dos autos de fls. 325 a 341 que após apreciação dos factos dados como provados, aquele Tribunal pode criar a plena convicção de que os mesmos eram suficientes para decidir no sentido em que decidiu em respeito da Constituição e da lei.

Neste sentido, entende este Tribunal Constitucional que, contrariamente ao que a Recorrente alega, a decisão do Tribunal recorrido não ofendeu preceitos constitucionais, nem violou os princípios da protecção da propriedade privada e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.
Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE, POR SE ENTENDER QUE O ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO OFENDE OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE, PROTECÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA, TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA, PREVISTOS NOS ARTIGOS 6.º, 14.º E 29.º, TODOS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE ANGOLA.
Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 02 de Abril de 2024.

OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães (Relator)
Dr. João Carlos António Paulino
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria de Fátima de Lima D’ A. B. da Silva