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ACÓRDÃO N.º 899/2024

 

 

PROCESSO N.º 1145-A/2024

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO
José Bonzela Panzo, com os melhores sinais de identificação nos autos, veio a esta Corte Constitucional, ao abrigo da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolactado pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 1036/2021, por inferir que o mesmo viola ou ofende princípios, direitos e garantias previstos na Constituição da República de Angola (CRA).


O Recorrente foi parte num processo que correu termos na 1.ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, onde intentou uma acção de recurso em matéria disciplinar contra a empresa Cabinda Gulf Oil Company Limited, por esta ter-lhe aplicado a medida disciplinar de despedimento por ter entendido que aquele faltou com a verdade, ao aludir que desconhecia a existência de uma conta bancária que estava a ser usada para o cometimento de fraudes contra a empresa, que esta última veio a descobrir que o Recorrente era um dos titulares da referida conta em conjunto com a sua esposa e colega de trabalho, ambos colocados na mesma área.


A decisão do Tribunal a quo foi-lhe favorável, visto que declarou nulo o procedimento disciplinar e ordenou a reintegração do Recorrente e o pagamento dos salários intercalares, no entanto, a empresa Cabinda Gulf Oil Company Limited inconformada, interpôs recurso de apelação junto da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo que, em Acórdão, revogou a decisão recorrida e absolveu do pedido a aludida empresa, porque considerou que a medida disciplinar fora aplicada ao ora Recorrente dentro dos marcos legais (fls. 151-183 dos autos).


Do Aresto proferido por aquela instância jurisdicional, recorreu para esta Corte Constitucional, onde, após notificação, nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, (LPC), apresentou as suas alegações, constantes de fls. 207-212 dos autos, tendo em síntese, aludido que:


1. O Acórdão recorrido é inconstitucional, pois, sufraga o despedimento ilegal do Recorrente que foi despoletado por quem não tinha competências para o efeito, ou seja, não consta dos autos qualquer documento que atesta a delegação de competências por parte do então Director Geral da empresa Cabinda Gulf Oil Company Limited, então Apelante, que conferisse poderes ao instrutor do processo para o efeito e para a aplicação da medida disciplinar que se contesta.

2. O Tribunal tinha a obrigação de verificar se, entre as datas de tomada de conhecimento das prováveis infracções disciplinares imputadas ao trabalhador e o início do processo disciplinar, não estaríamos já diante da caducidade, visto que a entidade empregadora ainda levou a cabo um inquérito e não um processo investigativo cujo prazo deveria também ser relevante na apreciação da presente causa.

3. No caso em concreto, as questões devem ser tratadas tal como elas são e não devem ser alteradas, sob pena de violação dos artigos 29.º e 72.º da CRA, visto que a entidade empregadora presumiu e arrastou o Tribunal para o mesmo caminho de que o Recorrente tinha conhecimento dos esquemas fraudulentos que decorriam no seio daquela, no entanto, tal facto nunca ficou provado, nem por acordo, muito menos por documentos.

4. O facto de o Recorrente ser colega de trabalho da sua esposa e de partilharem a titularidade da mesma conta bancária, não abre espaço para imputação de responsabilidades praticadas por aquela, nos termos que a entidade empregadora o fez, atendendo que não é crível que os actos praticados pela esposa, pessoa maior de idade, passível de despedimento disciplinar e/ou criminal, sejam do seu conhecimento e por isso imputáveis a ele, o Recorrente.

5. Ademais, o Tribunal Supremo fundamentou como causa do despedimento o previsto nas alíneas d) e g) do artigo 44.º, quando a nota de despedimento socorreu-se das alíneas f) e g) do artigo 206.º e, posteriormente, alterou no decorrer do processo para as alíneas c), g) e i) do mesmo artigo, ambos da Lei Geral do Trabalho, Lei n.º 7/15, de 15 de Junho.

6. O Acórdão, aqui em crise, lavrado pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, não apreciou profundamente o formalismo do procedimento disciplinar, descurando factos e provas essenciais, levando os Venerandos Juízes da Câmara a proferir uma decisão que não tem suporte na ordem jurídica angolana.

7. Não existe base probatória bastante que resulta em fundamento de justa causa, por isso o Tribunal decidiu, em Acórdão, com uma convicção preventiva, violando o princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 67.º da CRA.

O Recorrente termina pedindo que seja o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade julgado provado e procedente e, por via dele, ser total e incondicionalmente revogado o Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, por violação das normas constitucionais.

O processo foi à vista do Ministério Público, que a fls. 215 e verso dos autos promoveu, em conclusão, o seguinte:
“(…) compulsados os autos, constata-se que o Acórdão em crise procedeu a apreciação das questões objecto do recurso, dando respostas com suporte quer na lei como na doutrina.
Esclareceu as questões sobre o inquérito prévio, a aplicação dos prazos processuais em matéria laboral, a existência ou não de justa causa para o despedimento disciplinar, questões que o Recorrente considerou como tratadas com inobservância da lei pelo Acórdão em referência.
A forma detalhadamente fundamentada, objectiva, clara e pedagógica como justificou a decisão tomada, livra-lhe de qualquer argumento de censura.
Esta constatação conduz a conclusão de que não se vislumbra do Acórdão recorrido a alegada violação de princípios e direitos consagrados na CRA.
Nestes termos, o Ministério Público pugna pelo não provimento ao recurso.”

Colhidos os vistos legais dos Venerandos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir.


II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto, com fundamento na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, pelo que dispõe o Tribunal Constitucional de competência para apreciar o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE

A legitimidade para a interposição de um recurso extraordinário de inconstitucionalidade cabe, no caso de sentença, à pessoa que, em harmonia com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, possa dela interpor recurso, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC.

O Recorrente foi parte no Processo n.º 1036/2021, que correu termos na Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, que não viu a sua pretensão satisfeita, tendo, por conseguinte, legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade circunscreve-se à apreciação da inconstitucionalidade do Acórdão prolactado pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, a 7 de Setembro de 2023, no âmbito do Processo n.º 1036/2021, confirmando-se, ou não, as alegadas ofensas aos princípios da legalidade, da presunção de inocência, da estabilidade do emprego, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e do direito a julgamento justo e conforme, consagrados na Constituição da República de Angola.

V. APRECIANDO

É submetido à apreciação do Tribunal Constitucional, o Aresto prolactado pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 1036/2021, que considerou que a medida de despedimento disciplinar aplicada ao então trabalhador, ora, Recorrente, era legal, revogando consequentemente a decisão do Tribunal de primeira instância e, absolvendo do pedido, a então Apelante, a empresa Cabinda Gulf Oil Company Limited.

O Recorrente, no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, requer a intervenção do Tribunal Constitucional, por entender que o Acórdão recorrido ofendeu os princípios da legalidade, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, da presunção de inocência e o da estabilidade do emprego, bem como violou o direito a julgamento justo e conforme, consagrados nos artigos 6.º, 29.º, 67.º, 72.º e 76.º, respectivamente, todos da CRA.

Preambularmente, mister se faz assinalar que, da leitura das alegações, ressai que as questões essenciais suscitadas pelo Recorrente, reconduzem-se à ideia de que na decisão recorrida a prova produzida não foi devidamente apreciada e infere-se que solicita junto da Jurisdição Constitucional uma reapreciação minuciosa de cada aspecto do Processo n.º 1036/2021, que correu termos na Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, desde a sua apreciação em primeira instância até à prolacção do Acórdão recorrido.

Julga-se, desta feita, curial elucidar que no recurso extraordinário de inconstitucionalidade, não se está diante de mais um grau da jurisdição comum, ou seja, não se procede a um reexame da causa (a título de exemplo mencionam-se os Acórdãos n.ºs 874/2024, de 20 de Fevereiro, 863/2023, de 5 de Dezembro, 833/2023, de 2 de Agosto e o 791/2022, de 14 de Dezembro, disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao).

Importa sublinhar que o aqui Recorrente beneficiou do duplo grau de jurisdição, que se depreende do artigo 29.º da CRA e que na prolacção da decisão recorrida cabia ao julgador formar o seu juízo de certeza com base nos factos submetidos à sua apreciação, e a lei confere ao Tribunal Supremo, uma livre análise e valoração das provas.

Associado ao antedito, é de aditar que não é competência do Tribunal Constitucional aferir se o Tribunal ad quem procedeu a uma correcta valoração da prova ou não, conforme a doutrina elucida: “esta não é uma instância suprema de mérito, ou um Tribunal de super-revisão, não lhe compete aferir a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo (...)” (Carlos Blanco de Morais, 2011, Justiça Constitucional, Tomo II - O Direito do Contencioso Constitucional, p. 619).

Inobstante, tendo como assente o entendimento supra expendido, veja-se, pois, se assiste razão ao Recorrente, face às questões levantadas.

 

a) Sobre a ofensa aos princípios da legalidade, da presunção de inocência e da estabilidade do emprego

O Recorrente sustenta que o Acórdão recorrido é inconstitucional por ofensa ao princípio da legalidade porque o seu despedimento foi despoletado por quem não tinha competência, por falta de delegação de competência do então Director Geral da empresa Cabinda Gulf Oil Company Limited, então Apelante, para o efeito.


No que dedilha ao princípio da legalidade, esta Corte Constitucional tem se posicionado no seguinte sentido: “(…) todos os actos praticados pelo Estado e entidades privadas devem gozar de conformidade com a lei. O referido princípio constitui em si o abonador da manutenção do Estado de direito, o garante da materialização plena da justiça. Logo, a violação ao princípio da legalidade se conhece termos, se, os actos praticados inobservarem o disposto na Constituição e na lei” (Acórdão n.º 693/2021, de 7 de Setembro, disponível em: www.tribunalconstitucional.ao).

O Aresto pretexto não ofende o princípio da legalidade, visto que o processo foi instruído dentro do prazo legal para o efeito e a medida disciplinar aplicada pela entidade competente, no caso, o Director Geral da Empresa, conforme fls. 10 do Processo Disciplinar, apenso aos autos.

O Recorrente afirma, de igual modo, que houve ofensa ao princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 67.º da CRA, pois, não existe base probatória bastante que resulta em fundamento de justa causa, por isso o Tribunal decidiu, em Acórdão, com uma convicção pré-existente.


Relativamente ao princípio da presunção de inocência do trabalhador arguido, assim como o princípio do in dubio pro reo, nos termos das disposições conjugadas do n.º 4 do artigo 29.º in fine e do n.º 2 do artigo 67.º, ambos da CRA, do artigo 11.º da DUDH e da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do PIDCP, o arguido em processo disciplinar, tal como ocorre em processo penal, não tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada, pois o ónus da prova dos factos constitutivos da infracção cabe ao titular do poder disciplinar.

Verificando-se um caso de incerteza em matéria probatória, ou seja, um non liquet, terá de funcionar o princípio do in dubio pro reo. Este princípio é aplicável na valoração da prova carreada para os autos dos processos disciplinares e tem consequências, também, na avaliação do grau de culpa do trabalhador arguido, podendo justificar a exclusão da sua culpa.

Este princípio está consagrado no artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH, de 10 de Dezembro de 1948, que dispõe: “toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo (…) em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”.

Determina a alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos – PIDCP que toda pessoa tem: “O direito de presunção de inocência, até que a sua culpabilidade seja estabelecida por um tribunal competente”.

Discorrendo sobre este princípio Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes (2014) na obra Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, Gráfica Maiadouro, Luanda, p. 386, asseveram que: “O princípio da presunção de inocência é uma garantia processual que visa assegurar que nenhum cidadão possa ser considerado culpado de ter cometido qualquer infracção (…), até que se esgotem todos os meios para a sua defesa, ou seja, até ao trânsito em julgado da sentença”.

Nesta mesma linha de raciocínio Gomes Canotilho e Vital Moreira (1993) discorrem que: “O princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio do in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio também é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao (…) [trabalhador arguido], quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa” (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. rev., pp. 203-204).

Neste ponto, analisados os autos, também não procede a alegação do Recorrente de que no aresto recorrido o Tribunal Supremo ofendeu o princípio da presunção de inocência, haja em vista que o tribunal decidiu com base num juízo de certeza após ter examinado devidamente os factos e as provas constantes dos autos.

O Recorrente, por outro lado, alude, que o facto de ser colega de trabalho da sua esposa e de partilharem a titularidade de mesma conta bancária, não abre espaço para imputação de responsabilidades por actos praticados por aquela, nos termos em que a entidade empregadora o fez, atendendo que não é crível que tais actos, praticados pela esposa, pessoa maior de idade, passível de despedimento disciplinar e/ou criminal, sejam do seu conhecimento e por isso imputáveis a ele, o Recorrente, o que configura ofensa ao princípio da proibição do despedimento sem justa causa.

No que concerne ao direito fundamental ao trabalho, particularmente no que toca ao princípio da estabilidade do emprego, refere o artigo 6.º do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais que: “Os Estados-Signatários no presente Pacto reconhecem o direito ao trabalho, que compreende o direito de toda a pessoa ter a oportunidade de ganhar a vida através de um trabalho”.

Consagra o n.º 4 do artigo 76.º da Constituição da República de Angola que: “O despedimento sem justa causa é ilegal, constituindo-se a entidade empregadora no dever de justa indemnização ao trabalhador despedido, nos termos da lei”.

Como observam, de resto, Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes “(…) O direito ao trabalho pressupõe a protecção do trabalhador contra medidas que ponham em causa este direito fundamental. De entre estas medidas assume um papel importante a aprovação de legislação que sancione o despedimento ilegal e que imponha à entidade empregadora o dever de justa indemnização ao trabalhador despedido” (op. cit., p. 411).


Pertinente é a afirmação de Eugénio Salessu Ribeiro da Silva (2017) para quem: “Dentro dos vários direitos fundamentais atribuídos ao trabalhador, (…) [destacam-se, dentre outros], o direito à protecção da relação laboral ʻprincípio da estabilidade do empregoʼ e, consequentemente, a proibição dos despedimentos imotivados ʻsem justa causa, ad nutumʼ ” (Sobre o Despedimento Improcedente: Inconstitucionalidade do Artigo 209.º da Lei Geral do Trabalho de Angola, JURIS, n.º 1 do vol. 2, p. 136, disponível em: https://doi.org/10.34632/juris.2017.9219 ).


Defende João Leal Amado (2014) que: “Numa óptica constitucional, o direito do trabalhador à protecção em relação ao despedimento arbitrário implica o reconhecimento da especial importância do bem protegido, estabilidade do emprego, bem como da evidência de que, sem segurança no emprego, todos os direitos dos trabalhadores quase se convertem numa miragem” (Contrato de Trabalho, 4.ª ed., Coimbra Editora, p. 46).


Traz-se similarmente à liça as licções de Ana Lambelho e Luísa Gonçalves (2012), que sustentam que: “para uma compreensão do conceito de justa causa a nível constitucional, importa que este contenha os seguintes elementos: A justa causa liga-se a um comportamento ilícito e culposo do trabalhador adoptado no âmbito das relações de trabalho ou deveres profissionais – isto é, nexo material com o emprego do trabalhador; o comportamento deve ser ilícito, culposo, injustificado e grave para existir justa causa de despedimento; o despedimento, como sanção disciplinar, derivado da existência de justa causa só é justo se for necessário, adequado e proporcional à gravidade da falta do trabalhador; o comportamento do trabalhador deve projectar-se no futuro da relação de trabalho em termos de tornar impossível a sua subsistência” (Poder Disciplinar Justa Causa de Despedimento, Comentários - Tramitação - Legislação - Jurisprudência – Formulários, Quid Juris, p. 29).


Esta Corte Constitucional num caso similar, firmou a seguinte jurisprudência: “constituem, (…) requisitos da justa causa do despedimento: um elemento subjectivo, traduzido num comportamento danoso do trabalhador por acção ou omissão, um elemento objectivo, traduzido na impossibilidade de subsistência da relação laboral, e um nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade” (Acórdão n.º 791/2022, de 14 de Dezembro, neste mesmo entendimento vide, ainda, o Acórdão n.º 701/2021, de 7 de Outubro, ambos, disponíveis em: www.tribunalconstitucional.ao).


Resulta da leitura atenta aos autos que, o despedimento do trabalhador, ora Recorrente, ocorreu porque a este lhe fora instaurado um processo disciplinar, por violação dos seus deveres com o trabalho e com a entidade empregadora, que cumpriu com todos os requisitos legais para o efeito. Desta feita, resulta dos autos que se verificou um comportamento ilícito e culposo por parte do aqui Recorrente, grave, de tal modo, que colocou em causa a manutenção da relação de trabalho, tornando impossível a sua subsistência.


Nota-se que o Aresto sindicado fundamentou por que razão havia justa causa para o despedimento disciplinar do trabalhador, ora Recorrente, à guisa de exemplo a fls. 182 dos autos, lê-se o seguinte: “(…) para efectivação da justa causa disciplinar não interessa só o real dano que o comportamento culposo do trabalhador causou ao empregador, sendo também necessário averiguar da existência de um potencial prejuízo que a subsistência do vínculo lhe pode causar”.


Isto posto, conclui-se claramente que o Acórdão recorrido, não viola o direito a estabilidade no emprego conforme o disposto no n.º 4 do artigo 76.º da CRA e no n.º 1 do artigo 198.º da LGT, em vigor à data dos factos.
Em razão disso, sobre os princípios até aqui elencados, se assaca, nos autos, que o Acórdão recorrido foi prolactado em observância ao princípio da livre apreciação da prova, tendo concluído no sentido da improcedência da pretensão do aqui Recorrente, cujo mérito ou demérito não cabe na análise desta Jurisdição Constitucional.

b) Sobre a violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e do direito a julgamento justo e conforme


O Recorrente atesta que o Acórdão recorrido é inconstitucional por violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e do direito ao julgamento justo e conforme, visto que a entidade empregadora presumiu e arrastou o Tribunal ad quem para o mesmo caminho de que o Recorrente tinha conhecimento dos esquemas fraudulentos que decorriam no seio daquela, no entanto, tal facto nunca ficou provado, nem por acordo, muito menos por documentos.


Por outro lado, alegou ainda, que a decisão do Tribunal ad quem tinha a obrigação de verificar se entre as datas de tomada de conhecimento das prováveis infracções disciplinares imputadas ao trabalhador, ora Recorrente, e o início do processo disciplinar não estaríamos já diante da caducidade, visto que, nesse ínterim a entidade empregadora ainda desencadeou um inquérito cujo prazo deveria também ser relevado na decisão recorrida, sendo que não estando assim procedido, estar-se-ia diante de uma inconstitucionalidade.


Vale destacar que o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o direito a julgamento justo e conforme, pela sua complementaridade encontram-se plasmados em vários diplomas legais de cariz interno e internacional, muitas vezes partilhando as mesmas disposições normativas, como são os casos, do artigo 29.º da CRA, do artigo 8.º da DUDH, do artigo 14.º do PIDCP, da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, aplicáveis ex vi do artigo 26.º e do artigo 72.º, ambos da CRA.


Depreende-se das normas supramencionadas que para a concretização de forma eficaz do direito ao julgamento justo e conforme, necessário se torna que exista o acesso ao direito e que a tutela jurisdicional seja efectiva pela possibilidade de se aceder aos tribunais competentes para o julgamento das causas, independentes e imparciais, que possam, efectivamente, administrar a justiça de maneira equitativa. Dito doutro modo, da análise do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e do direito a julgamento justo e conforme resulta que não basta apenas que a lei seja justa, pois afigura-se imperioso que a sua interpretação e aplicação sejam realizadas de forma justa.


Neste aspecto convém salientar a doutrina de Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes quando referem: “O direito a um julgamento justo é um pressuposto do Estado Democrático de Direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente. Ela tem de assegurar um julgamento público e num prazo razoável e garantias de defesa material” (op. cit. p. 398).


Sublinhe-se que um dos corolários do direito a um julgamento justo e conforme consiste no direito à igualdade de armas ou o direito a um processo verdadeiramente contraditório entre as partes litigantes. O direito a um julgamento justo significa que deve existir, em todas as circunstâncias, um justo equilíbrio entre o autor e o réu. Nenhuma das partes deverá ser colocada, em qualquer momento do processo, numa situação de desvantagem face ao seu oponente.


Oportuno se mostra ressaltar a posição de Joaquim de Sousa Ribeiro, Maria João Antunes e Onofre dos Santos (2020), que defendem: “(…) do princípio do processo equitativo extraem-se diversos elementos ou subprincípios que lhe dão uma feição mais concreta. Todos são dirigidos a assegurar que o regime da tramitação processual faculta ao interessado fazer valer as suas razões, de facto e de direito, em todas as fases do desenvolvimento do processo em pé de igualdade com os outros intervenientes processuais” (Direitos Humanos/Direitos Fundamentais, Os Sistemas Internacional e Angolano de Protecção, Editora Petrony, p. 153).


Não é outro, o entendimento colhido na seara jurisprudencial desta Corte Constitucional, onde dentre outros, realça-se a posição firmada no Acórdão n.º 650/2020, de 24 de Novembro, in verbis: “ É um princípio fundamental de qualquer sociedade democrática, (…) e que visa, acima de tudo, defendendo os interesses das partes e os próprios da administração da justiça, que os litigantes possam apresentar o seu caso ao tribunal de uma forma efectiva; tem como significado básico que as partes na causa têm o direito de apresentar todas as observações que entendam relevantes para a apreciação do pleito, as quais devem ser adequadamente analisadas pelo tribunal, que tem o dever de efectuar um exame criterioso e diligente das pretensões, argumentos e provas apresentados pelas partes e que a justeza (fairness) da administração da justiça, além de substantiva, se mostre aparente (justice must not only be done, it must also be seen to be done)” (suplementarmente vide, igualmente, o Acórdão n.º 606/2020, de 14 de Março, disponíveis em: www.tribunalconstitucional.ao).


Assim, cumpre examinar se, neste quesito, o Acórdão recorrido violou, efectivamente, o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o direito a julgamento justo e conforme, sendo que, constata-se nos autos, que ao se pronunciar sobre a participação do ora Recorrente nos esquemas fraudulentos, o Tribunal ad quem firmou o seu entendimento em desfavor do trabalhador, pelo facto de ter o mesmo omitido a existência da conta conjunta com a sua esposa. Logo, não estava em causa uma mera presunção.


Acresce a tal constatação, a apreciação feita nos autos, sobre a tramitação do processo disciplinar, pela entidade empregadora, que observou, em tempo, todos os prazos previstos no artigo 61.º da Lei Geral de Trabalho, em vigor à data dos factos, seja quanto à data de início do procedimento, dos termos subsequentes até à comunicação da decisão de despedimento ao trabalhador.


Destarte, dilucidada a questão nos termos narrados, esta Corte Constitucional considera que, efectivamente, o aresto recorrido e ora apreciado, não ofendeu quaisquer dos princípios constitucionalmente consagrados na Constituição da República de Angola e aqui alegados pelo Recorrente.
Nestes termos,


DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO POR NÃO SE TEREM VERIFICADO NO ACÓRDÃO RECORRIDO QUAISQUER OFENSAS AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE, DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, DA ESTABILIDADE DE EMPREGO, DA TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA E DO DIREITO A JULGAMENTO JUSTO E CONFORME.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 03 de Julho de 2024.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente e Relatora)

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dr. Gilberto de Faria Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva