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2.ª CÂMARA

ACÓRDÃO N.º 901/2024

 

PROCESSO N.º 1103-C/2023
Recurso Ordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Sessão da 2.ª Câmara do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Youcall, Lda., melhor identificada nos autos, veio ao Tribunal Constitucional, com fundamento nos artigos 36.º e 44.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso ordinário de inconstitucionalidade do Acórdão n.º 16/2023, de 14 de Junho, prolactado pela Câmara do Trabalho do Tribunal da Relação de Luanda, no âmbito do Processo n.º 01/2023-A, que não admitiu o recurso por si interposto com fundamento na irrecorribilidade em razão do valor da alçada.

A Recorrente, inconformada com a decisão do Acórdão em crise, regularmente notificada para o efeito, ofereceu as alegações, abaixo em referência, arguindo, essencialmente, que:

1. O Tribunal ad quem fundamentou a sua decisão de não conhecimento do recurso de apelação com base na exposição (fls. 105 a 108), feita pelo Juiz Desembargador relator, por entender que a decisão do Tribunal a quo é irrecorrível em razão do valor da alçada, nos termos do n.º 1 do artigo 678.º do Código de Processo Civil.

2. Na verdade, actualmente, o valor da acção intentada pelo trabalhador fixado em kz 1 980 000,00 (Um milhão, novecentos e oitenta mil kwanzas), não excede o valor da alçada do Tribunal a quo, que está fixado em kz 3 080 000,00 (Três milhões e oitenta mil kwanzas), nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 5-A/21, de 5 de Março.

3. Acontece, porém, que na data da propositura da acção, 9 de Abril de 2018, o valor da causa fixado admitia recurso ordinário porque excedia a alçada do Tribunal a quo, fixado em kz 704 000,00 (Setecentos e quatro mil kwanzas), na esteira do estabelecido no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 9/05, de 17 de Agosto e do Despacho n.º 174/11, de 11 de Março.

4. Nos processos laborais, o trabalhador está dispensado do pagamento das custas (n.º 5 do artigo 7.º da Lei n.º 9/05, de 17 de Agosto e do Despacho n.º 174/11, de 11 de Março), sendo estas devidas, exclusivamente, pela entidade empregadora que, por isso, não tinha qualquer interesse em impugnar o valor da acção para mais, porque se traduziria em maior encargo para si.

5. No caso sub judice, o valor da acção também não seria relevante para determinar a competência do Tribunal a quo, sendo certo que, nos processos laborais não se atende ao valor da causa para determinar a forma do processo comum, uma vez que estes processos correm sempre sob a forma sumária, conforme integração que se faz por força do artigo 59.º do Decreto Executivo Conjunto n.º 3/82, de 11 de Janeiro, Lei que aprova o Regulamento da Justiça Laboral.

6. Fica claro que inexistia motivações para a Apelante impugnar o valor da acção, pois não tinha qualquer interesse na sua alteração, sendo que pela lei vigente na data da propositura da acção, a decisão impugnada admitia recurso ordinário.

7. Por isso, não tinha razões para impugnar o valor da acção, porque no âmbito da lei em vigor na data da propositura da acção, a decisão impugnada admitia recurso ordinário.

8. Entretanto, no decurso da acção entrou em vigor um diploma legal que torna irrecorrível a decisão impugnada, pelo facto da referida lei estender a sua aplicação aos processos instaurados antes da sua vigência, desde que não se tivesse interposto recurso ordinário, não se tratassem de causas relativas a bens imóveis ou se as partes ainda não tivessem sido notificadas da decisão proferida, ao abrigo do previsto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 2.º da Lei 5-A/21, de 5 de Maio.

9. O que se verificou e o que a norma supra veio estabelecer, é a enunciação mitigada do princípio da aplicação imediata das leis processuais. Tal princípio tem três limites, designadamente i) manutenção da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior; ii) não aplicação imediata da lei nova se disso resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação processual das partes; iii) não tem lugar se da sua aplicação resultar quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo (Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo n.º 643/11.7GBGMR-B.G1).

10. Os limites acima referidos, decorrem dos princípios da certeza e segurança jurídica e da protecção da confiança, corolários do primado do Estado Democrático de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição da República de Angola.

11. Por outra parte, a restrição do direito ao recurso fundada, unicamente, no valor da alçada do Tribunal conforme prescreve o n.º 1 do artigo 687.º do CPC, não é nem seria proporcional, muito menos razoável, uma vez que obriga as partes a suportarem uma decisão prejudicial a elas, eventualmente, violadora da Constituição e da lei, sem qualquer possibilidade de ser reapreciada pelos tribunais superiores.

12. Na mesma sequência, tal restrição atenta ainda contra o direito de acesso aos tribunais e a tutela jurisdicional efectiva (artigos 29.º e 72.º da CRA).

13. Em razão disso, resulta claro que a norma constante do n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 5-A/21, de 5 de Março é claramente inconstitucional por violação dos princípios da certeza e segurança jurídicas e da protecção da confiança das pessoas, corolários do Estado Democrático de Direito, estatuído no artigo 2.º da CRA.

14. A restrição operada pelo normativo do n.º 1 do artigo 678.º do CPC, atenta contra os artigos 29.º, 57.º e 72.º da CRA, e da combinação com o n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 5-A/21, de 5 de Março é inconstitucional, consequentemente, não deve ser aplicada ao presente caso.

15. Portanto, a decisão proferida pelo Tribunal ad quem que concluiu pelo não reconhecimento do recurso de apelação aplicou normas que enfermam de flagrante inconstitucionalidade.

Termina, requerendo a procedência do presente recurso e, em consequência, que seja declarada a inconstitucionalidade das normas do n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 5-A/21, de 5 de Março e do n.º 1 do artigo 678.º do Código de Processo Civil.

O processo foi à vista do Ministério Público que promoveu o seguinte parecer:
“Ora, compulsados os autos, constata-se a fls. 83 que, a Recorrente interpôs recurso de apelação da decisão do Tribunal a quo proferida no âmbito do processo de conflito de trabalho que foi admitido pelo respectivo Juiz e subiu nos próprios autos para o Tribunal da Relação de Luanda.

Na instância de recurso, o Relator verificou ao proceder o exame preliminar que, os requisitos de admissibilidade não estavam todos preenchidos, faltando o da recorribilidade.

(….) O Acórdão justifica de forma objectiva e convincente as razões da aplicação da nova lei e não a antiga, abalando, deste modo, os fundamentos em que assentam as alegações da Recorrente.

Destarte, o Acórdão em crise não violou princípios e direitos previstos na CRA conforme alegado pela Recorrente, pelo que, o Ministério Público pugna pelo não provimento do recurso.”

Colhidos os vistos legais dos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir.


II. COMPETÊNCIA

A 2.ª Câmara do Tribunal Constitucional é competente para decidir o presente recurso ordinário de inconstitucionalidade, nos termos do n.º 2 do artigo 32.º do Regulamento Geral do Tribunal Constitucional, publicado na Resolução n.º 1/14, de 28 de Julho, aprovada pelo Plenário do Tribunal Constitucional.

III. LEGITIMIDADE

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 37.º da LPC, a Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso ordinário de inconstitucionalidade, por ter sido vencida pela Decisão do Acórdão n.º 16/2023, proferido no âmbito do Processo n.º 01/2023-A, que correu seus termos na Câmara do Trabalho do Tribunal da Relação de Luanda.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso ordinário de inconstitucionalidade é apreciar a constitucionalidade das normas prescritas no n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 5-A/21, de 5 de Março, Lei sobre a Actualização das Custas Judiciais e Alçadas dos Tribunais e no n.º 1 do artigo 678.º do Código de Processo Civil (CPC), que fundamentam a Decisão do Acórdão n.º 16/2023, prolactado no âmbito do Processo n.º 01/2023-A, pela Câmara do Trabalho do Tribunal da Relação de Luanda, por alegadamente violarem princípios, direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição da República de Angola.

V. APRECIANDO

O caso sub judice reporta um conflito laboral em que a Recorrente decaiu na lide, tendo sido condenada a pagar as seguintes quantias: kz 560 000,00 (Quinhentos e sessenta mil kwanzas), a título de indemnização por não reintegração do trabalhador, kz 840 000,00 (Oitocentos e quarenta mil kwanzas), correspondente a seis meses de salário e kz 210 000,00 (Duzentos e dez mil kwanzas), a título de crédito de férias não gozadas e proporcionais dos subsídios de férias e de Natal. Inconformada, recorreu ao Tribunal ad quem que por Decisão lavrada pelo Juiz Desembargador relator negou a admissibilidade do recurso.

Com efeito, a Recorrente, Youcall Lda., socorreu-se desta Corte Constitucional interpondo o presente recurso ordinário de inconstitucionalidade, por discordar da Decisão do Tribunal da Relação de Luanda (TRL), proferida no âmbito do Processo n.º 01/2023-A que decidiu pela rejeição do recurso de apelação que interpôs, naquela instância, com fundamento na irrecorribilidade em razão do valor da alçada estipulada, fixado nos termos do n.º 1 do artigo 678.º do CPC e do n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 5-A/21, de 5 de Março, Lei que Altera a Lei sobre Actualização das Custas Judiciais e Alçadas dos Tribunais.

Neste contexto, das argumentativas expostas pela Recorrente nos presentes autos, afere-se que a questão retratada se prende com a recorribilidade das decisões judiciais concretizada nos direitos ao recurso e à ampla defesa dos indivíduos, enquanto direitos e garantias fundamentais de cariz processuais.

Na sua percepção, a restrição do direito ao recurso com fundamento no valor da alçada, baseado nos normativos dos artigos 678.º do CPC e no n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 5-A/21, de 5 de Março não é adequado, nem proporcional e muito menos razoável, pois obriga as partes a suportarem uma decisão prejudicial, eventualmente, violadora da Constituição e da lei, que coarcta qualquer possibilidade da Decisão ser reapreciada pelos Tribunais superiores, afectando o acesso à justiça, à tutela jurisdicional efectiva e os princípios da segurança e da confiança jurídicas.

Será assim? Veja-se;

O direito ao recurso respigado no artigo 29.º da Constituição da República de Angola (CRA), é uma das garantias essenciais do Estado Democrático de Direito, acolhido na Lex Mater que atribui aos sujeitos processuais a faculdade de reapreciação pelo tribunal superior de uma Decisão que não lhe seja favorável. Da panóplia de direitos contextualizados na Constituição, na lei e na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos destaca-se esta elementar garantia que corporiza a lisura e a objectividade da justiça material.

Partindo desta importante premissa processual, importa frisar que do cotejo acima referenciado, destacam-se outros princípios, direitos e garantias fundamentais que tal como os direitos ao recurso, à ampla defesa, à tutela jurisdicional efectiva e ao devido processo legal, também projectam uma dimensão garantística que assegura o respeito in totum do acervo essencial dos princípios e direitos jusfundamentais.

Não se pode descurar que a existência de limitações de recorribilidade, designadamente através do estabelecimento de alçadas para os tribunais (de limites de valor até ao qual um determinado tribunal decide sem recurso), funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das acções aos diversos patamares de recurso.

No processo trabalhista, tal como no processo civil, existem decisões (terminativas/finais ou não terminativas/interlocutórias) que pela sua natureza e simplicidade são irrecorríveis. Entende-se, sobre esta matéria, que a prevalência a atender deve ser a racionalização do sistema judiciário, a celeridade e a absoluta economia processual no tratamento do processo, subjacente ao princípio da concentração dos actos processuais, razão pela qual, também, se prevê como causas restritivas recursais o valor da alçada processual, com fundamento em critérios objectivos fixados na lei. Ora, em decorrência das suas especificidades o processo trabalhista é, acentuadamente, marcado por um ritualismo simplificado e desburocratizado de modo a granjear a efectivação da realização de uma justiça célere no domínio laboral.

Nesta toada, o princípio da dignidade da pessoa humana é um marco notório, vivamente, acentuado nos desígnios da efectivação do princípio da protecção jurídica do trabalhador face à igualdade formal em que se encontra votado. Daí que, a justiça trabalhista, em sede da resolução extrajudicial de conflitos e na sua actividade judicante, envereda por um compromisso conciliatório, pacificador assente na simplificação e na desburocratização processual.

In casu, e tratando-se de um processo de cariz laboral é mister que, também, se cinja a sua tramitação pelos mesmos cânones e ditames valorativos, ancorados, mormente, na celeridade deste sistema processual que contempla especificidades intrínsecas cuja regulação, também, tem respaldo no Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente ao processo de trabalho.

Esteado na sua concepção-dogmática, Fernando Amâncio Ferreira postula que (…) “Também o TC doutrinou, em concretização da sua jurisprudência não ser inconstitucional a restrição decorrente do funcionamento da regra das alçadas (artigo 678.º, n.º 1), dado assentar num critério que, para além de não ser ofensivo do princípio da igualdade, não se apresenta como arbitrário ou desrazoável.

(…) podemos concluir que o legislador ordinário tem liberdade para alterar o regime da recorribilidade das decisões e da existência de recursos, desde que não ponha em causa o sistema existente” (Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª ed., Almedina, p. 80).

Ora, sendo certo que as alçadas, bem como todos os mecanismos de filtragem de recursos, originam desigualdades (partes há que podem recorrer e outras não), estas não se configuram como discriminatórias, já que todas as acções contidas no espaço de determinada alçada são, em matéria de recurso, tratadas da mesma forma. Significa isto que a regra básica de igualdade, traduzida numa exigência de tratamento igual do que é igual e diferente do que é diferente, proibindo, designadamente a chamada discriminação intolerável, não é afectada pelo específico aspecto do recurso.

Nesta seara, o direito ao recurso não possui um âmbito ilimitado, pois implicaria a inconstitucionalidade ou quase inexistência do instituto das alçadas, o que se assaca é que este direito é restringível pelo legislador ordinário, ao qual está vedado a extinção completa, a alteração substancial ou arbitrária deste direito fundamental.

Respeitando estes limites, Ribeiro Mendes, citado por Fernando Amândio Ferreira, assevera que: “o legislador ordinário poderá ampliar ou restringir os recursos cíveis, quer através da alteração dos pressupostos de admissibilidade, quer através da mera actualização dos valores das alçadas.” (ob. cit., p. 80).

No caso em comento, o Tribunal da Relação de Luanda firmou a Decisão recorrida baseando-se na seguinte fundamentação (fls. 108): “Em boa verdade não se trata da violação do direito ao recurso, mas de uma restrição legal à sua admissibilidade,
cuja fundamentação, segundo Lopes Rego, citado por Amâncio Ferreira, radica no seguinte: Temos como evidente que não pode pretender pôr-se seriamente em causa a existência, no ordenamento processual, de limites objectivos à admissibilidade do recurso, estabelecidos para as causas de menor relevância, tendo em conta a natureza dos interesses nela envolvidos ou a sua repercussão económica para a parte vencida: é que tais limitações derivam, em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os tribunais superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos tribunais inferiores - sob pena de o número daqueles ter de ser equivalente ao dos tribunais de 1.ª instância e com a consequente dispersão das tendências jurisprudenciais…” (Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª ed., Almedina, p. 114).

Desta sorte, vislumbra-se que a consagração legal da irrecorribilidade das decisões judiciais (terminativas), postulada pelo legislador, tem amparo legal e, por isso, não decorrem de dilemas controvertidos, mas de avales disciplinados, sufragados, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, balizados em contornos legalistas que observam, de igual modo, os princípios constitucionais supracitados, não podendo, de per si, considerarem-se normas violadoras de cânones constitucionais pelo facto de restringirem direitos que nessa lógica dogmática se afiguram como direitos não absolutos e como tal abertos à prevalência de outros direitos e valores fundamentais não menos relevantes para o Estado Democrático de Direito.

É mister aludir que, a lei processual demanda a observância de pressupostos subjectivos (legitimidade, interesse recursal e capacidade) e objectivos (recorribilidade, tempestividade e preparos), para a efectivação do direito ao recurso. Nesta asserção, bem se compreende que este elementar direito de dimensão constitucional carece de concretização na legislação ordinária aplicável. Desta feita, a inobservância coligada ou individualizada dos seus pressupostos comporta consequências jurídico-legais que repousam na inadmissibilidade do recurso conforme cura o artigo 678.º do CPC, sem que por esse facto se devam considerar “corrompidos” os normativos constitucionais ou tampouco os princípios e direitos fundamentais previstos na CRA.

Aprioristicamente, as ordens jurídicas proclamam direitos não absolutos, que podem ser restringidos, ou seja, não são irrestritos, sem prejuízo da aplicabilidade holística do princípio da dialecticidade que busca a sintonia e a coerência entre os pressupostos e motivações recursais como conditio sine qua non de admissibilidade do recurso, sob pena de se obstar o seu conhecimento, o que evidencia a prerrogativa conferida ao legislador ordinário de definição de parâmetros balizadores da recorribilidade das decisões judiciais, quer através da actualização dos valores das alçadas, quer dos demais pressupostos de admissibilidade do recurso, como se enfatizou.

No mais, a título de direito comparado, verifica-se que em Portugal o Tribunal Constitucional, na apreciação destas lides tem sufragado na sua jurisprudência (Acórdão n.º 91/2008), o seu juízo nos seguintes termos: “No respeitante à alegação de o artigo 678.º, n.º 4 do CPC, quando interpretado no sentido de o recurso não ser admissível, ser inconstitucional, por violação dos arts. 20.º., n.º 1 e 13.º, n.º 1 da CRP, refere-se que o Tribunal Constitucional tem sustentado que a Constituição não impõe que tenha de haver recurso de todos os actos do Juiz, como também não exige que se garanta sempre um segundo grau de jurisdição e, muito menos, um terceiro grau de jurisdição.
https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080091.

Acrescendo, ainda, “Destes excertos resulta que o recurso interposto não foi admitido porque ao caso não cabia recurso ordinário, por motivo respeitante à alçada do tribunal, logo, por aplicação dos critérios de recorribilidade em função do estabelecimento de alçadas, constantes do n.º 1 do artigo 674.º do Código de Processo Civil (CPC).

Dito isto, é deveras demonstrativo e lapidar que caem por terra os arrazoados suscitados pela Recorrente assentes na alegada violação do direito ao recurso cuja positivação se concretiza na legislação infraconstitucional demarcado por pressupostos específicos os quais em caso de inobservância são susceptíveis de despoletar a inadmissibilidade ou o não conhecimento do recurso, sem que, por isso, se considere estar em presença de vícios de inconstitucionalidade.

Na esteira das suas alegações, funda, ainda, a Recorrente que a aplicação da norma do n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 5-A/21 que alterou o valor da alçada inviabilizando o seu direito ao recurso deve ser declarada inconstitucional, porquanto, a sua entrada em vigor ocorreu durante a tramitação do processo, numa altura em que o exercício do direito ao recurso já estava devidamente acautelado com o valor inicial fixado no processo.

Quid Iuris;

Coligidos os autos constata-se que o processo em causa, emergente de um conflito laboral, foi admitido no Tribunal a quo em 2018 e julgado em 2022. Por seu turno, a Lei n.º 5-A/ 2021 entrou em vigor no mês de Abril de 2021, ou seja, mutatis mutandi um ano antes da prolacção da Decisão atacada pela ora Recorrente no presente recurso ordinário de inconstitucionalidade. Ademais, quando o recurso foi interposto (25/08/2022), já a Lei n.º 5-A/2021, estava em vigor há pelo menos um ano e fixou em kz 3 080 000, 00 (Três milhões e oitenta mil kwanzas), a alçada dos Tribunais de Comarca, em matéria cível.

Ora, a tramitação processual é um rito procedimental que carreia um entrecruzar de fases e etapas legalmente objectivadas que mobilizam a observância das normas plasmadas na Constituição e na lei, sucedendo-se, continuamente, até a final. O sistema processual angolano nas suas dimensões humana (indivíduo) e estadual (Tribunais) alicerça-se na conformação das vicissitudes decorrentes da dinâmica da vida social.

Há que reconhecer que a fixação de novas alçadas instituídas por diploma legal pretende acautelar a sua actualização, em face de uma conjuntura superveniente, a aprovação do actual mapa judiciário da República de Angola consagrado pela Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro - Lei Orgânica Sobre a Organização e o Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum que introduziu alterações substanciais profundas ao sistema judicial pátrio.

Como tal, a interpenetração de fenómenos sociais, humanos ou outros de cariz económico-financeiro podem interferir no processo judicial suscitando a ocorrência de incidentes processuais e a consequente alterabilidade do valor da alçada. Diante desta conjuntura, amiúde as partes litigantes, controversas, têm a faculdade de impulsionar à adequação e conformação da alçada para que subsistam in totum os interesses que pretendem ver acautelados na causa. Porém, este procedimento não foi adoptado pela Recorrente.

Demais disso, é evidente que o princípio da mutabilidade do valor da causa não comporta amarras impeditivas que inviabilizem a modificabilidade desse valor económico processual, tanto assim é que, em caso de reconvenção ou de verificação de incidentes no processo, o Código de Processo Civil prevê literalmente os regimes legais a trilhar acolhendo tal prerrogativa. Por isso, a des -sacralização da sua imutabilidade não oblitera os valores jus-normativos prescritos na CRA.

Trata-se, essencialmente, de uma moldura que compreende uma arquitectura holística cuja axiologia meta-constitucional informa normas substantivas e adjectivas, densas, ordenadas ao escopo da realização da justiça, por isso afigura-se que não tolhem as razões da Recorrente que partem duma perspectiva que descarta à unidade hermética do sistema jurídico-processual.

Sobre esta tematização, Gelson Amaro de Sousa testifica que “o bom seria se o valor da causa fosse fixado de forma definitiva desde o início da acção e assim permanecesse até o encerramento do processo. Todavia, nem sempre poderá ser assim. As dificuldades são tantas que qualquer tentativa de fixação permanente acaba por cair no vazio e pode até mesmo criar situações insustentáveis e de manifesta injustiça. Por isso é que se torna necessária revisar o valor da causa, após o julgamento para adequá-lo ao que foi decidido, para efeito de recurso e preparo do próprio recurso” (Do Valor da Causa, 4.ª ed. revista, atualizada e ampliada, Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 119).

No caso vertente, a Recorrente, insurge-se, contra a Decisão sindicada arvorando que a aplicabilidade do n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 5-A/2021, de 5 de Março, restringe de forma irrazoável e abusiva o exercício de um direito jusfundamental. Contudo, atendendo ao disposto nos artigos impugnados, é linear que não existem vícios a apontar às normas colimadas, porquanto, o mesmo, podia ter lançado mãos requerendo o aumento do valor da causa, de modo a que os efeitos recursais fossem, tempestivamente, salvaguardados, permitindo a concretização dos seus direitos e interesses processuais, maxime, tendo em atenção que o referido diploma não estatuiu à retroactividade aos processos trabalhistas, a contrario sensu, excluiu-o, sem que isso implique, necessariamente, afrontas aos ditames normativos da Lex Mater, mormente porque a Constituição não esgota a ciência do Direito.

Vale acrescer que, o artigo 305.º dispõe: “Compete ao Juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes.”

Acrescendo, “Embora as partes continuem obrigadas a indicar o valor da causa na petição inicial (…), sob pena de recusa do articulado (…), o juiz passou a ter uma intervenção activa muito mais acentuada na fixação desse valor, sobrepondo-se ao acordo das partes, o que fará, em regra, no despacho saneador, ou antes (…), na sentença, ou ainda no despacho de admissão do recurso (artigos 306.º e 641.º)” (Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4.ª ed. revista e ampliada, Ediforum, Março, 2017, Lisboa, p. 435).

À esta luz, é notório que o sistema jurídico-processual angolano no domínio trabalhista continua a vicejar a afirmação de um quadro normativo garantístico de efectivação de um processo justo, legal e équo. Neste contexto, incumbe aos operadores da justiça na sua actuação judicante uma atitude mais pragmática, diligente e consentânea com a missão que lhes é confiada pelas leis , de intervenção mais activa no processo, despojado de passividade para assumpção de um maior reforço do inquisitório na gestão processual da lide e na correcção de aspectos processuais.

Com efeito, verifica-se aqui no que concerne à modificação do valor da causa que a hipervalorização do princípio do dispositivo, no direito processual privado não atribui reconhecimento apenas às partes litigantes para praticarem actos conducentes ao andamento da lide, pelo que, no caso em presença, podia, de igual modo, o Julgador adequar o valor da causa em função da teleologia imposta pela lei em causa. Porém, tal não se verificou e malgrado a Recorrente, embora consciente do resultado em desfecho, preferiu não suscitar o incidente processual, requerendo a devida actualização do valor da causa, prejudicando, desta forma, os seus lídimos direitos e garantias fundamentais.

Deveras, percorridos os pontos n.ºs 4, 6 e 7 das alegações rematadas pela Recorrente, plasmadas dos autos (fls. 159 a 160), infere-se a sua posição de não requerer ainda mesmo antes da Decisão proferida pelo Tribunal a quo o aumento, o ajustamento ou actualização do valor da alçada para efeitos recursais.

Nesta perspectiva, as considerações precedentes permitem perfilar o entendimento de que os normativos jazentes nos artigos 678.º do CPC e no 2.º da Lei n.º 5-A/2021 cuja ratio teleológica se baseiam no mesmo sentido normativo da letra e espírito da lei, convergem para um postulado dominante na generalidade dos sistemas judiciários que visa, primacialmente, estabelecer parâmetros condutores da simplificação processual (ajustados às circunstâncias), evitando a banalização, a morosidade e aumento processual desnecessário derivado do recurso para os tribunais superiores e a eternização indefinida da litigiosidade.

Dessarte, esta Corte Constitucional considera que a Recorrente face ao período jacente entre a interposição da acção, a audiência de julgamento e a entrada em vigor da norma revidada logrou tempo atendível para impugnar e requerer ao Tribunal a quo a alteração do valor da causa, a fim de atender os seus interesses recursais, pois não agindo deste modo afigura-se irrazoável trazer à liça a invocação do artigo 678.º do CPC e o normativo do n.º 3 do artigo 2.º calcado na Lei n.º 5-A/21 quando, em boa razão, o fundamento da querela não se devia basear, propriamente, nos preceitos legais por si arregimentados, mas na omissão de um dever de cuidar, na inobservância de um procedimento processual que o mesmo assumiu de forma consciente, cuja incumbência legal se atribui quer ao julgador como às partes em confronto conformarem o ajustamento do valor da causa.

Em face do defluido, conclui-se que a Recorrente não logrou convencer a esta Corte Constitucional de argumentos de fundamentação jurídico-constitucional, lógicos e plausíveis susceptíveis do reconhecimento da inconstitucionalidade das normas que impugna no presente recurso ordinário de inconstitucionalidade.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Sessão, os Juízes Conselheiros da 2.ª Câmara do Tribunal Constitucional, em:
a) NÃO DECLARAR INCONSTITUCIONAL AS NORMAS CONTIDAS NOS ARTIGOS 678.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E NO N.º 2 DO ARTIGO 3.º DA LEI Nº 5-A/21 - LEI QUE ALTERA A LEI SOBRE ACTUALIZAÇÃO DAS CUSTAS JUDICIAIS E ALÇADAS DOS TRIBUNAIS.

b) NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO ORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE.
Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 25 de Julho de 2024.

OS JUÍZES CONSELHEIROS DA 2.ª CÂMARA

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira (Presidente e Relatora)

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dr. Gilberto de Faria Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto