ACÓRDÃO N.º 922/2024
PROCESSO N.º 1126-B/2023
Recurso Extraordinário de inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional
I. RELATÓRIO
O Ministério Público, Pedro Lussati, Lourenço Afonso Felisberto Pascoal, Fernando Abel, Atanásio Lucas José, Inácio Sangueve, Evaristo Inocêncio Cambande, Almeida Adão, Joaquim José Amado, Aníbal Pires Nunes Antunes, Hermez Francisco Tyaunda, Manuel Correia, Ildefonso Armando Gama Ferraz, Manuel Evaristo Pacheco, Abreu Jamba Lumbongo, António João Martins Kibiana, Jacinto Hengombe e José Tchiwana vieram ao Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 49.º e 50.º da Lei do Processo Constitucional (LPC), impetrar recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 6217/23.
Neste processo, à parte o Ministério Público, os demais Recorrentes, todos eles melhor identificados nos autos, foram condenados por crimes diversos, entre os quais, o crime de peculato, previsto e punível pela alínea c) do n.º 1 do artigo 362.º, com referência à alínea a) do artigo 391.º, ambos do Código Penal (CPA), crime de recebimento indevido de vantagem, na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 357.º, o crime de fraude no transporte ou transferência de moeda para o exterior, previsto e punível pelo artigo 464.º, o crime de retenção de moeda, previsto e punível pelo artigo 468.º, todos do CPA, o crime de branqueamento de capitais, na forma continuada, previsto e punível pelas disposições combinadas do n.º 1 do artigo 82.º da Lei n.º 5/20, de 27 de Janeiro – Sobre a Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais, Financiamento do Terrorismo e Proliferação de Armas, do artigo 29.º do CPA, bem como pelo crime de falsificação de documentos, previsto e punível pela alínea d) do n.º 1 do artigo 251.º, também do Código Penal Angolano.
Na origem do Acórdão do Tribunal Supremo, ora impugnado, está a decisão do Tribunal da Relação de Luanda que recaiu sobre o recurso impetrado do aresto condenatório prolactado, a 10 de Novembro de 2022, pela 3.ª Secção da Sala dos Crimes do Tribunal da Comarca de Luanda, onde decorreu o julgamento em 1.ª instância.
Em face do Acórdão do Tribunal da Relação de Luanda, o Tribunal Supremo decidiu, relativamente a alguns dos Recorrentes, devidamente identificados no presente Processo, convolar o crime de recebimento indevido de vantagem para o crime de peculato e, em consequência, agravar a medida da pena.
Alterou, também, o decidido pelo Tribunal da Relação de Luanda sobre o pagamento da indemnização solidária e o património incongruente. Decidiu, em consequência, manter a decisão tomada a respeito pelo Tribunal a quo, que declarou perdidos a favor do Estado os bens dos aqui Recorrentes, nos termos dos artigos 4.º e 11.º da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens, condenando, a todos, a pagar uma indemnização solidária ao Estado a título de danos patrimoniais, no montante de USD 1 286 267 885, 87 (mil milhões, duzentos e oitenta e seis milhões, duzentos e sessenta e sete mil, oitocentos e oitenta e cinco dólares e oitenta e sete cêntimos).
O decidido pelo Tribunal Supremo sobre esta matéria resulta do facto de o Tribunal da Relação de Luanda ter declarado nula a perda a favor do Estado dos bens pertencentes a Inácio Sangueve, Atanásio Lucas José, Abreu Jamba Lombongo e ao co-arguido Henriques Chilando Jamba Ngueve Alfredo, não Recorrente nos presentes autos.
A par disso, o Tribunal da Relação de Luanda havia exceptuado os Recorrentes António João Manuel Kibiana, Inácio Sangueve, Fernando Abel, Aníbal Pires Nunes Antunes e Hermes Francisco Tyaunda do pagamento ao Estado da indemnização solidária, tendo-os condenando, ao invés, a pagar os montantes concretos de que se haviam locupletado.
Entretanto, a 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo decidiu, porém, devolver os bens declarados perdidos a favor do Estado aos herdeiros de Gamaliel Óscar Pereira da Gama, co-arguido no processo em que foram condenados os ora Recorrentes, que faleceu antes do julgamento.
No demais, decidiu confirmar a decisão do Tribunal da Relação de Luanda.
Nas alegações submetidas a este Tribunal, o Ministério Público entende que o Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo violou o disposto nos artigos 23.º, 72.º, n.º 2 do 174.º e n.º 1 do 177.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA), bem como o artigo 6.º do Código do Processo Penal Angolano (CPPA) e os artigos 6.º, 8.º e 9.º, todos da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro – Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens, na parte que ordena a devolução dos bens apreendidos ao arguido Henriques Chilombo Ngueve Alfredo e aos legítimos herdeiros do arguido Gamaliel Óscar Pereira da Gama, falecido antes do julgamento, na 1.ª Instância.
Assim, o Ministério Público vem, em síntese, dizer o que a seguir se enuncia:
1. A legislação penal angolana consagra o princípio da adesão, conferindo aos tribunais criminais competência para decidir sobre responsabilidade civil emergente de ilícitos criminais, nos termos da lei civil, podendo, inclusive, arbitrar oficiosamente indemnização a favor dos lesados (artigos 140.º do CPA e 75.º e 89.º do CPPA).
2. O CPA consagra a perda a favor do Estado das coisas, direitos ou vantagens que tenham sido produzidos, adquiridos, auferidos ou acedidos por factos ilícitos típicos, que representem uma vantagem patrimonial indevida de qualquer espécie e ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto (artigos 120.º, n.ºs 1 e 3 e 122.º, n.º 2, ambos do CPA).
3. Quer o Tribunal de 1.ª Instância, quer o Tribunal da Relação de Luanda, declararam, e muito bem, os bens do de cujus Gamaliel Óscar Pereira da Gama perdidos a favor do Estado, por se tratar de vantagens de crime, sendo que também foi confirmada a sua responsabilidade civil solidária, inclusive pelo Tribunal Supremo e produzida prova suficiente sobre a proveniência ilícita dos bens de que se beneficiaram os arguidos, incluindo o malogrado, que, por força da morte, teve extinta a sua responsabilidade criminal.
4. A devolução de parte dos referidos bens, onde se inclui a residência n.º 36, do condomínio Malunga, casa de morada de família, que foi apreendida, é contraditória com a responsabilidade solidária que se reconheceu e, a admitir-se, estar-se-ia a consagrar o crime como fonte aquisitiva de direitos, pois, a sua atribuição aos herdeiros pressupõe o reconhecimento da sua legítima titularidade pelo de cujus.
5. A extinção do procedimento criminal não obsta à declaração de bens a favor do Estado, como decorre da letra e do espírito das normas dos vários diplomas, internos e internacionais, que compõem o ordenamento jurídico penal angolano, incluindo os Códigos Penal e do Processo Penal, como supra demonstrado.
6. Quanto ao arguido Henriques Chilambo Jamba Ngueve Alfredo, que era, à data dos factos, Chefe de Repartição de Pessoal e Quadros da Unidade de Guarda Presidencial (UGP), resultou provado que todo o património que ostenta foi adquirido com fundos desviados da Casa de Segurança do Presidente da República (CSPR), não se percebendo a razão da devolução dos bens apreendidos, quando paradoxalmente os seus coadjuvantes, entre os quais, Ildefonso Gama Ferraz e Aníbal Pires Antunes, pelas mesmíssimas práticas, foram condenados e os seus bens declarados perdidos a favor do Estado Angolano.
7. A decisão de devolução de bens, com recomendação da acção cível de restituição, representa uma excepção peremptória impeditiva da pretensão de recuperação dos mesmos, configurando uma insanável contradição na decisão recorrida.
8. O aresto impugnado, em face do exposto, contraria, de modo flagrante, os princípios da legalidade, da igualdade e do direito de propriedade do Estado, consagrados no n.º 2 do artigo 174.º, nos artigos 23.º e 37.º, todos da CRA.
Por seu turno, os demais Recorrentes, inconformados com a decisão ora posta em crise, invocam que a mesma viola princípios e direitos consagrados na Constituição da República de Angola (CRA), designadamente, os princípios da legalidade, da igualdade, da tutela jurisdicional efectiva, da proibição da reformatio in pejus, da proibição da auto incriminação, da responsabilidade penal, da proibição da retroactividade da lei penal, bem como os direitos ao contraditório, ao julgamento justo e conforme, à presunção de inocência e ao in dubio pro reo, a inviolabilidade do domicílio, à intimidade da vida privada e violação de domicílio e ao direito à propriedade privada.
Destarte, dizem, em resumo, o seguinte:
Pedro Lussati, condenado na pena de 12 anos de prisão pela prática dos crimes de peculato, na forma continuada, fraude no transporte ou transferência de moeda para o exterior, branqueamento de capitais, na forma continuada e retenção de moeda, alega que:
1. Encontra-se em prisão preventiva há mais de 32 meses, desde 13 de Maio de 2021, estando já esgotados os prazos ordinários e extraordinários da prisão preventiva, face a ausência de decisão condenatória com trânsito em julgado, viola o direito à liberdade de locomoção, por força do disposto nos seguintes artigos: n.º 1 do 57.º, 64.º, n.º 1 do 66.º, n.ºs 1 e 2 do 36.º, 46.º, n.º 2 do 174.º, n.º 1 do 177.º, 1.º, 2.º e 13.º, todos da CRA, conjugados com a alínea b) dos n.ºs 1, 3 e 4 do 267.º, alínea b) do n.º 1 do 268.º, alínea b) do n.º 1 do 282.º, 283.º, 284.º, alínea c) do n.º 4 do 290.º, todos do Código do Processo Penal Angolano (CPPA).
2. O prolongamento da sua situação carcerária viola ainda os princípios da presunção de inocência (n.º 2 do artigo 67.º da CRA), da igualdade de tratamento, da proibição de tratamento degradante e desumano, da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRA) e do processo democrático, visto que, por dever de ofício, qualquer juiz deve fazer cessar toda prisão ilegal. Viola, ainda, o direito ao julgamento justo e conforme (artigo 72.º da CRA) e, consequentemente, o princípio do processo justo e equitativo pela inobservância do ritualismo processual, no que se refere à manutenção da prisão preventiva. Viola também o princípio da independência dos Tribunais e dos Juízes (artigos 175.º e nº 1 do 179.º, da CRA), pelo peso da reportagem da TPA, sendo que o clamor social não pode justificar o prolongamento da sua situação carcerária.
3. O aresto recorrido é nulo, sendo que viola o princípio da legalidade por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos: n.º 2 do 660.º, alínea c) do n.º 1 do 668.º e n.º 1 do 716.º, todos do Código de Processo Civil (CPC) tendo, por outro lado, conhecido de questões sobre a perda alargada de bens incompatíveis com o regime jurídico previsto nos artigos 4.º, 7.º, n.º 1 do 8.º e n.ºs 1, 3 e 4 do 11.º, todos da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro. Viola também o direito ao julgamento justo e conforme.
4. O aresto recorrido viola o direito à propriedade privada (artigos 14.º, n.ºs 1 e 2 do 37.º e alínea d) do n.º 1 do 89.º, todos da CRA), uma vez que os seus bens foram colocados à venda antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, que os declara perdidos a favor do Estado, o que contraria, igualmente, o regime jurídico decorrente do artigo 11.º da Lei n.º 15/18, 26 de Dezembro. Nesta medida, viola, também, o direito ao julgamento justo e conforme.
5. A decisão recorrida viola o princípio do in dubio pro reo decorrente do n.º 2 do artigo 67.º da CRA, por insuficiência da matéria de facto provada, nos termos da alínea a) do n.º 3 e do n.º 4 do artigo 476.º do CPPA, pois que a decisão de direito não encontra apoio factual na matéria de facto provada, uma vez que não detinha qualquer função que lhe permitisse o contacto directo com o dinheiro público. Viola, igualmente, o princípio do processo justo e equitativo.
6. As buscas e apreensões verificadas no seu domicílio sem mandados válidos, além de serem nulas por violação do n.º 4 do artigo 224.º do CPPA, configuram também violação dos direitos à inviolabilidade do domicílio e à intimidade da vida privada, previstos no n.º 1 do artigo 32.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 33.º, ambos da CRA.
7. A decisão recorrida viola o direito ao julgamento justo e conforme e, consequentemente, o princípio do processo justo e equitativo por, na fase da instrução preparatória, não ter sido acautelado o seu direito à defesa, pois foi compelido a prestar declarações contra si mesmo, o que igualmente viola o disposto nas alíneas f) e g) do artigo 63.º, n.º 1 do 67.º, n.º 2 do 174.º e no n.º 1 do 177.º, todos da CRA, bem como viola o princípio do contraditório.
8. O aresto viola o direito à integridade física, previsto nos artigos 31.º e 60.º da CRA, pelo facto de ter sido sequestrado e mantido em cativeiro e interrogado 24h00 sob 24h00, durante 10 dias.
9. A nulidade de todo o decidido também decorre do facto de o processo ter sido promovido por pessoas estranhas ao Ministério Público, sendo que viola a alínea c) do artigo 186.º da CRA, do n.º 1 do artigo 14.º e do artigo 312.º, ambos do CPPA.
Lourenço Afonso Felisberto Pascoal, condenado pelo Tribunal Supremo na pena de 5 (cinco) anos de prisão efectiva pelo crime de peculato, apesar de, em sede do Tribunal da Relação de Luanda, ter sido condenado a 3 anos de prisão pelo crime de recebimento indevido de vantagem, alegando que a decisão recorrida viola o princípio do contraditório, na medida em que, tendo o Ministério Público interposto recurso, não foi notificado deste, não tendo tido, por isso, a oportunidade de se defender, sendo que nenhuma condenação poderá ser imposta sem a necessária defesa.
Fernando Abel, condenado pelo Tribunal Supremo, em cúmulo jurídico, a 7 (sete) anos de prisão pelos crimes de peculato e de branqueamento de capitais, sendo que, em sede do Tribunal da Relação de Luanda, havia sido condenado na pena de 3 anos de prisão pelo crime de recebimento indevido de vantagem, alega que:
1. Foi condenado sem provas materiais que permitissem aferir a sua culpabilidade pela prática dos crimes de peculato, recebimento indevido de vantagem e branqueamento de capitais, sendo que o direito penal, na sua abrangência e aplicação, não se compactua com factos fictícios ou presunções.
2. Afirmou peremptoriamente, em todas as fases do processo, que não participou nem assistiu ao desenrolar dos factos objecto dos presentes autos, uma vez que pertencia ao Batalhão de Transporte Rodoviário do Cuando Cubango, sem nenhuma função de responsabilidade.
3. O Tribunal Supremo ao confirmar a pena de 7 anos de prisão, proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, ofendeu não só o princípio da legalidade, como, especificamente, o n.º 1 do artigo 65.º e o n.º 2 do artigo 67.º da CRA, que consagram o princípio da pessoalização e intransmissibilidade da responsabilidade penal e o princípio da presunção de inocência.
4. O Acórdão recorrido ofende o princípio da verdade material, pois, sem qualquer exercício legal e jurisprudencial, amparou na íntegra a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, o que também viola o princípio do in dubio pro reo, ao ser tomada uma decisão discriminatória baseada em razões subjectivas e não fundamentadas, atendendo ao objecto do recurso interposto (ver artigo 158.º e o n.º 2 do artigo 659.º, ambos do CPC e os artigos 11.º e 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica e de Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum).
5. O Acórdão recorrido fez má qualificação dos factos e mobilizou normas que não se compaginam com tudo quanto foi produzido nos presentes autos, ofendendo, nesta medida, o princípio da legalidade, previsto no n.º 1 do artigo 2.º e no n.º 2 do artigo 175.º, ambos da CRA. Também não respeitou o direito a um julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da Constituição da República de Angola.
Atanásio Lucas José, condenado pelo Tribunal Supremo, em cúmulo jurídico, na pena de 7 anos de prisão pelos crimes de peculato e branqueamento de capitais, apesar de não ter recorrido do aresto do Tribunal da Relação, nos termos do qual fora condenado a 3 (três) anos de prisão, suspensa por 5 anos, pelo crime de recebimento indevido de vantagem, alega que:
1. Não recorreu da decisão do Tribunal da Relação, não foi notificado do recurso do Ministério Público que requereu a alteração da pena no Tribunal Supremo, sendo que não lhe foi dada a possibilidade de exercer o seu direito à defesa, em clara violação aos artigos 29.º e 65.º da CRA.
2. O Acórdão recorrido violou claramente a proibição da reformatio in pejus, precisamente, os n.ºs 2 e 3 do artigo 473.º e o n.º 5 do artigo 510.º, ambos do CPPA, bem como os direitos à ampla defesa e ao contraditório, o que fez com que o julgamento não fosse justo, o que, efectivamente, viola o disposto no artigo 72.º da CRA.
3. Ficou provado em audiência de julgamento que todos os actos por si praticados decorreram de orientações do co-arguido Manuel Correia, que afirmou que os seus subordinados nada sabiam do seu esquema com os generais.
4. O facto de ter sido condenado em pena superior à do senhor Manuel Correia viola, salvo entendimento contrário, os princípios da igualdade e da legalidade, previstos nos artigos 6.º e 23.º da CRA.
5. Não ficou provado, em audiência de julgamento, que as suas duas viaturas e uma residência configuravam património incongruente, na medida em que foram adquiridas de forma legal e em função do seu rendimento mensal.
6. O Ministério Público, relativamente ao património arrolado, utilizou as suas declarações para o incriminar, violando assim o princípio da não auto-incriminação.
7. O Acórdão recorrido criou dúvidas quanto ao crime que cometeu, não questionando se foram os qualificados pela primeira instância, os qualificados pelo Tribunal da Relação ou os qualificados pelo Tribunal Supremo, sendo que, diante da dúvida, deve-se sempre aplicar o princípio in dubio pro reo, o corolário da presunção de inocência.
Inácio Sangueve, condenado pelo Tribunal Supremo na pena única de 7 anos de prisão pelos crimes de peculato e de branqueamento de capitais, apesar de não ter recorrido da decisão do Tribunal da Relação, nos termos da qual fora condenado a 3 anos de prisão, suspensa por 5 anos, pelo crime de recebimento indevido de vantagem, alega que:
1. Foi acusado e pronunciado pelos crimes de branqueamento de capitais e de peculato.
2. Na fase de julgamento ficou provado que não é funcionário público, pois foi recrutado pelo Comité Municipal do MPLA em Menongue, Província de Cuando Cubango, como mobilizador eleitoral para o povo que habitava no mato, sendo que, por exercer essa actividade, passou a receber salários na Casa Militar do Presidente da República.
3. Da decisão do Tribunal da Relação, que convolou os crimes de que vinha condenado para o crime de recebimento indevido de vantagem, não interpôs recurso, mas o Ministério Público fê-lo e não foi notificado para contra-alegar.
4. O Tribunal Supremo, ao conhecer do recurso, alterou a qualificação, condenando-o pelo crime de peculato, agravando, assim, a sua responsabilidade penal.
5. O recurso do Ministério Público foi interposto no interesse da defesa e, por essa razão, o Tribunal Supremo estava impedido de aplicar pena considerada mais grave.
Evaristo Inocêncio Cambande, cuja condenação na pena de 9 anos de prisão pelos crimes de peculato e de branqueamento de capitais, ambos na forma continuada, foi confirmada pelo Tribunal Supremo, alega que:
1. Encontrava-se, no dia 21/06/2021, no seu local de trabalho, na unidade militar da Unidade de Protecção de Obras e Infraestruturas Especiais do Estado (UPOIEE), foi ouvido, pelo Magistrado do Ministério Público, na qualidade de declarante nos presentes autos, sendo que, a 12/08/2021, foi notificado e ouvido como arguido pelos mesmos factos prestados na qualidade de declarante, pelo mesmo Representante do Ministério Público.
2. O n.º 4 do artigo 64.º, do CPPA dispõe que as declarações prestadas no processo, por qualquer pessoa, antes de ter sido constituída arguida, não podem ser utilizadas como meio de prova contra ela. Destarte, o Ministério Público, com este comportamento, violou o princípio da não autoincriminação, consagrado na alínea e) do artigo 63.º, da CRA.
3. Notificado do despacho de pronúncia apresentou a sua contestação, indicou o rol de testemunhas e pediu que se oficiasse o Estado Maior General para que remetesse o relatório de recadastramento dos efectivos afectos a UPOIEE, elementos importantes para sua defesa, o que não foi atendido pelo Tribunal Supremo, violando-se, assim, o princípio da tutela jurisdicional efectiva, por denegação de justiça.
4. A decisão recorrida viola o princípio da legalidade e do devido processo legal, pelo facto de o Representante do Ministério Público, que interveio na instrução contraditória, ter sido o mesmo que interveio no julgamento, o que foi arguido e ignorado pelo juiz da causa (ver artigos 35.º a 37.º do CPPA, aplicados por força do artigo 54.º deste mesmo diploma legal).
5. O processo penal impõe a identificação do grau de participação do arguido na prática do crime e da sua culpabilidade para a determinação da pena. O facto de ter sido condenado, solidariamente, no pagamento de indemnização constitui uma clara violação do princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal e da separação de culpa, reflectido no artigo 65.º da CRA.
Almeida Adão, condenado pelo Tribunal Supremo na pena de 5 anos de prisão pelo crime de peculato, sendo que, em sede do Tribunal da Relação de Luanda, foi condenado na pena de 3 anos de prisão pelo crime de recebimento indevido de vantagem, suspensa por 5 anos, alegou que:
1. Foi condenado em 1.ª instância na pena de 7 (sete) anos de prisão maior, pelo crime de peculato, na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 362.º do CPA e no pagamento de AOA 200 000,00 (duzentos mil Kwanzas) de taxa de justiça e de uma indemnização solidária.
2. Da decisão do Tribunal a quo, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Luanda, que o condenou na pena de 3 (três) anos de prisão, pelo crime de recebimento indevido de vantagem, previsto e punível pelo artigo 357.º do CPA, suspensa por 5 (cinco) anos, nos termos do artigo 50.º do CPA, tendo sido posto em liberdade.
3. Surpreendentemente, tomou conhecimento, por meio do Acórdão recorrido, que o Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação interpusera recurso da referida decisão, alegando que não procedia a convolação do crime de peculato para o crime de recebimento indevido de vantagem, violando, deste modo, o disposto no artigo 480.º do CPPA.
4. Ao alterar a pena aplicada pelo Tribunal da Relação, com a condenação pelo crime de peculato, o Tribunal Supremo violou a lei na medida em que está impedido de apreciar e julgar as questões de facto e, ainda que assim não fosse, o acórdão recorrido viola o disposto no n.º 2 do artigo 496.º do CPPA e, consequentemente, os princípios da legalidade (artigo 6.º da CRA), do julgamento justo e conforme (artigo 72.º da CRA), da igualdade (artigo 23.º CRA), do contraditório, da proporcionalidade, da presunção de inocência, da intransmissibilidade da responsabilidade penal, bem como o princípio do in dubio pro reo, previstos no n.º 1 do artigo 57.º, no n.º 1 do artigo 65.º, e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 67.º, todos da CRA.
Joaquim José Amado, que viu agravada, pelo Tribunal Supremo, para 5 (cinco) anos de prisão, a pena de 4 anos em que havia sido condenado, pelo Tribunal da Relação de Luanda, pela prática do crime de peculato, alega que:
1. Encontra-se detido, desde o dia 12 de Agosto de 2021, estando em excesso de prisão preventiva, sendo, por isso, a sua detenção inconstitucional.
2. A detenção verificou-se após ter sido ouvido, a 21 de Junho de 2021, na qualidade de declarante, tendo, posteriormente, sido constituído arguido na sequência das declarações prestadas, o que viola o princípio da não autoincriminação previsto nas disposições combinadas da alínea e) do artigo 63.º e do artigo 72.º, ambos da CRA, bem como do n.º 4 do artigo 64.º, do CPPA.
3. O Acórdão recorrido violou, igualmente, o princípio do contraditório pelo facto de, em sede do Tribunal de 1ª Instância, nunca lhe ter sido permitido, por meio do seu mandatário judicial, consultar o processo no seu escritório, limitando-se a fazê-lo no cartório do Tribunal e no horário normal de expediente, contrariamente ao tempo dado ao Ministério Público, o que viola, também, o princípio da igualdade das armas previsto no artigo 29.º, na alínea e) do artigo 63.º, no artigo 72.º, no n.º 2 do artigo 174.º e no n.º 2 do artigo 226.º, todos da CRA.
4. O Acórdão recorrido viola, ainda, o princípio da legalidade pelo facto de não terem sido rubricados pelo Representante do Ministério Público os documentos em folha de caderno e manuscritos que lhe entregou e, nem tão pouco, ter sido lavrado auto, o que constitui violação às disposições combinadas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 225.º do CPPA, artigos 6.º, 72.º e n.º 2 do artigo 226.º, todos da CRA.
5. O Acórdão recorrido viola, por outro lado, o princípio da proibição da reformatio in pejus, na medida em que, tendo sido condenado, em 1.ª Instância, na pena de 4 anos de prisão, pela prática do crime de peculato, decisão mantida em sede do Tribunal da Relação de Luanda, viu o Tribunal Supremo agravar a pena para 5 anos de prisão, além de não ter sido notificado do recurso interposto pelo Ministério Público, o que também viola o disposto no n.º 3 do artigo 473.º do CPPA.
Aníbal Pires Nunes Antunes, condenado pelo Tribunal Supremo na pena de 5 anos de prisão pelo crime de peculato, sendo que, em sede do Tribunal da Relação, foi condenado na pena de 3 anos de prisão pelo crime de recebimento indevido de vantagem, suspensa por 5 anos, alega que:
1. Os Magistrados do Ministério Público que deduziram a acusação, em sede de instrução preparatória e contraditória, participaram da fase de julgamento e, tendo sido arguido tal impedimento, o juiz a quo indeferiu-o com fundamento no artigo 54.º do CPPA, evocando que o requerimento deveria ter sido dirigido aos superiores hierárquicos dos respectivos Magistrados, o que fere de inconstitucionalidade o Acórdão recorrido.
2. A acusação é nula na medida em que não contém a assinatura do representante do Ministério Público, nos termos do n.º 1 do artigo 329.º do CPPA.
3. As provas foram obtidas por pessoas estranhas à investigação e à instrução do processo e ao arrepio do preceituado nos números 1 e 2 do artigo 184.º do CPPA e nas disposições combinadas dos artigos 363.º do Código Civil, alíneas b) e c) do artigo 46.º do Código de Processo Civil e ainda 51.º e 162.º do Código do Notariado, aplicáveis por força do artigo 3.º do Código de Processo Penal Angolano, o que as fere de nulidade.
4. O Acórdão recorrido, em face do exposto, viola os princípios constitucionais da legalidade e da legalidade penal, da igualdade, do contraditório, do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, bem como o princípio da não auto incriminação, plasmados nos artigos, 6.º, 23.º, alínea g) do artigo 63.º, n.º 2 do artigo 174.º e do artigo 29.º, todos da CRA.
5. Os artigos 3.º, 4.º e 8.º da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, são inconstitucionais por violação dos princípios da legalidade, da igualdade, do contraditório, da não auto-incriminação, da vinculação temática, da legalidade penal, da culpa e aplicação rectroactiva da lei.
Hermez Francisco Tyaunda, cuja condenação na pena de 3 (três) anos de prisão pelo crime de recebimento indevido de vantagem, na forma continuada, foi confirmada quer pelo Tribunal Supremo, quer pelo Tribunal da Relação, alega que:
1. O Acórdão recorrido considerou estarem provados os factos que lhe são imputados e que consubstanciam o crime de recebimento indevido de vantagem, mas o Tribunal Supremo, por via de regra, reaprecia a matéria de direito, nos termos do n.º 1 do artigo 501.º do CPPA e só excepcionalmente pode conhecer da matéria de facto (n.º 3 do artigo 476.º do CPP).
2. Quer em sede de julgamento, quer noutras circunstâncias, não foi produzida prova capaz de sustentar a decisão do Tribunal a quo quanto ao facto de ter entregado ou recebido dinheiro do co-Recorrente Pedro Lussati.
3. A decisão recorrida violou, deste modo e grosseiramente, o princípio do in dubio pro reo que é correlativo do princípio constitucional da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 67.º da CRA, porquanto, não se achou provada, subsistindo várias dúvidas, a prática do crime de recebimento indevido de vantagem.
Manuel Correia, condenado na pena de 3 anos de prisão pelos crimes de peculato e de branqueamento de capitais, ambos na forma continuada, alega que:
1. O Acórdão recorrido é inconstitucional por violação do direito a um julgamento justo e conforme, nos termos do artigo 72.º da CRA, do artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, por ter sido condenado a pagar uma indemnização solidária fixada a favor do Estado que se mostra excessivamente superior ao prejuízo causado a este.
2. Tendo sido absolvido pelo Tribunal de primeira instância do crime de associação criminosa, até porque, os então arguidos, não agiram de forma concertada, deveria cada arguido ser condenado a indemnizar o Estado na proporção do dano por si causado, isto é, no valor de Kz 90 424 126, 04 (noventa milhões, quatrocentos e vinte e quatro mil, cento e vinte e seis Kwanzas e quatro cêntimos) e não de forma solidária, no valor de USD 1 286 267 885, 87, como ocorre na decisão recorrida.
3. O aresto recorrido ofendeu o princípio da não retroactividade da lei penal e da legalidade, de acordo com o n.º 3 do artigo 65.º da CRA, pelo facto da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, que serviu de fundamento para a apreensão do património do arguido, incidir sobre bens adquiridos antes da sua entrada em vigor.
4. O Acórdão recorrido não respeitou o princípio da proibição do excesso, previsto no artigo 57.º da CRA, visto que a indemnização solidária fixada a favor do Estado é excessivamente superior ao prejuízo causado e é, de igual modo, muito superior ao dano causado ao próprio Estado.
Ildefonso Armando Gama Ferraz, que, em sede do Tribunal Supremo, foi absolvido do crime de branqueamento de capitais e condenado na pena de 5 (cinco) anos de prisão pelo crime de peculato, alega que:
1. Os Magistrados do Ministério Público que deduziram a acusação, em sede da instrução contraditória, participaram da fase de julgamento e, tendo sido arguido tal impedimento, o juiz a quo indeferiu-o com fundamento no artigo 54.º do CPPA, evocando que o requerimento deveria ter sido dirigido aos superiores hierárquicos dos respectivos Magistrados.
2. A acusação é nula na medida em que não contém a assinatura do representante do Ministério Público, nos termos do n.º 1 do artigo 329.º do CPPA.
3. As provas foram obtidas por pessoas estranhas à investigação e à instrução do processo, ao arrepio do preceituado nos n.ºs 1 e 2 do artigo 184.º do CPPA e das disposições combinadas dos artigos 363.º do Código Civil, alíneas b) e c) do artigo 46.º do Código de Processo Civil, e ainda, dos artigos 51.º e 162.º do Código do Notariado, aplicáveis por força do artigo 3.º do CPPA, o que as fere de nulidade.
4. O Acórdão recorrido, em face do exposto, viola os princípios constitucionais da legalidade e da legalidade penal, da igualdade, do contraditório, do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva e da não auto incriminação, plasmados nos artigos, 6.º, 23.º, alínea g) do artigo 63.º, n.º 2 do artigo 174.º e do artigo 29.º, todos da CRA.
5. Os artigos 3.º, 4.º e 8.º da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro são inconstitucionais por violação dos princípios da legalidade, da igualdade, do contraditório, da não auto-incriminação e da vinculação temática, da legalidade penal, da culpa e da proibição da aplicação rectroactiva da lei penal.
Manuel Evaristo Pacheco, condenado pelo Tribunal Supremo na pena de (5) cinco anos de prisão pelo crime de peculato, sendo que, em sede do Tribunal da Relação de Luanda, havia sido condenado a 3 anos de prisão pelo crime de recebimento indevido de vantagem, alega que:
1. É coronel reformado das Forças Armadas Angolanas, nomeado Comandante da Unidade Especial de Desminagem (UED) em 30 de Maio de 2016, sob a Ordem n.º 869-2016, sendo importante considerar que as acções de um militar obedecem às ordens superiores emanadas, sob pena de incorrer no crime de insubordinação, nos termos do artigo 17.º da Lei sobre a Justiça Penal Militar.
2. Foi-lhe imposta uma pena de 5 (cinco) anos por crime que não cometeu, o que ficou claro nas declarações das testemunhas e do Coordenador da UED, Tenente-General António Mateus Júnior de Carvalho, que autorizou o enquadramento de 102 trabalhadores civis, incluindo a Sra. Vitória Quitongo Campos, que foi integrada em 2018, e a Sra. Luísa Sales Buite, que foi enquadrada em 2010.
3. As declarações das testemunhas demonstraram, assim, que não se apropriou de dinheiro do Estado e que todas as suas actividades na UED requeriam autorização do Tenente-General António Mateus Júnior de Carvalho, sendo que o enquadramento de todo o efectivo desta unidade não obedeceu a qualquer concurso público, tratando-se, na maioria, de familiares e amigos de oficiais pertencentes à unidade.
4. O facto de ter enquadrado uma ou duas senhoras familiares que ocupam a função de cozinheiras e recebem o salário de forma digna não deve levar a que se fale em delapidar o Estado.
5. O Acórdão recorrido violou, assim, o n.º 1 do artigo 29.º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva), o 174.º (função jurisdicional) e os princípios do in dubio por reo e do nullum crimen sine lege.
Abreu Jamba Lumbongo, condenado pelo Tribunal Supremo na pena de (5) cinco anos de prisão pelo crime de peculato, sendo que, em sede do Tribunal da Relação de Luanda, havia sido condenado a 3 anos de prisão pelo crime de recebimento indevido de vantagem, alega que:
1. Ingressou no Batalhão de Transporte Rodoviário (BTR) do Cuando-Cubango em 2007, como Engenheiro sapador e, em 2017, por ordem do co-arguido Manuel Correia, Comandante do BTR, foi designado para exercer as funções de técnico da área de pessoal do quadro, cuja tarefa era a de controlo físico do pessoal em parada, sem qualquer envolvimento em questões financeiras.
2. As responsabilidades financeiras, incluindo pagamentos, foram atribuídas a outros arguidos, como Almeida Adão, o prófugo Magalhães Prócer de Moura e o Luciano Cumena, já falecido, que vinham de Luanda, sendo que a competência para inserção de pessoas nas folhas de salários do BTR era da Secretaria-geral da Casa de Segurança do Presidente da República.
3. Nunca teve intervenção directa ou indirecta no processo de alistamento, que ocorria fora da unidade do BTR e era coordenado por Júlio Vidigal, sendo que as listas eram entregues ao co-arguido Manuel Correia, que as enviava para Luanda para inserção e que foi apontado como líder deste processo.
4. É de difícil compreensão a aplicação da atenuação extraordinária da pena apenas ao Comandante do BTR e co-arguido, Manuel Correia, pelo Tribunal de 1ª instância e confirmada pelo Tribunal recorrido, pois que deveria ser estendida aos demais co-arguidos, incluindo a si, porquanto, era subordinado do Comandante e cumpria apenas ordens superiores deste.
5. O Tribunal recorrido tinha o dever legal de notificar o arguido sobre a nova qualificação jurídica dos factos, o que não aconteceu, ignorando, deste modo, a proibição da reformatio in pejus e o princípio do contraditório.
6. O Tribunal recorrido errou ao considerar procedente a promoção requerida pelo Ministério Público para declarar perdidos a favor do Estado os seus bens, mesmo sem a devida liquidação e sem prova da existência do património incongruente, violando, assim, disposições legais.
7. Existe uma contradição entre a fundamentação e a decisão do Acórdão Recorrido, o que dá lugar a sua nulidade.
8. Os Juízes do Tribunal da Relação de Luanda agiram correctamente ao suspender a execução da pena e ordenar a devolução dos bens apreendidos, pois entenderam que não cometeu o crime de peculato.
9. Restrições, provas circunstanciais ou processos sem evidências sólidas não se compatibilizam com os princípios do contraditório, da ampla defesa, da proibição da inversão do ónus da prova e da presunção de inocência que são fundamentais num Estado Democrático de Direito.
10. O Acórdão recorrido, pelas razões expostas, violou e postergou de forma clara e inequívoca os princípios do contraditório, da ampla defesa, da igualdade, do in dubio pro reo, da proibição da reformatio in pejus e da retroactividade da lei penal mais favorável.
António João Martins Kibiana, condenado pelo Tribunal Supremo na pena de 5 (cinco) anos de prisão pelo crime de peculato, sendo que, em sede Tribunal da Relação de Luanda, foi condenado na pena para 3 (três) anos de prisão, alega que:
1. O princípio da legalidade é um princípio constitucional por meio do qual se estabelecem os limites de punir no Estado de direito democrático, na medida em que todos os actos do Estado devem obedecer a uma previsão legal.
2. O n.º 2 do artigo 496.º, conjugado com a alínea b) do artigo 500.º do CPPA, estabelece a irrecorribilidade das decisões tomadas pelo Tribunal da Relação que fixam pena não superior a 3 anos.
3. Não há dúvidas de que o n.º 2 do artigo 496.º e alínea b) do artigo 500.º ambos do CPPA, que vetam o recurso nas circunstâncias aí descritas, pretendem considerar a decisão do Tribunal da Relação de Luanda como caso julgado, com as consequências legais previstas no artigo 677.º do Código de Processo Civil (CPC).
4. A decisão do Tribunal Supremo não realizou a certeza e segurança jurídicas, sendo que a alteração da pena de 3 para cinco anos violou o princípio da proibição da reformatio in pejus, nos termos do artigo 473.º do CPPA.
5. Qualquer decisão judicial deve ser justa, adequada, necessária e proporcional e suportada por provas concludentes sobre os factos ilícitos praticados.
Jacinto Hengombe, condenado na pena única de 9 anos de prisão, pela prática dos crimes de peculato e de branqueamento de capitais, alega que:
1. O julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA, impõe, entre outros, que as provas produzidas pelas partes sejam valoradas e que, por decorrência disso, a decisão seja proferida dentro dos parâmetros constitucionais e legais.
2. Foi julgado e condenado, porquanto foi, supostamente, encontrado em posse do co-réu Pedro Lussati um manuscrito denominado mapa de partilha do qual consta o nome Jacinto.
3. O Tribunal não tem elementos suficientes que atestam que aquele Jacinto é Jacinto Hengombe e, nesta medida, o Acórdão do Tribunal Supremo é inconstitucional por violação do direito fundamental a um julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA.
4. O Acórdão do Tribunal Supremo viola, igualmente, os princípios da responsabilidade penal, da pessoalidade da pena, da sua intransmissibilidade e da não retroactividade da lei penal, consagrados no artigo 65.º da CRA.
5. Este Acórdão viola, ainda, o princípio fundamental à não autoincriminação, previsto na alínea g) do artigo 63.º da Constituição, bem como o direito fundamental do Recorrente ao perdão, sufragado no artigo 62.º da CRA.
José Tchiwana, condenado na pena única de 9 anos de prisão, pela prática dos crimes de peculato e de branqueamento de capitais, alega que:
1. Os arguidos são militares e foram julgados nestes moldes, mas com clara desigualdade, em comparação com os seus chefes, tendo sido detidos sem fundamento, contrariamente a estes que foram simplesmente arrolados como declarantes, em clara violação das normas reguladoras da disciplina militar.
2. O Ministério Público não observou o disposto no artigo 33.º da CRA, referente ao direito à inviolabilidade do domicílio, pois violou o domicílio pessoal e profissional do Recorrente e, na sequência, nomeou o Cofre de Justiça como fiel depositário dos seus bens.
3. O Acórdão recorrido viola, igualmente, o princípio da irreversibilidade das amnistias, previsto no artigo 62.º da CRA, na medida em que a acusação traz na sua égide supostos crimes e factos datados do ano de 2008 até ao ano de 2020, sendo que, em 2022, o ano de julgamento e ainda com processo em primeira instância, houve uma amnistia e nenhum Tribunal verificou que o processo estava amnistiado.
4. O Acórdão recorrido viola, também, o princípio da aplicação da lei no tempo, nos termos do artigo 65.º da CRA, porquanto o Código Penal Angolano foi publicado no dia 11.11.2020 e começou a vigorar 30 dias depois. Ainda assim, o Tribunal aplicou as medidas mais gravosas trazidas pela lei nova e não previstas na lei anterior.
5. O Acórdão recorrido viola, igualmente, as garantias do processo criminal previstas no artigo 67.º, pois, sendo o Recorrente militar e os factos que compõem o processo de cariz militar, o Tribunal Civil é incompetente para conhecê-los, o que também configura violação do direito ao julgamento justo e conforme, consagrado no 72.º da CRA.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, dos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e 53.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que violem princípios, direitos, garantias e liberdades previstos na Constituição, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente cabíveis, faculdade igualmente estabelecida na alínea m), do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
A decisão proferida pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo esgota a cadeia de recursos em sede da jurisdição comum.
III. LEGITIMIDADE
A legitimidade processual decorre do interesse directo em demandar e ou contradizer, tal como estatui o n.º 1 do artigo 26.º do Código do Processo Civil, CPC, aplicado subsidiariamente aos processos sujeitos à jurisdição do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.
Estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC que têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade o Ministério Público e as pessoas, que de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.
O Ministério Público tem legitimidade legal, enquanto órgão garante da legalidade, cabendo-lhe o direito/dever de socorrer-se dos mecanismos constitucionais e legais para a defesa e protecção dos direitos, liberdades e garantias fundamentais e de interesses tutelados pela Constituição e pela lei.
Os Recorrentes, por seu lado, são parte vencida no processo cujo Acórdão é objecto do presente recurso e têm, como tal, legitimidade processual activa para recorrer nos termos do n.º 2 do artigo 293.º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional, ex vi do artigo 2.º da LPC.
IV. OBJECTO
Constitui objecto deste recurso sindicar o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo por, alegadamente, ofender princípios e violar direitos consagrados, directa ou reflexamente, na Constituição da República de Angola, designadamente, os princípios da legalidade, da igualdade, da tutela jurisdicional efectiva, da proibição da reformatio in pejus, da proibição da auto incriminação, da responsabilidade penal e proibição da retroactividade da lei penal, da presunção de inocência e do in dubio pro reo e os direitos ao contraditório, ao julgamento justo e conforme, bem ainda como os direitos à intimidade privada e violação de domicílio e o direito à propriedade privada.
V. APRECIANDO
Questão Prévia
Os Recorrentes Aníbal Pires Nunes Antunes e Ildefonso Armando Gama Ferraz suscitaram, ao abrigo do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, além de outras questões, a inconstitucionalidade dos artigos 3.º, 4.º e 8.º da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens, alegando que estes normativos legais ofendem princípios fundamentais que norteiam o direito penal, como o da legalidade, da não auto-incriminação e da vinculação temática, da culpa e da proibição da aplicação retroactiva da lei acima referida.
O artigo 3.º versa sobre o repatriamento coercivo e define os bens sobre que incide o referido repatriamento, o artigo 4.º estipula os requisitos para a declaração da perda de bens e o seu objecto, sendo que o artigo 8.º refere-se à matéria probatória e estabelece a inversão do ónus da prova relativamente à demonstração da licitude do património do agente que incorra na perda de bens.
Também o Recorrente Pedro Lussati levanta a questão da inconstitucionalidade deste diploma legal, alegando que a sua aplicação viola o direito à presunção de inocência.
Ora, no ordenamento jurídico angolano, a fiscalização da constitucionalidade, em face do caso concreto, pode ser requerida a esta Corte de Justiça Constitucional à luz de dois instrumentos processuais, tratando-se estes do recurso extraordinário de inconstitucionalidade e do recurso ordinário de inconstitucionalidade, cuja regulamentação consta da Lei do Processo Constitucional.
No caso do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, a que se reporta o presente processo, o seu objecto vem consignado no artigo 49.º da LPC, sendo que a fiscalização da inconstitucionalidade incide sobre decisões judiciais que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição da República de Angola.
Já o recurso ordinário de inconstitucionalidade tem por escopo fiscalizar a desconformidade de uma norma ou a sua interpretação normativa com a Constituição, tal como resulta das alíneas d) e e) do n.º 2 do artigo 181.º da CRA e do artigo 36.º da LPC. Este último normativo legal densifica o objecto do recurso ordinário de inconstitucionalidade, definindo o âmbito da sua aplicação.
Nos termos do que acima ficou referido, este recurso recai sobre as decisões dos tribunais da jurisdição comum que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade; as que apliquem norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo; as que apliquem norma já julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional; as que recusem a aplicação de norma com fundamento na violação pela mesma de convenção internacional de que Angola seja parte; e as que apliquem norma constante de convenção internacional em desconformidade com acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional.
Verifica-se, assim, que o pedido formulado pelos Recorrentes não se adequa ao objecto do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, embora a inconstitucionalidade da Lei n.º 15/18 tenha sido suscitada junto das diferentes instâncias judiciais pelas quais tramitaram os presentes autos.
É facto, porém que, como fica demonstrado, a inconstitucionalidade de normas aplicadas ou desaplicadas por um tribunal de jurisdição comum, na sua decisão, é sindicada no âmbito do recurso ordinário de inconstitucionalidade.
Por conseguinte, esta Corte de Justiça Constitucional não apreciará, em sede deste processo, a alegada inconstitucionalidade dos artigos 3.º, 4.º e 8.º da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens.
Apreciada a questão prévia, importa agora sindicar o que vêm alegar o Ministério Público e os demais Recorrentes em sede do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
1. Do recurso do Ministério Público
Conforme já referido, o Digno Representante do Ministério Público junto do Tribunal Supremo requer a inconstitucionalidade do aresto recorrido, por entender que ofende os princípios da legalidade e da igualdade e que viola o direito à propriedade do Estado.
Na base da sua inconformação está o facto de o Tribunal Supremo ter decidido entregar aos herdeiros do de cujus Gamaliel Óscar Pereira da Gama e ao arguido Henrique Chilambo Ngueve Alfredo bens declarados perdidos a favor do Estado. E isto apesar de ter ficado provado que a aquisição dos referidos bens foi feita com fundos desviados da Casa de Segurança do Presidente da República (CSPR).
Assim, vejamos:
Na pendência do processo faleceu o co-arguido Gamaliel Óscar Pereira da Gama, antes do início do julgamento em sede do Tribunal de 1.ª Instância. Em resultado do processo de liquidação e dos elementos probatórios carreados nos autos, foi-lhe imputada a aquisição, com fundos provenientes do Estado via CSPR, de bens móveis (veículos) avaliados em KZ 177 293 448,00 (cento e setenta e sete milhões, duzentos e noventa e três mil, quatrocentos e quarenta e oito Kwanzas) e de bens imóveis estimados em KZ 10 732 898 500,00 (dez mil milhões, setecentos e trinta e dois milhões, oitocentos e noventa e oito mil e quinhentos Kwanzas). Os seus rendimentos lícitos por via salarial foram cifrados no total de KZ 91 022 085,46 (noventa e um milhões, vinte e dois mil, oitenta e cinco Kwanzas e quarenta e seis cêntimos), conforme a fls. 18.619, frente e verso, entre outras.
Ante a factualidade que aqui se espelha, a 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no seu juízo decisório, pronunciou-se no sentido seguinte: “(…) Sendo que no caso sub judice o destino infortunado do de cujus Gamaliel Óscar Pereira da Gama não permitiu que tivesse sido julgado e muito menos condenado em virtude da morte lhe ter batido à porta antes desse acto judicial (julgamento), é forçoso concluir, atentos à verdade material e objectiva que rege o direito penal, sem o mínimo de dúvida razoável e admitir por mera ilação, beliscando os princípios da legalidade, certeza e segurança jurídica, imanentes das decisões judiciais, aferir que tais bens tenham alguma “contaminação” com eventual acto ilícito por ele praticado em vida, sendo deste modo judiciosa a devolução dos referidos bens e seus frutos aos legítimos herdeiros do referido de cujus” (fls. 18.630).
Contrapondo este argumento, o Ministério Público chamou à colação o facto de também vigorar no ordenamento jurídico angolano um regime de perda de bens que não depende da condenação do agente do crime, para, entre outros fundamentos, concluir que admitir a devolução de bens aos herdeiros de Gamaliel Óscar Pereira da Gama é consagrar o crime como fonte aquisitiva de propriedade e violar os princípios da legalidade, da igualdade e o direito à propriedade privada do Estado.
Ora, pelo que é dado a constatar, o Tribunal Supremo, ainda que, claramente, não sustente o acima decidido com recurso ao que vem estipulado na Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, parece amparar-se nesta lei para a formação do seu juízo decisório, tendo em conta o regime normativo de perda alargada consagrado neste diploma legal.
Acontece, também, que nos arestos prolactados pelas instâncias judiciais em que tramitou o presente processo também se cuidou de perfilhar entendimento sobre algumas das questões mais controvertidas referentes à configuração do regime da perda alargada de bens. Isto é, as relacionadas com a natureza jurídica deste instituto e com a sua consequente compatibilização com princípios constitucionais.
Do disposto na Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens e também do que se subjaz da hermenêutica do Tribunal recorrido, vertida na sua decisão, a determinação da medida de perda de bens depende da responsabilização penal efectiva do acusado (artigo 4.º), ao contrário do consagrado no n.º 2 do artigo 120.º do Código Penal Angolano ou, também, no recentemente introduzido n.º 5 do artigo 122.º deste mesmo Código, Lei n.º 12/24, de 04 de Julho – Lei de Alteração ao Código Penal Angolano, em que a condenação não é conditio sine qua non para que essa perda seja declarada, ainda que incidente sobre património não qualificado como incongruente.
Deste modo, a existência de sentença condenatória, transitada em julgado, por crime de natureza patrimonial em que o lesado seja o Estado constitui um dos pressupostos para a declaração da perda de bens, que incide sobre o património incongruente do arguido, definido, no artigo 5.º da Lei 15/18, como o que resulta da diferença entre o valor do património do agente e o que seria compatível com o seu rendimento lícito.
Acresce que, não obstante recair, nos termos da lei aqui em causa, uma presunção iuris tantum sobre a ilicitude do património, esta pode ser ilidida pelo agente do crime através de qualquer meio de prova válido em processo penal, (artigos 6.º e 7.º e da Lei n.º 15/18), o que poderá ocorrer durante o julgamento, que, in casu, não teve lugar devido à morte do arguido.
Posto o acima referido, ter-se-á, em síntese, que o mecanismo de perda alargada de bens, no âmbito da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, pressupõe, para que se torne exequível, a verificação de dois requisitos fundamentais, nomeadamente, a existência de património incompatível com os rendimentos lícitos do acusado, por incapacidade deste (acusado) demonstrar, em juízo, a licitude dos bens incongruentes e a condenação efectiva por crime de natureza patrimonial em que o Estado seja lesado.
Destarte, provada em juízo a incongruência dos bens, o tribunal declara na sentença condenatória o valor que deve ser perdido a favor do Estado e que, obviamente, recai sobre o património incongruente (n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 15/18).
Resulta, assim e linearmente, que a perda do património incongruente a favor do Estado só procederá com a condenação do agente, por crime em que esteja em causa uma lesão ao património do Estado, cometido pelo titular do património incongruente, conclusão reforçada pelo facto de a absolvição fazer precludir a medida de perda. Nos termos do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 15/18, proferida decisão final absolutória, cessa o arresto que é decretado sobre os bens do agente como garantia de pagamento do valor que recair sobre o património incongruente.
Assim sendo, atentos estrictamente ao regime de perda alargada consignado na Lei n.º 15/18, a conclusão a retirar, em face do caso sub judice, seria a de julgar improcedente a decisão que declarasse perdido a favor do Estado, o património incongruente do de cujus Gamaliel Óscar Pereira da Gama, que não foi julgado, nem condenado, em virtude do seu falecimento. A morte, como sabido e previsto na lei (artigo 238.º do CPA), constitui uma das causas de extinção da responsabilidade criminal e do procedimento criminal, fazendo cessar o ius puniendi do Estado.
A presente conclusão levanta, contudo, uma questão que deve ser devidamente ponderada, que é a de saber se será realmente esta a interpretação constitucional que melhor se compagina com a solução do caso concreto. Ou seja, impõe-se apreciar se a ausência da condenação efectiva e a consequente extinção de responsabilidade criminal por morte impossibilita, de facto, a materialização da perda alargada a favor do Estado ou, no caso, a manutenção do arresto recaído sobre o património incongruente do de cujus Gamaliel Óscar Pereira da Gama.
Senão, vejamos,
Em sede de recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como escreve Adlezio Agostinho, “o Tribunal Constitucional não é um tribunal supervisor da veracidade e das constatações fácticas efectuadas à interpretação das leis e à aplicação da lei ao caso concreto. Pelo contrário, o processo de recurso extraordinário apenas examina se o tribunal da jurisdição comum violou direitos fundamentais (…), declarando a inconstitucionalidade nos casos em que a decisão do tribunal da jurisdição comum (…) tenha agido arbitrariamente naquela decisão ou ainda tenha violado direitos fundamentais ao interpretar e aplicar leis que violem direitos fundamentais.” (sublinhado nosso in: Manual de Direito Processual Constitucional: Princípios Doutrinários e Procedimentais sobre as Garantias Constitucionais, Parte Geral e Especial, AAFDL Editora, Lisboa, 2023, p. 776).
Tendo em conta a natureza doutrinária do instituto da perda alargada dos bens, uma interpretação ordinária que determina a materialização da perda alargada apenas onde houver condenação efectiva, sem ter em consideração a ponderação de outros interesses com dignidade constitucional, contrasta com o espírito e os fundamentos deste instituto.
Neste caso em concreto, o Tribunal Constitucional é chamado a fazer a designada interpretação correctiva, pois, parece evidente que a medida de devolução dos bens aos herdeiros de Gamaliel Óscar Pereira da Gama, por aplicação da Lei n.º 15/18, não surte os efeitos pretendidos quando valorados os objectivos em que se subjaz a consagração de um regime especial de perda alargada, enquanto instrumento de política criminal, destinado a combater a criminalidade grave e organizada.
Ora, considera esta Corte, que o instituto da perda alargada de bens tem natureza específica, que não se extingue com a cessação da responsabilidade criminal, mas sim com decisão final absolutória (comprobatório da licitude do património incongruente), n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 15/18. Entende-se, por isso, que o legislador prosseguiu esta ratio a fim de eliminar perturbações no sistema económico, praticadas por funcionários públicos e terceiros, que ocorrem em grande escala como resultado de más práticas administrativas e que continuam a ter impacto na vida do cidadão, devendo, por isso, ser sancionadas, o que permite chamar a atenção à comunidade jurídica e não só para a máxima segundo a qual o crime não compensa.
Neste caso, a prescrição da ilicitude penal não corresponde com a prescrição da ilicitude patrimonial. Para os casos de crimes económicos, os bens da pessoa em causa só deixam de ser ilícitos após decisão final absolutória. Qualquer disposição contrária deve ser interpretada em conformidade com a Constituição, sob pena de ser contraditória e não conduzir à restauração da ordem da propriedade legal. De uma forma geral, em qualquer caso, não se pode presumir que a situação patrimonial seja legítima com a restituição dos bens aos herdeiros, sem que estes demonstrem a licitude destes, pelo facto de não conduzir ao restabelecimento do sistema financeiro.
Destarte, a expectativa de poder manter bens, presumivelmente obtidos através da prática de crime, em resultado da passagem de tempo ou do fim da responsabilidade penal, neste caso em concreto, não é digna de protecção, pois, o interesse público em eliminar as perturbações do sistema financeiro vai além do interesse dos afectados pela retenção de bens adquiridos através de infracções,afigurando um objectivo legítimo e extremamente importante.
Como acentua o Ministério Público nas suas alegações, “a extinção do procedimento criminal não obsta à declaração de perda de bens a favor do Estado,” tudo dependendo, acrescentar-se-ia, da resposta legal que for encontrada à luz da legislação vigente num dado ordenamento jurídico, o que materializa igualmente as recomendações internacionais nesse sentido.
A exemplo, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção recomenda aos Estados Parte a adoptar, em conformidade com o seu direito interno, “medidas que se revelem necessárias para permitir a declaração de confisco desses bens na ausência de sentença, nos casos em que contra o autor da infracção não possa ser instaurado um procedimento criminal em razão de falecimento, fuga, ausência, ou noutros casos apropriados” (Ver alínea c) do n.º 1 do artigo 54.º).
Ademais, mesmo em sede do Tribunal recorrido, foi sufragado o posicionamento que atribui a este mecanismo uma natureza não penal, entendendo-se que, como tal, não coloca em causa princípios e direitos como os da presunção de inocência, da inversão do ónus da prova e o da não auto-incriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), em particular. Desta forma, o facto de o destinatário da decisão já não ser confrontado com presunções e princípios/garantia do direito penal – decadência da responsabilidade penal - não pode ser razão bastante de confiança na continuação da existência de uma situação patrimonial criada a título extracontratual no que diz respeito ao direito penal e suas consequências.
É esta mesma compreensão que se retira do Acórdão do Tribunal da Relação de Luanda, ao afirmar que “o regime da perda alargada de bens consagrado na Lei n.º 15/18 de 26 de Dezembro, não tem natureza penal, não obstante o respectivo pedido vir enxertado no processo penal. É sobretudo uma medida materialmente administrativa semelhante ao arresto civil, cujo escopo é de instaurar uma ordem patrimonial segundo o direito, figurando a condenação criminal como um mero requisito para a sua implementação. Por essa razão, não se lhe aplica, os princípios próprios do direito penal, mormente, (...) os da presunção da inocência, da não inversão do ónus da prova e da não auto incriminação” (Vide fls. 17.159/verso e 17.160).
Da mesma linha interpretativa comunga o Tribunal Constitucional Alemão em face do regime de perda de bens consagrado no seu Código Penal (§73d/StGB), nos termos do qual a perda alargada (erweiterte Verfall) pode ser decretada na circunstância de ser cometido ilícito criminal e se presumir que os bens na posse ou na titularidade do agente ou participante do crime tenham sido obtidos através ou para a prática de outros ilícitos penais.
Recentemente este Tribunal proferiu decisão, no âmbito de um processo de queixa constitucional, em que o queixoso se opôs ao confisco de cerca de 176 milhões de euros pelos tribunais penais no quadro das chamadas transações financeiras do caso “cum-ex”. Para além das violações da proibição de tribunais excepcionais, do direito a ser ouvido e do princípio da equidade processual, critica principalmente a ordenação retroactiva da aplicação das Secções 73 e seguintes do Código Penal, onde estabelece, que de acordo com a situação jurídica reformada, os produtos do crime devem ser confiscados, mesmo que existam queixas das partes lesadas. Nesta decisão, o Tribunal Constitucional decidiu que a prescrição não pode levar a exclusão do confisco de produto do crime em respeito a tutela do interesse superior do Estado (vide BVerfG 2 BVR 2194/21 par. 67, de 07 de Abril de 2022.
Referindo-se a Lei Reformadora de 13 de Abril de 2017 (lei que reforma o confisco de bens criminosos), o Tribunal Constitucional Federal Alemão fundamenta, que o confisco de bens, não é uma pena acessória sujeita ao princípio da culpa, mas antes uma medida própria e de natureza semelhante à qual se aplica a proibição da prática criminosa (...) concebe a protecção das pessoas afectadas pelo confisco com base nos regulamentos de direito civil correspondentes (vide, Decisão supra citada).
No mesmo sentido se pronunciou também o Tribunal Constitucional Português em alguns dos seus arestos. A exemplo, refere no seu Acórdão n.º 392/2015 que “(…) a presunção de proveniência ilícita de determinados bens e a sua eventual perda em favor do Estado não é uma reação pelo facto de o arguido ter cometido um qualquer ato criminoso. Trata-se, antes, de uma medida associada à verificação de uma situação patrimonial incongruente, cuja origem lícita não foi determinada (…) e em que a condenação pela prática de um dos crimes previstos no artigo 1.º da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro tem apenas o efeito de servir de pressuposto desencadeador da averiguação de uma aquisição ilícita de bens. Tendo em conta o aqui exposto, nesse procedimento enxertado no processo penal não operam as normas constitucionais da presunção da inocência e do direito ao silêncio do arguido (…)”.
É, assim, de entender que, sendo a perda alargada de bens configurada como um instituto de natureza especial e não penal, todos os demais princípios aplicáveis no direito penal devem, neste domínio, ser aplicados com certa ponderação, em prol da salvaguarda de outros interesses com dignidade constitucional. Sustenta-se, igualmente, que se a este instituto fosse atribuída natureza penal, haveria uma desigualdade de tratamento com as acções fiscais e de direito civil nos processos penais de confisco. Assim, os princípios do in dubio pro reo, presunção de inocência e o princípio da responsabilidade penal não podem, nem devem, nesta circunstância, ser invocados como elementos justificativos do enriquecimento ilícito a favor de terceiro.
Por conseguinte, tendo em atenção o caso em sindicância, é de considerar que os efeitos da decisão recaem não sobre o de cujus, mas sobre os herdeiros. Ou seja, são os herdeiros que se beneficiam dos bens e não o sujeito que conheceu a morte, sendo que o que aqui é transmissível não é a pena, mas o património que presumivelmente advém de práticas ilícitas.
Em bom rigor, e em face da relevância do interesse público, cuja protecção é também devida, os herdeiros poderiam, igualmente, ser chamados ex officio, durante a tramitação do processo, para, querendo, contradizer e fazer valer as suas pretensões, sem que tal contrarie a confiança dos afectados que é suficientemente merecedora de protecção.
Valerá, no entanto, enfatizar que em sede do processo penal, como é sabido, não recai sobre o arguido qualquer onus probandi, cabendo, antes, ao Ministério Público, enquanto titular da acção penal, sustentar a sua acusação, com a demonstração da realidade dos factos constitutivos da conduta sujeita à sanção penal, no âmbito de um processo em que são assegurados os direitos e garantias atinentes ao processo justo e equitativo. Contrariamente ao direito penal, em matéria de perda alargada, este é um ónus que a lei imputa ao agente acusado de ter cometido um crime de natureza patrimonial que tenha lesado o Estado (artigo 8.º da Lei n.º 15/18), a quem caberá fazer prova da licitude do património incongruente com os seus rendimentos lícitos.
A propósito da natureza e do alcance do direito penal, a jurisprudência alemã acentua que a avaliação de um determinado comportamento como uma ofensa criminal é a forma mais severa de desaprovação do comportamento humano ao dispor do legislador. Refere, em concreto que, em muitos casos, o direito penal é utilizado quando um determinado comportamento é particularmente prejudicial socialmente e intolerável para a convivência ordenada das pessoas, além de ser proibido, sendo por isso particularmente urgente a sua prevenção (vide BVerfGE 88, 203 <258>, de 28. Maio 1993; BVerfGE 96, 10 < 25 >, de 10 de Abril de 1997; BVerfGE, 120, 224 <239 f.>, de 26 de Fevereiro de 2008).
Ora, se para materialização da protecção desse interesse do Estado, o ónus da prova recai sobre o arguido, em face da inexistência deste (arguido), caberia aos herdeiros provar a origem lícita dos bens objecto de perda alargada por serem os que substituem, de facto e de iuris, o de cujus e os que se beneficiam com os efeitos da decisão.
No caso, importaria, pois, que os herdeiros lançassem mão aos mecanismos de garantia do direito civil, a fim de fazer valer seus interesses legítimos.
Como fundamenta o Tribunal Alemão na decisão supracitada (BVerfG 2 BVR 2194/21 par. 91, de 07 de Abril de 2022), “a contínua desfiguração de bens em resultado de uma aquisição contrária ao direito penal representa uma expressão do princípio geral de que a confiança na existência continuada de direitos adquiridos desonestamente não é fundamentalmente digna de protecção (BVerfGE 156, 354 “413 par. 161”); Esta abordagem aplica-se não só à área do crime organizado e aos crimes sem partes directamente lesadas, embora o confisco de bens possa ser de particular importância para estas áreas (BVerfGE 156, 354 “par. 151”), mas também para tudo que procede de crimes. Continua a decisão referindo que, em última análise, nesses casos, não é apenas o próprio criminoso enriquecido que não é digno de protecção, mas também o terceiro enriquecido, na medida em que não tomou as suas próprias decisões de boa fé, confiando na estabilidade do seu património”
Ademais, a CRA confere aos intervenientes, em qualquer processo judicial ou aos sujeitos sobre os quais recaem os efeitos da decisão, o direito de ter a oportunidade de se pronunciar no processo, comentar os factos em que se baseia a decisão judicial e a situação jurídica (n.º 2 do artigo 174.º e artigo 67.º).
As recomendações do Grupo de Acção Financeira Internacional (GAFI) estão, igualmente, alinhadas com o acima vertido ao estipularem que “os países deveriam considerar a adopção de medidas que permitam o confisco de tais produtos ou instrumentos sem que seja exigida a condenação criminal prévia (non conviction based forfeiture), ou que exijam que os criminosos demonstrem a origem lícita dos bens supostamente passíveis de confisco, desde que tal exigência esteja de acordo com os princípios da sua lei doméstica.”
Convém notar, aliás, que o questionamento sobre a desconformidade da perda de bens com princípios e direitos fundamentais deve-se, essencialmente, à particularidade de, no âmbito da sua regulamentação, se consagrar uma presunção iuris tantum e a consequente inversão do ónus da prova quanto à demonstração da licitude do património incongruente, tal como estipulado no artigo 8.º da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, cuja inconstitucionalidade foi suscitada.
Norma idêntica pode ser encontrada na legislação de países como Portugal, França, Espanha ou Brasil, bem como em alguns outros instrumentos jurídicos de direito internacional que têm por escopo o combate à criminalidade organizada, como, a exemplo, a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (CNUCCOT) ou a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (CNUCC). O n.º 7 do artigo 12.º da CNUCCOT dispõe que “Os Estados Partes poderão considerar a possibilidade de exigir que o autor de uma infracção demonstre a proveniência lícita do presumido produto do crime ou de outros bens que possam ser objeto de perda (…).”
Por seu lado, o n.º 8 do artigo 31.º da CNUCC recomenda os Estados Parte a “considerar a possibilidade de exigir de um delinquente que demonstre a origem lícita do alegado produto do delito ou de outros bens expostos ao confisco, na medida em que seja conforme com os princípios fundamentais da sua legislação interna e com a índole do processo judicial ou outros processos.”
Com efeito, no ordenamento jurídico angolano, o controlo da constitucionalidade de normas pode e deve, perante o caso concreto, ser exercido por qualquer tribunal da jurisdição comum, nos termos da competência (direito-dever) atribuída, neste domínio, pela Constituição (ver n.º 1 do artigo 177.º da CRA). De notar, por outro lado, que já em sede da 3.ª Secção da Sala dos Crimes do Tribunal da Comarca de Luanda os Recorrentes Jacinto Hengombe e Manuel Correia haviam arguído a inconstitucionalidade da lei aqui em causa.
Nesta medida, as duas Instâncias Superiores da Jurisdição Comum cuidaram, desde logo, de elucidar sobre os objectivos subjacentes à aprovação desta lei (Lei n.º 15/18), relacionando-os com o combate à criminalidade económica e financeira que se desenvolve “por meio de crimes de natureza patrimonial que se caracterizam pelo grau de sofisticação e organização com que são praticados e pela sua capacidade de gerar avultados proventos para os seus agentes”, lê-se, no aresto do Tribunal Supremo, a fls. 18.625, que retoma o expendido no Acórdão do Tribunal da Relação de Luanda.
A este respeito seria, ainda, de acrescentar as anotações de Hélio Rodrigues e Carlos Reis Rodrigues quando referem que o instituto da perda de bens à favor do Estado, especialmente, a perda ampliada, encontra ainda justificação em factores que transcendem a sua estrita conexão/vinculação com a prática do facto ilícito típico. (Recuperação de Activos na Criminalidade Económico-financeira, Editorial Minerva, 2013, p. 172).
Desta sorte, há também quem a qualifique como medida análoga a uma medida de segurança (porque dependente da prova de um crime) ou quem, como Pedro Caeiro, configure a perda alargada de bens/confisco como medida de natureza materialmente administrativa aplicada durante um processo penal. Esse autor refere, que a perda/ confisco “não é uma pena, porque não é limitada por considerações de culpa (embora pressuponha uma condenação e, portanto, um ilícito-típico culposo)”, além de não “exigir uma ligação directa com o facto criminoso (e com a responsabilidade por ele gerada) que permita concebê-lo (o confisco) como uma reacção criminal.” (Sentido e função da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia (em especial, os procedimentos de confisco in rem e a criminalização do enriquecimento “ilícito”), in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 21, n.º 2, Lisboa, 2011, pp. 310-311).
Quanto à qualificação jurídica do instituto, Hélio Rodrigues e Carlos Reis Rodrigues concluem que o instituto da perda de bens a favor do Estado assume natureza eminentemente civil, acarreta, para a prática judiciária, uma consequência de enorme relevância, traduzida na aplicação de um standard probatório idêntico ao utilizado em processo civil.
Para esses autores, tal significa que a demonstração dos elementos de que depende a aplicação de uma qualquer modalidade de perda de bens a favor do Estado poderá realizar-se com base no standard probatório do balanço de probabilidades, recorrendo, se necessário, às regras da experiência, sem que se exija a prova para além de qualquer dúvida razoável, tal como sucede na aplicação de uma sanção penal (op. cit, p.p. 192 e 193).
No mesmo sentido, alguma doutrina brasileira adopta direcção idêntica. Fabio Ramazzini Bechara e João Paulo Sales consideram que “o confisco alargado não se identifica com uma sanção penal, seja por não se elaborar qualquer juízo sobre a tipicidade da conduta ou da culpabilidade do condenado em relação ao período utilizado para o acertamento patrimonial, seja por significar simplesmente um retorno ao status quo anterior, ou uma vedação ao enriquecimento ilícito ou sem causa. A única condenação tipicamente penal relacionada ao confisco alargado serve, tão somente, para deflagrar o procedimento patrimonial, na implementação do confisco em si” (Análise Crítica da Perda Alargada de Bens à Luz da Ordem Jurídica Constitucional Brasileira, in Revista de Direito Brasileira, Florianópolis, SC, v. 26, n. 10, Maio/Agosto de 2020, p. 353, disponível online).
No mais, é de acentuar que o regime de perda alargada, previsto na Lei n.º 15/18, se distingue do da perda clássica a que se referem os artigos 120.º e seguintes do CPA. Neste último, a perda de bens pode ser declarada, mesmo em caso de não condenação do agente, desde que se estabeleça uma relação de conexão entre os bens perdidos e o ilícito penal de que o arguido vem acusado.
Já no âmbito da perda alargada, não é exigível tal conexão na medida em que o património declarado perdido, o património incongruente, se estende a activos não directamente relacionados com o facto penalmente sancionado.
Este é, assim, um regime que visa “dotar o Estado de um mecanismo de recuperação coerciva de bens e outros activos sobre os quais incida a suspeita de resultarem de actividade criminosa contra o erário público, permitindo a declaração de perda de bens a favor do Estado sem prova de que os mesmos são instrumento, produto, vantagem, recompensa (ou seu sucedâneo) de um crime, antes se baseando a legitimidade de tal confisco numa presunção de ilicitude, cuja ilisão é ónus do arguido ou do titular do património”, como se retira do Acórdão n.º 845/2023 deste Tribunal Constitucional, em citação de Hermínio Rodrigues, a partir da obra “Recuperação de Activos e Perda Alargada de Bens em Angola”.
Dos autos resulta provada a participação de Gamaliel Óscar Pereira da Gama nos “actos encadeados” que fundamentaram a acusação do Ministério Público e que, resumidamente, estavam relacionados com o processamento e pagamento de salários e subsídios do pessoal afecto à Casa de Segurança do Presidente da República.
É de ressaltar, uma vez mais, que em paralelo ao regime de perda alargada consagrado na Lei n.º 15/18, vigora o regime de perda clássica previsto no Código Penal Angolano e que a ratio decidendi do Tribunal Supremo sempre poderia caminhar numa outra direcção. É que perante a comprovação de que os bens do agente resultaram de um facto ilícito típico (não já de um crime), a sua perda a favor do Estado sempre poderia ser declarada independentemente da condenação, nos termos dos artigos 120.º e seguintes do CPA. Este não foi, porém, o entendimento do Tribunal recorrido.
Ademais, Konrad Hesse, ao definir o princípio geral da concordância prática, argumenta que este obriga a que o intérprete, ante colisões entre pretensões jurídicas conflituantes, não proceda a uma pesagem precipitada dos bens e valores envolvidos, ou entre estes e um interesse geral superior, mas acate os princípios constitucionais, parâmetros dentro dos quais o balanceamento pode ocorrer. Defende, igualmente, que a estrela norteadora da interpretação deve ser sempre o princípio da força normativa da constituição, segundo o qual, entre as opções hermenêuticas possíveis, o intérprete deve sempre privilegiar a solução que amplia a força da lei fundamental, em comparação com a solução que restringe o escopo de aplicação (Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, C.F. Müller, Heidelberg, 1995, 43 ff).
Outrossim, têm-se por evidente que o interesse do legislador, ao regular sobre a perda alargada de bens, é o de garantir a segurança jurídica e a confiança legítima, assim como a paz jurídica.
Neste diapasão, é de ter em conta que, uma vez presumida a infracção penal sobre o património incongruente e, embora perante a extinção da responsabilidade criminal, o acto em si, não perde o seu carácter de ilicitude porque as vantagens derivadas já não podem ser reclamadas com base ao Código Penal. Os bens assim adquiridos continuam a estar presumivelmente contaminados com a origem ilícita até a sua absolvição final.
Nestes termos, tendo sido proferida a decisão sobre a devolução dos bens e esgotados os prazos para a interposição de recursos ordinários, este Tribunal entende que deverá ser mantido o arresto preventivo, devendo os herdeiros do de cujus Gamaliel Óscar Pereira da Gama, querendo, fazer valer os seus interesses, lançando mão a outros mecanismos de garantia de natureza civil.
Considera, consequentemente, esta Corte Constitucional que o Tribunal recorrido, ao ter decidido, nestes autos, devolver os bens aos herdeiros, violou princípios e valores com consagração constitucional, nomeadamente, o princípio da propriedade do Estado, da tutela do interesse superior do Estado, da supremacia da Constituição, em prol do formalismo e do positivismo textual.
Já quanto a alegada devolução do património de Henrique Chilambo Ngueve Alfredo, é entendimento desta Corte que o Ministério Público terá feito uma interpretação incorrecta da decisão do Tribunal Supremo, cujos termos do decidendum, em boa verdade, parecem não ser suficientemente elucidativos quanto à medida da perda de bens aplicada a este co-arguido.
Com efeito, no Acórdão aqui impugnado, o Tribunal Supremo, como já referido, alterou a decisão do Tribunal da Relação de Luanda em matéria de indemnização solidária e do património incongruente, mantendo o decidido em sede do Tribunal de 1.ª instância, medida que parece ter visado todos os que, em sede da 3.ª Secção da Sala Criminal do Tribunal da Comarca de Luanda, foram aí julgados e condenados a perder os bens a favor do Estado, onde, obviamente, se inclui Henrique Chilambo Ngueve Alfredo.
Entretanto, é facto, também, que na parte decisória do Acórdão recorrido , a fls. 18.631, se lê o seguinte: “ Confirmar o decidido quanto aos arguidos Henrique Chilambo Jamba Ngueve Alfredo, Hermez Francisco Tyaunda (…)”, sendo, no entanto, que para este Tribunal Constitucional, esta confirmação, até mesmo pela matéria que a antecede, dirá respeito apenas à medida da pena de prisão aplicada a este co-arguido, que foi condenado a três anos de prisão pelo crime de peculato, e já não quanto ao decidido sobre a devolução de bens pelo Tribunal da Relação de Luanda.
A compreensão supra vertida resulta, igualmente, dos fundamentos esgrimidos pelo Tribunal Supremo quando considera, mutatis mutandis, que este coarguido e os Recorrentes a favor dos quais foi decidido devolver os bens objecto de arresto foram julgados e condenados e, em julgamento, não conseguiram fazer prova da licitude do seu património e que, mesmo que em alguns casos não tenha havido liquidação, devem os seus bens ser considerados perdidos a favor do Estado no âmbito da perda clássica (vide fls. 18.625 e verso).
Dos autos, é dado como provado que os bens de Henrique Chilambo Ngueve Alfredo foram adquiridos com fundos provenientes do Estado via CSPR, designadamente, 4 veículos (avaliados em Kz. 16 750 000,00/dezasseis milhões e setecentos e cinquenta mil Kwanzas) e 2 imóveis (avaliados em Kz 3 150 000 000,00/três mil milhões e cento e cinquenta milhões de Kwanzas), ante rendimentos lícitos por via salarial, estimados em Kz 169 686 302,35 (cento e sessenta e nove milhões, seiscentos e oitenta e seis mil trezentos e dois Kwanzas e trinta e cinco cêntimos), conforme a fls. 9.140-9.142, 17.137/verso e 18.615/verso e 18.616.
Ainda assim, o Tribunal da Relação de Luanda considerou que não foi apurado no histórico da aquisição dos imóveis, uma residência e um estabelecimento escolar e, em virtude disso, a incongruência do património, conforme exigido legalmente pelo artigo 4.º da Lei n.º 15/18, tendo, assim, julgado nula a decisão da 1.ª Instância que declarou perdidos a favor do Estado os bens de Henrique Chilambo Ngueve Alfredo e decidido pela devolução dos mesmos ao arguido aqui referido (fls. 9.140-9.142, 17.137/verso, 17.168 e 18.615/verso e 18.616).
Esta decisão, à luz do interpretado pelo Ministério Público no seu recurso para este Tribunal Constitucional, teria sido confirmada pelo Tribunal Supremo, razão pelo qual veio impugná-la.
Deste modo, admitindo-se o sentido da presente interpretação, importará, ainda que por mera pedagogia, avaliá-la tendo em vista aferir da (in)constitucionalidade da decisão nos termos em que foi proferida pelo Tribunal da Relação de Luanda e, alegadamente, confirmada pelo Tribunal Supremo.
Assim, dos fundamentos desta decisão pode extrair-se o seguinte: “o Tribunal considerou que não foi apurado no histórico da aquisição dos imóveis, uma residência e um estabelecimento escolar e, em virtude disso, a incongruência do património”, uma posição que colide com o conceito de património incongruente plasmado na Lei n.º 15/18, quando, no seu artigo 5.º , estabelece que se considera património incongruente a diferença entre o valor do património do agente e o que seria compatível com o seu rendimento lícito.
Esta Corte de Justiça Constitucional tem entendido que não é uma instância com competência para avaliar o mérito ou o demérito da decisão jurídica proferida segundo o direito ordinário aplicado ao processo, não lhe cabendo, por consequência, substituir-se ao Tribunal recorrido neste domínio, adentrando no campo da valoração da prova nos mesmos termos em que se processa em sede do Tribunal recorrido, desde que tal valoração assente em critérios objectiváveis, fundados no direito e conformes com a Constituição ou desde que tal decisão não contenda com direitos e princípios constitucionais (Ver, entre outros, os Acórdãos n.ºs 741/2022, 874/2024 e 898/2024), disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao).
Além disso, dos autos se pode verificar algumas imprecisões e inconsistências na fundamentação da decisão tomada a respeito, em sede do Tribunal da Relação de Luanda, sobretudo na compatibilidade entre o rendimento lícito com o património incongruente e, até mesmo, na referência que é feita à idade deste arguido, a quem se atribuiu 69 anos, quando o mesmo nasceu a 11 de Abril de 1969 (à data, com 52 anos).
Por conseguinte, a inconstitucionalidade de qualquer decisão só pode ser deduzida quando analisada a conformação dos factos com os princípios, regras e garantias constitucionais. Nesse caso em concreto, esta Corte não tem dúvida que se tenha violado o princípio do julgamento justo e conforme.
Entendendo-se confirmada, é mister acentuar que o Tribunal recorrido não se debruçou sobre a conformidade do núcleo da matéria de facto e sua decisão ao correspondente conceito de perda alargada de bens, carecendo, neste caso, da necessária conformidade da sua fundamentação. A avaliação confusa das provas em relação ao património lícito e o incongruente, a interpretação do conceito de património incongruente sufragada no Acórdão recorrido e as diversas imprecisões, vão além do necessário e não atingem o objectivo pretendido pelo legislador, nem reúnem os requisitos de um julgamento justo ao abrigo do Estado de direito. Portanto, não fez a diferenciação necessária no julgamento em causa e por isso violou a legislação constitucional especifica.
Como argumenta Ferdinand Wollenschlager e Luca De Lucia,, o Estado de direito inclui a justiça substantiva e a segurança jurídica como directrizes factuais para o Poder legislativo, Executivo e o Judiciário. A implementação desses princípios do estado de direito – que podem ser conflituantes – é tarefa do poder legislador e do poder judicial (Staat und Democratie, Mohr Siebeck, Tubingen, 2016, p. 425).
Nestes termos, entende-se que a devolução dos bens decidida a favor do arguido Henrique Chilambo Ngueve Alfredo, alegando não ser possível determinar a incongruência do património, nos moldes em que foi deduzido e interpretado o conceito de património incongruente, violou o princípio do direito a julgamento justo e conforme e o princípio da legalidade.
2. Do recurso dos demais Recorrentes – Pedro Lussati e Outros
Como acima referido, os Recorrentes vêm, no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, reivindicar direitos, liberdades e garantias fundamentais que alegam terem sido violados em sede da decisão ora impugnada, estando, assim, em causa e na perspectiva do que foi alegado, a ofensa dos princípios da legalidade e da legalidade penal, da igualdade, da tutela jurisdicional efectiva, da proibição da reformatio in pejus, da proibição da auto incriminação, da responsabilidade penal e proibição da retroactividade da lei penal e dos direitos ao contraditório, ao julgamento justo e conforme, à presunção de inocência e do in dubio pro reo, bem ainda como os direitos à intimidade privada e violação de domicílio e o direito à propriedade privada.
As alegações dos Recorrentes, em face do decidido, coincidem, em alguns casos, quanto aos fundamentos em que sustentam a inconstitucionalidade do aresto proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 6217/23.
Nesta medida, a sindicância que é requerida a esta Corte de Justiça Constitucional será apreciada, se assim relevar, tendo em conta o que conjuntamente os Recorrentes alegam e reivindicam, pelo que, vejamos:
a) Da alegada ofensa aos Princípios da Proibição da Reformatio in Pejus, da Legalidade, do Contraditório e da Ampla Defesa.
Lourenço Afonso Felisberto Pascoal, Fernando Abel, Atanásio Lucas José, Inácio Sangueve, Almeida Adão, Aníbal Pires Nunes Antunes, Manuel Evaristo Pacheco, Abreu Jamba Lumbongo e António João Martins Kibiana, têm em comum o facto de o Tribunal da Relação de Luanda ter convolado o crime de peculato de que vinham condenados para o crime de recebimento indevido de vantagem e de, em consequência, terem visto reduzida a medida da pena fixada em 3 anos, que, entretanto, foi agravada pelo Tribunal Supremo, que julgou improcedente a convolação. Consequentemente, esta última Instância retomou, a condenação pelo cometimento do crime de peculato.
Todos estes Recorrentes (Lourenço Afonso Felisberto Pascoal, Atanásio Lucas José, Inácio Sangueve, Almeida Adão, Aníbal Pires Nunes Antunes, Manuel Evaristo Pacheco, Abreu Jamba Lumbongo e António João Martins Kibiana), a excepção de Fernando Abel, convergem no facto de não terem interposto recurso para o Tribunal Supremo da decisão recorrrida, o que, não obstante, foi feito, por inconformação, pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Luanda. Todavia, nenhum deles, incluindo Fernando Abel, foi notificado do referido recurso, conforme determina o artigo 480.º do CPPA.
No seu recurso, o Ministério Público, entre outros fundamentos, considerou improcedente a convolação do crime de peculato para o de recebimento indevido de vantagem, bem como a consequente suspensão da execução das respectivas penas, tendo requerido a manutenção das medidas penais aplicadas pelo crime de peculato em sede da primeira instância (fls. 18.533 verso e 18.554).
Mais convergem os Recorrentes Lourenço Afonso Felisberto Pascoal, Fernando Abel, Atanásio Lucas José, Inácio Sangueve, Almeida Adão, Aníbal Pires Nunes Antunes, Manuel Evaristo Pacheco, Abreu Jamba Lumbongo e António João Martins Kibiana, no facto de também não terem sido notificados da vista do representante do Ministério Público junto do Tribunal Supremo, para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 482.º do CPPA, que estabelece a obrigação de notificação do arguido para contradizer, sempre que na vista seja levantada alguma questão que agrave a sua posição processual.
Ora, à semelhança do requerido no âmbito do recurso interposto pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Luanda, na vista a que acima se refere, o Ministério Público junto do Tribunal Supremo propugnou, igualmente, pela improcedência da convolação do crime de peculato para o de recebimento indevido de vantagem e, consequentemente, pela manutenção da condenação decidida em primeira instância (fls. 18.284 e 18.285), o que configurou agravamento da posição processual dos aqui Recorrentes.
Por seu lado, o Recorrente Joaquim José Amado, condenado em sede do Tribunal da Relação de Luanda, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, pelo crime de peculato, viu igualmente agravada para 5 (cinco) anos a sua condenação por este mesmo crime, pelo Tribunal Supremo.
Ante o acima vertido, os Recorrentes Atanásio Lucas José, Inácio Sangueve Joaquim José Amado, Abreu Jamba Lumbongo e António João Martins Kibiana alegam, em concreto, que o Acórdão do Tribunal Supremo ofende o princípio da proibição da reformatio in pejus, desta ofensa emergindo a violação, entre outros, dos direitos ao contraditório, à ampla defesa, ao julgamento justo e conforme e ao princípio da legalidade.
Por seu lado, os Recorrentes Lourenço Afonso Felisberto Pascoal, Fernando Abel, Almeida Adão, Aníbal Pires Nunes Antunes e Manuel Evaristo Pacheco, apesar de não se referirem à violação da proibição da reformatio in pejus, alegam, à luz dos mesmos fundamentos, a violação do princípio da legalidade e dos direitos ao contraditório, à ampla defesa e ao julgamento justo e conforme.
Assistir-lhes-á razão?
Como sabido, a proibição de reformatio in pejus (alterar para pior), instituto que impede que um tribunal superior agrave a pena quando em presença de um recurso interposto pelo arguido ou pelo Ministério Público, no exclusivo interesse da defesa, configura, essencialmente, uma medida de protecção do direito ao recurso, direito este que materializa, em si mesmo, uma garantia de defesa dos direitos do arguido, que encontra consagração no n.º 1 do artigo 67.º da Constituição da República de Angola.
Este é, pois, um instituto que tem, fundamentalmente, por objectivo evitar que o arguido, o sujeito central do processo penal, seja prejudicado com a aplicação de medida penal mais gravosa, o que poderia coarctar o exercício do direito constitucional ao recurso e colocar em causa a necessária estabilidade e previsibilidade das decisões judiciais, corolário dos princípios da segurança e certeza jurídicas, ainda que esta proibição não tenha valor absoluto.
Por outras palavras e como tem entendido esta Corte Constitucional, perfilhando do que se retira de alguma doutrina, a proibição da reforma para pior, visa “realizar a justiça material e tornar mais efectivo o direito de defesa, gravemente comprometido pelo natural temor do réu de, ao recorrer de uma sentença que considera injusta para o tribunal superior, ver por este agravada ainda a pena e, consequentemente, aumentada a injustiça” (vide Acórdão n.º 337/2014, disponível em www.tribunalconstitucional.ao).
Destarte, o instituto da reformatio in pejus, enquanto garantia do direito de defesa, está intrinsecamente relacionado com o exercício, entre outros, do direito ao contraditório e à ampla defesa, corporizando, por consequência, uma das dimensões do direito ao julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da Constituição da República de Angola.
Da violação da proibição de reformar para pior, que vem consagrada no artigo 473.º do CPPA, resultará igualmente violar o princípio da legalidade, atendendo a que a actividade jurisdicional deve ser exercida em conformidade com a Constituição e a lei, tal como disposto, entre outros, no n.º 2 do artigo 6.º, no 175.º, no n.º 1 do 177.º e no n.º 1 do 179.º, todos da CRA.
Assim, e na situação em que haja sido tomada medida à margem do fixado na lei, poderá ocorrer ofensa ao princípio da legalidade, o que materializa, ao mesmo tempo, violação à Constituição que o consagra.
Com efeito, o artigo 473.º do CPPA estipula que, interposto recurso de uma decisão condenatória no exclusivo interesse da defesa, quer o seja pelo arguido, pelo Ministério Público ou por ambos, o Tribunal superior não pôde, em prejuízo de qualquer arguido, ainda que não Recorrente: a) aplicar pena ou medida de segurança que possa considerar-se mais grave do que aquela que foi aplicada pela decisão recorrida; b) revogar o benefício da suspensão da execução da pena ou da sua substituição por outra menos grave (…).
Por seu turno, o n.º 2 prevê a possibilidade de derrogação deste instituto, dispondo que “quando o Tribunal superior qualificar diversamente os factos, quer a qualificação diga respeito à incriminação, quer às circunstâncias modificativas da pena”. Sendo que, nesta situação e nos termos do n.º 3 do dispositivo legal em causa “o Tribunal deve, antes de decidir, notificar o arguido, o Ministério Público e o assistente para, no prazo de 8 dias, se pronunciarem, querendo, sobre a questão da nova qualificação jurídica suscitada no recurso”.
Como se verifica, o artigo 473.º do CPPA apesar de proibir a condenação em pena superior pelo tribunal de recurso, abre ao mesmo tempo uma excepção que impõe, no entanto, que o arguido seja notificado se houver lugar a uma qualificação diversa dos factos subjacentes à conduta penalmente censurada.
Da leitura dos presentes autos resulta que o recurso para o Tribunal Supremo da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Luanda, não foi interposto no exclusivo interesse da defesa. Além de alguns dos Recorrentes visados neste processo, também o Ministério Público junto da Relação se socorreu do expediente processual recursório para sustentar posicionamento divergente.
Ora, atentos ao disposto na lei, é de entender que, nesta dimensão, não se verifica a alegada ofensa ao princípio da proibição da reformatio in pejus, sendo certo também que, ainda que o recurso tivesse sido interposto no exclusivo interesse da defesa, o Tribunal Supremo sempre poderia, ao abrigo dos n.ºs 2 e 3 do artigo 473.º do CPPA, decidir pelo agravamento da pena, nos termos aí previstos. Ou seja, com fundamento na qualificação diversa dos factos e obrigando-se a notificar os Recorrentes dessa nova qualificação para o exercício do contraditório, todavia, não o fez. O que configura violação ao princípio do contraditório, no sentido em que aos Recorrentes, não foi dada a possibilidade de exercerem a sua defesa (n.º 2 do artigo 174.º e do n.º 1 do artigo 67.º, ambos da CRA).
Não obstante, esta Corte considera que o Aresto aqui recorrido, no que concerne aos Recorrentes Lourenço Afonso Felisberto Pascoal, Fernando Abel, Atanásio Lucas José, Inácio Sangueve, Almeida Adão, Aníbal Pires Nunes Antunes, Manuel Evaristo Pacheco, Abreu Jamba Lumbongo e António João Martins Kibiana, traz à liça uma outra questão que tem que ver com a recorribilidade das decisões judiciais, sujeitas que estão ao princípio da taxatividade, tal como decorre dos artigos 460.º e 461.º do CPPA.
Esta questão foi, aliás, suscitada nas alegações apresentadas pelos Recorrentes Almeida Adão e António João Martins Kibiana.
Em sede do Tribunal da Relação de Luanda e, como já antes referido, os Recorrentes supra mencionados (Lourenço Afonso Felisberto Pascoal, Fernando Abel, Atánasio Lucas José, Inácio Sangueve, Almeida Adão, Aníbal Pires Nunes Antunes, Manuel Evaristo Pacheco, Abreu Jamba Lumbongo e António João Martins Kibiana) foram condenados a penas de 3 anos de prisão, sendo que, com excepção de Fernando Abel, nenhum deles recorreu para o Tribunal Supremo.
Ora, o n.º 2 do artigo 496.º do CPPA dispõe sobre a irrecorribilidade dos “acórdãos dos Tribunais da Relação que apliquem pena ou medida de privação da liberdade não superior a 3 anos.” Não estabelece qualquer excepção relativamente ao Ministério Público, pelo que também a este órgão é vedado recorrer.
Desta feita, uma das consequências jurídicas a retirar do presente normativo será a de considerar que a decisão do Tribunal da Relação de Luanda, configura caso julgado relativamente aos Recorrentes sancionados com a pena de 3 anos, sob pena de violação do princípio non bis in idem, reflectido no n.º 5 do artigo 65.º da CRA, nos termos do qual “ninguém deve ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto”.
Além da Lex Mater, o princípio do non bis in idem está, igualmente, consagrado em instrumentos de direito internacional como, entre outros, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (§ 7.º do artigo 14.º) ou na Secção N (8) dos Princípios do Julgamento Justo em África.
A proibição da dupla penalização materializa, por consequência, o efeito negativo do caso julgado de que resulta o impedimento de ser proferida uma nova decisão sobre o mesmo objecto processual, obrigando, concomitantemente, que o tribunal e as partes se vinculem à decisão prolactada anteriormente, com ressalva, obviamente, para as situações em que é proferida, no âmbito do recurso, decisão mais favorável, o que não é o caso.
Também não é o caso, importa assinalar, de situação em que, por obediência à segurança jurídica e à necessidade de justiça, se impusesse a cedência do caso julgado, em face, por exemplo, de erro grave e arbitrário de julgamento, pese a circunstância de a exigência da sua inviolabilidade emanar, igualmente, do princípio da segurança jurídica.
O invocado erro de julgamento em matéria de direito em que o Tribunal recorrido assenta a sua discordância para reverter a convolação do crime de peculato para o crime de recebimento indevido de vantagem, operada em sede do Tribunal da Relação de Luanda e, em consequência, condenar os Recorrentes pelo cometimento do crime de peculato, não se afigura dotada da relevância constitucional e legal necessárias, para colocar em causa a inviolabilidade do caso julgado.
Deste modo, atentos ao disposto na Constituição (n.º 5 do artigo 65º da CRA) e na lei processual penal (n.º 2 do artigo 496.º do CPPA), outra parece não ser a conclusão de que, com relação aos Recorrentes Lourenço Afonso Felisberto Pascoal, Fernando Abel, Atanásio Lucas José, Inácio Sangueve, Almeida Adão, Aníbal Pires Nunes Antunes, Manuel Evaristo Pacheco, Abreu Jamba Lumbongo e António João Martins Kibiana, o juízo decisório do Tribunal Supremo, vertido no aresto ora posto em crise, coloca em causa a garantia constitucional do non bis in idem, o princípio da taxatividade dos recursos e, também, o princípio da legalidade.
Nesta medida, afigura-se despiciendo analisar as demais questões subjacentes à condenação destes Recorrentes, levantadas em sede do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Já quanto ao alegado pelo Recorrente Joaquim José Amado que, como acima dito, viu, pelo Tribunal Supremo, igualmente agravada para cinco anos a pena de 4 anos a que vinha condenado, em sede do Tribunal da Relação de Luanda, pela prática de crime de peculato, considera esta Corte de Justiça Constitucional que o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, apesar de não atentar contra o princípio da proibição da reformatio in pejus, contende com outros princípios estruturantes do processo penal.
Como supra referido, o representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Luanda interpôs para o Tribunal Supremo recurso do Acórdão proferido por esta instância Judicial em que pediu o agravamento da pena aplicada a Joaquim José Amado e aos demais Recorrentes. O mesmo foi requerido, na sua vista, pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal Supremo.
Acontece que, quer num caso, quer no outro, o Recorrente Joaquim José Amado deveria, por imposição legal (n.º 3 do artigo 473.º do CPPA), ter sido notificado para exercer o seu direito ao contraditório, o que não se verificou, como resulta dos autos.
Ora, o poder-dever de punir do Estado encontra legitimação por meio do processo penal que se apresenta, ao mesmo tempo, como um instrumento de tutela de direitos fundamentais, nos quais se incluem a garantia do direito ao contraditório, que materializa uma das dimensões do direito à defesa e à ampla defesa das partes processuais, bem como do direito ao julgamento justo e conforme.
Sendo um instrumento jurídico de concretização do julgamento justo e conforme, o exercício do direito ao contraditório, como manifestação do direito à defesa, não releva unicamente como garante de um interesse do arguido/Recorrente. É, igualmente, relevante como factor de legitimação do interesse público na realização da justiça penal.
Neste sentido, pode ler-se em Curso de Direito Processual Penal: Teoria (Constitucional) do Processo Penal, em citação de Moreno Catena, o seguinte: “ La defensa en el processo penal no puede ser concebida solo como um dereche que assiste a el inculpado para hacer valer por si ou con la asistencia de un abogado, sus argumentos defensivos y promover todos os resortes permitidos por la ley para intentar su absolución; transcendiendo de la simple esfera individual, atañe al interes general que el proceso sea decidido rectamente y, desde ese punto de vista, la defensa opera como facto de legitimidad de la pretensión y la sanción penal.” (Júnior, Walter Nunes da Silva, Renovar, Rio de Janeiro, 2008, p. 702).
Ora, como reflectido na jurisprudência deste Tribunal Constitucional, o direito ao contraditório, também enunciado como um princípio fundamental, pode, resumidamente, ser descrito à luz da regra segundo a qual “nenhum conflito é decidido sem que à outra parte seja dada a possibilidade de deduzir oposição”, contradizendo factos, pleiteando ou requerendo diligências.
Às partes impõe-se, por consequência, que participem em todas as fases do processo e que seja assegurado, entre si e perante o Tribunal, um estatuto de igualdade substancial no exercício de faculdades e no uso de meios de defesa.
Nesta senda, refere-se, a exemplo, no Acórdão 883/2024, que do direito ao contraditório decorre a proibição de prolacção de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a faculdade de sobre elas se pronunciarem, aplicando-se tal regra não apenas na 1.ª instância, mas também na regulamentação de diferentes aspectos atinentes à tramitação e julgamento dos recursos. Não é suficiente ouvir as razões do queixoso. Terá de se conceder à parte contrária a faculdade de se defender (…)”.
No mesmo sentido vai Adlézio Agostinho quando enuncia que “o princípio do contraditório exprime a garantia de que ninguém pode sofrer os efeitos de uma sentença sem ter tido a possibilidade de ser parte no processo da qual esta provém, ou seja, sem ter tido a possibilidade de uma efectiva participação na formação da decisão judicial (direito de defesa)” (Manual de Direito Processual Constitucional, 2023, AAFDL Editora, p. 404).
Aliás, a jurisprudência desta Corte Constitucional alicerça-se no sentido aqui vertido, como ilustram, entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 392/2016, 517/2018, 629/2020, 639/2020, 773/2022 (Disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao).
No caso sub judice, atentos aos autos e à cronologia dos factos, torna-se evidente que ao Recorrente Joaquim José Amado não lhe foi dada a oportunidade de, em igualdade de armas, contradizer o requerido pelos representantes do Ministério Público junto dos Tribunais da Relação de Luanda e do Supremo, tendo sido confrontado com uma decisão surpresa que o condenou em pena mais grave.
Em face das circunstâncias ora expostas, considera este Tribunal que a Decisão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no que diz respeito ao Recorrente Joaquim José Amado, coloca em crise o direito ao contraditório, reflectido no n.º 1 do artigo 67.º e n.º 2 do artigo 174.º, ambos da CRA e, consequentemente, os direitos à ampla defesa e ao julgamento justo e conforme, estabelecido no artigo 72.º da Constituição da República de Angola.
Mais se acresce que, pela inobservância do previsto no n.º 2 do artigo 482.º do CPPA, foi também e obviamente posto em causa o princípio da legalidade que preserva um dos fundamentos essenciais do Estado de Direito e coloca a justiça penal a coberto de suspeitas e tentações de parcialidade e arbítrio.
b) Das alegações de Pedro Lussati, Manuel Correia, Evaristo Inocêncio Cambande, Ildefonso Armando Gama Ferraz, Jacinto Hengombe, José Tchiwana e Hermez Francisco Tyaunda
Os Recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal Supremo do Aresto que foi proferido pelo Tribunal da Relação de Luanda e viram confirmadas pela Instância recorrida as penas aplicadas em sede do Tribunal da Relação de Luanda.
No geral invocam a violação dos mesmos direitos e princípios, ainda que com fundamentos diferentes. Pelo facto, proceder-se-á, no que for o caso e seguindo o mesmo procedimento, a uma abordagem conjunta do que requerem a este Tribunal, no sentido óbvio da aferição da inconstitucionalidade do Acórdão recorrido.
Relativamente aos Recorrentes Manuel Correia e Hermez Francisco Tyaunda, cuja condenação na pena de três anos foi confirmada pelo Tribunal Supremo, sempre valerão as considerações feitas a respeito da irrecorribilidade das decisões dos Tribunais da Relação, em face do disposto no n.º 2 do artigo 496.º do CPPA.
Assim:
i. Da violação do direito a julgamento justo e conforme
O direito a julgamento justo e conforme, que encontra consagração no artigo 72.º da CRA e vertido nos artigos 8.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos ou no artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, que também pode ser aferido na sua dimensão de princípio constitucional, congrega em si um feixe de outros direitos e garantias fundamentais que concorrem para a sua concretização, pressuposto de segurança jurídica e corolário do direito a tutela jurisdicional efectiva.
A proibição da dupla penalização e da auto incriminação, a observância dos princípios da legalidade, da igualdade ou a garantia do direito ao recurso constituem, entre outros, dimensões a partir das quais este direito se realiza.
Da jurisprudência deste Tribunal Constitucional sobre o direito a julgamento justo e conforme, se retira a compreensão de que integra uma dimensão formal, vinculada às garantias do processo equitativo, e uma dimensão material ou substancial, directamente relacionada com a resolução do caso concreto, estando intrinsecamente conexionado com a noção de justiça, que se deve reflectir na resolução do litígio e na formação do consequente juízo decisório (ver Acórdão n.º 883/2024, disponível em www.tribunalconstitucional.ao).
Este direito, tem sido, igualmente, entendido, em sede desta Instância Constitucional, como um direito que tem por base a equidade e igualdade de armas, o asseguramento das garantias processuais em todas as fases do processo, do direito à assistência e ao patrocínio judiciário às partes, para que possam exercer na plenitude o direito à ampla defesa, ao recurso e que a demanda tramite e seja decidida dentro dos parâmetros constitucionais e legais (ver Acórdão n.º 741/2022, disponível em www.tribunalconstitucional.ao). Ou ainda, como um direito que pressupõe o respeito pela garantia de independência e imparcialidade do julgador e que atenta para a materialização de uma justiça adequada, justa e proporcional, conformadora do também designado processo equitativo.
O processo equitativo, na perspectiva de Maria Amália Pereira dos Santos, deve ser encarado “num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa (exigência de um procedimento legislativo devido na conformação do processo), mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais”, (O Direito Constitucionalmente Garantido dos Cidadãos à Tutela Jurisdicional Efectiva, in Revista Julgar, Edição de Novembro de 2019, p 12).
Ora, os Recorrentes Pedro Lussati, Manuel Correia, Jacinto Hengombe e José Tchiwana, embora alicerçados em distintas considerações de facto e de direito, vêm arguir a violação do direito ao julgamento justo e conforme.
Para Pedro Lussati, a violação deste direito materializa-se no facto de, alegadamente, o Tribunal recorrido ter conhecido de questões incompatíveis com o disposto na Lei n.º 15/18, ter violado o seu direito à propriedade, com a venda dos seus bens que foram objecto de arresto. Fundamenta, ainda, a violação com base em considerações relativas à insuficiência da matéria de facto provada e por não ter sido acautelado o seu direito à defesa na fase instrutória do processo.
Para Manuel Correia, a violação decorre do facto de ter sido condenado a pagar uma indemnização solidária que, na sua perspectiva, se mostra excessivamente superior ao prejuízo causado, enquanto Jacinto Hengombe alicerça-se no facto de se ter verificado, no âmbito da sua constituição como arguido, uma confusão entre si e uma outra pessoa de nome Jacinto. Por seu lado, José Tchiwana alega a violação do direito ao julgamento justo e conforme por entender, que na qualidade de militar, deveria ter sido julgado por um Tribunal Militar ao invés de um Tribunal Civil.
Antes de tudo, é mister acentuar que as questões arroladas pelos Recorrentes, excepto a que é trazida à consideração deste Tribunal Constitucional por José Tchwiana que não foi submetida à sindicância do Tribunal Supremo, foram devidamente apreciadas por aquela Instância Superior da Jurisdição Comum. Foram sustentadas com fundamentos de facto e de direito apropriados, que não revelam, neste particular e prima facie, qualquer discordância entre o juízo decisório e os critérios normativos aplicados, quando em confronto com princípios e direitos fundamentais.
Com efeito, a questão trazida à liça por Pedro Lussati relativamente à aplicação da Lei n.º 15/18 fica diluída no posicionamento que o Tribunal recorrido assumiu relativamente à constitucionalidade deste diploma legal e que se encontra espelhado em sede da questão prévia. O Tribunal recorrido pronunciou-se, ainda, no sentido de não existir prova sobre a alegada venda dos bens, o que, à partida, não conflitua com o direito de propriedade deste Recorrente.
Por seu lado, o arbitramento de indemnização solidária é fundamentado, no Acórdão posto em crise, tendo em conta, ante o que foi ajuizado, a conexão dos factos ilícitos praticados pelos diferentes co-arguidos que, por formarem um todo unitário, justifica a responsabilidade solidária.
Também fica clara na fundamentação de facto do aresto objecto de impugnação, a participação de Jacinto Hengombe, que foi chefe adjunto da Secção de Finanças, da Unidade de Guarda Presidencial (UGP), na prática de actos lesivos ao erário público, ocorridos entre 2008 a 2021, e que afectaram, além da CSPR e da UGP, a Base Central de Abastecimento (BCA), a Unidade Especial de Desminagem (UED), o Batalhão de Transportes Rodoviários do Cuando Cubango (BTR), a Unidade de Protecção de Obras e Infraestruturas Especiais do Estado (UPOIEE), a Brigada de Construção de Obras Militares (BCOM), a Brigada Especial de Limpeza (BEL) e a Unidade de Destinação Especial ou Unidade de Operações Especiais (CHACAL). (Ver fls. 18.572 a 18.581).
Quanto à questão arrolada por José Tchiwana, embora se situe à margem dos poderes de cognição desta Corte, sempre se poderá dizer que não ficou fora da sindicância dos tribunais da jurisdição comum. É que questão idêntica foi arguida pelos Recorrentes Pedro Lussati e Abreu Jamba Lumbongo, em sede do Tribunal da Relação de Luanda. Esta instância concluiu que os crimes que lhes eram imputados não encontravam consagração na Lei n.º 4/94, de 26 de Janeiro (Lei dos Crimes Militares), pelo que ficavam fora do âmbito da competência dos Tribunais Militares, devendo ser julgados em sede da jurisdição comum, (fls. 17.155/verso).
Por outro lado, a questão ligada à insuficiência da matéria probatória bem como ao alegado erro na valoração da prova foi levantada, além de Pedro Lussati, pela quase generalidade dos Recorrentes, ainda que com fundamento na violação de outros direitos ou princípios constitucionalmente consagrados, como o princípio da legalidade, da tutela jurisdicional efectiva ou o da presunção de inocência.
Da mesma forma que as demais, também esta questão passou pelo crivo do Tribunal Supremo que considerou que todos os factos submetidos à apreciação quer da 3.ª Secção da Sala do Crime do Tribunal da Comarca de Luanda, quer do Tribunal da Relação de Luanda foram devidamente atendidos e valorados de modo a justificar a decisão de direito, sendo que, acentua, muitos dos arguidos admitiram ter praticado os factos por ordens superiores, o que não os iliba de qualquer responsabilidade (fls.18.622-18.623 e verso).
Do exposto, constata-se que as questões aqui trazidas em nada prejudicaram a descoberta da verdade material (se tida em conta a questão probatória suscitada), nem o consequente juízo decisório firmado pelo Tribunal Supremo.
Por conseguinte, é de considerar que, ante o alegado pelos Recorrentes Pedro Lussati, Manuel Correia, Jacinto Hengombe e José Tchiwana, não se configura, neste particular, violação ao direito ao julgamento justo e conforme, quando equacionada a sua dimensão material ou substancial, que está directamente relacionada com a resolução do caso concreto.
Com efeito, a decisão judicial prolactada, em face do caso concreto, deve ter sempre em vista realizar o direito e a justiça, o que é fruto de um processo lógico, razoável e ponderado de interpretação e determinação das normas e princípios jurídicos a aplicar, na relação com os factos, ao litígio objecto de tutela jurídica (penal, civil ou de outra natureza).
ii. Da violação do princípio da não auto-incriminação
O princípio da não auto incriminação – nemo tenetur se ipsum accusare –, é na sua essência uma garantia fundamental que vigora na esfera penal e que, grosso modo, assegura que ninguém deve ser forçado a produzir factos que o incriminem, que demonstrem a sua culpabilidade, o que inclui o direito de manter-se em silêncio.
Como acentuado por esta Corte de Justiça Constitucional, este princípio constitui “um corolário do Estado de direito e uma característica objectiva do sistema constitucional penal angolano, seja por previsão expressa na (…) alínea g) do artigo 63.º da Constituição, seja, também, na alínea g) do n.º 3 do artigo 14.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, entre nós directamente aplicável à luz do artigo 26.º da Constituição” (vide Acórdão n.º 663/2021, , disponível em www.tribunalconstitucional.ao).
Por outras palavras e como escreve Bangula Quemba “é um princípio que, no geral, garante que qualquer pessoa suspeita ou “acusada não pode ser obrigada a contribuir para a sua própria condenação, carreando para o processo meios de prova que o incriminem ou prejudiquem a sua defesa”. Também significa que “o arguido não pode ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua condenação, (...) a carrear ou oferecer meios de prova contra a sua defesa, quer no que toca aos factos relevantes para a chamada questão da «culpabilidade», quer no que respeita aos atinentes à medida da pena. Em ambos os domínios, não impende sobre o arguido um dever de colaboração nem sequer um dever da verdade”. Trata-se, assim, de um direito de defesa em sentido negativo da liberdade do arguido “contra o Estado, vedando todas as tentativas de obtenção, por meios enganosos ou por coação de declarações autoincriminatórias”.
Assim, a proibição da autoincriminação garante ao arguido “o direito a não colaborar na sua própria qualificação como autor de um crime”, bem como “o direito a não colaborar para a sua própria incriminação, (...) o direito de não ser obrigado a fornecer prova da própria culpabilidade, quer testemunhal, quer real, quer documental”. Também assegura que “qualquer contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posição, seja nomeadamente uma afirmação esclarecida e livre de autorresponsabilidade”, ou melhor, a “auto-incriminação, a existir, tem de ser livre, voluntária e esclarecida. (O Princípio da Proibição da Auto incriminação: A Inconstitucionalidade das Normas sobre os Antecedentes Criminais do Arguido no Código do Processo Penal Angolano, in A Guardiã, Revista Científica do Tribunal Constitucional, 2.ª Ed., p.p 81-82).
Em suma, e atento ao fundamento jurídico constitucional deste direito, lê-se, ainda, em Bangula Quemba, citando Dingeldey, que o direito fundamental a não auto incriminação “garante que o indivíduo não será reduzido a mero objecto da actividade estadual e visa realizar uma proteção completa da liberdade individual de cada cidadão. Ora, esta liberdade é posta em perigo quando o arguido é convertido em meio de prova contra si próprio. Só quando se reconhece ao indivíduo um direito completo ao silêncio no processo penal, se lhe assegura aquela área intocável da liberdade humana, em absoluto subtraída da intervenção estadual.” (Ibidem, p. 89).
Neste processo, a violação da garantia do nemo tenetur se ipsum accusare é arguida pelos Recorrentes Pedro Lussati, Ildefonso Armando Gama Ferraz, Evaristo Inocêncio Cambande e Jacinto Hengombe com fundamento no facto de terem sido obrigados a prestar declarações na fase de instrução sem a garantia do direito à defesa e de as declarações prestadas terem servido para fundamentar a acusação. A violação é também relacionada com a aplicação da Lei n.º 15/18, questão já tratada em sede deste recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Ora, da leitura dos autos, resulta um entendimento contrário ao dos Recorrentes. O Tribunal recorrido contraria, lapidarmente, o que alegam (fls. 18.620/verso), valoração reflectida nas diferentes peças processuais que demonstram que as declarações que sustentam a acusação foram prestadas depois da constituição como arguidos e tendo em atenção o direito de defesa dos Recorrentes, pese a reconhecida complexidade e dimensão do presente processo.
Nesta medida, não se afigura linear a violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, que encontra fundamento na dignidade da pessoa humana, conforma uma das garantias do direito ao julgamento justo e conforme, sendo ainda corolário do direito à presunção de inocência.
iii. Da violação do direito à presunção de inocência e do princípio do in dubio pro reo
Nos presentes autos, a violação do direito à presunção de inocência foi suscitada a propósito das questões relacionadas com alegada insuficiência da matéria probatória e com o erro na valoração da prova, verificadas durante o seu julgamento.
Note-se que, com este mesmo fundamento, os Recorrentes, arguiram a violação do direito ao julgamento justo e conforme, violação que não resultou demonstrada.
Por essa razão, afigurar-se, agora, despiciendo proceder à análise para demonstrar em que medida se concretiza a alegada violação ao direito à presunção de inocência, tendo por base fundamentos já apreciados à luz do direito ao julgamento justo e conforme.
Na verdade, os direitos (e também os princípios) fundamentais constituem, no estado constitucional, a base axiológica do ordenamento jurídico. Fundam-se na dignidade da pessoa humana e impõem limites à acção dos poderes públicos, assumindo uma dimensão objectiva de garantia contra os actos de arbítrio do Estado.
A partir da sua compreensão como normas jurídicas fundamentais e das múltiplas dimensões em que se materializam, os direitos fundamentais podem ser configurados como princípios que congregam, em si, toda uma multiplicidade de outros princípios e direitos formando um todo indivisível.
Daí resultam a interdependência e a indivisibilidade que os caracterizam. Quer porque o conteúdo de uns vincula o de outros, quer porque se complementam, quer porque emanam uns de outros e assumem dimensões típicas em situações jurídicas diferenciadas. Ou ainda porque, na maior parte das vezes, a violação de um leva à violação de outro.
Não obstante, far-se-á novamente, no presente contexto, uma breve incursão sobre o que confere substrato a este direito para justificar o que acima se refere.
O direito a presunção de inocência, plasmado no n.º 2 do artigo 67.º da CRA, configura um dos direitos/princípios mais importantes do processo penal, assenta no reconhecimento da dignidade da pessoa humana e constitui requisito de aferição do processo justo e equitativo, de que o direito de ser presumido inocente é parte integrante, além de outros.
Dele decorre a exigência de que ninguém seja declarado culpado, senão mediante sentença com trânsito em julgado, no termo do devido processo legal, em que são assegurados todos os meios para contrapor a prova apresentada e essenciais para a defesa.
Do direito constitucional à presunção de inocência decorre, assim, não apenas a garantia de um juízo de não culpabilidade com relação ao agente do crime até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, mas também, num outro sentido, a imputação do ónus da prova a quem detém a faculdade de acusar, in casu, o Ministério Público.
A presunção de inocência pressupõe, concomitantemente, que a demonstração de culpabilidade não esbarre em qualquer dúvida razoável, que a existir determinará a absolvição do acusado, à luz do princípio do in dubio pro reo. Como refere Benja Satula “este princípio (in dubio pro reo) é simplesmente um princípio lógico de prova. Se o tribunal não lograr a prova dos factos que constituem o objecto do processo deve considerar a acusação não provada e como consequência lógica não aplicar qualquer sanção ao arguido porque falta o necessário pressuposto, ou seja, que a acusação é fundada” (O reflexo da presunção de inocência na jurisprudência em África, in A Guardiã, Revista Científica do Tribunal Constitucional, Angola, Lexdata, p.p 124-125).
No mesmo sentido, se posiciona Vasco Grandão Ramos, quando professa que “sempre que a prova produzida seja insuficiente e não conduza a formação de um juízo de certeza sobre a existência da infracção ou de que foi o arguido que a cometeu, deve ser absolvido. Na dúvida, decide-se a favor do réu (…)” (Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, 2.ª Ed., Escolar Editora, 2015, p. 81).
Por sua vez, a propósito do princípio do in dubio pro reo, Jorge de Figueiredo Dias diz o seguinte: “Diferentemente se passam as coisas em processo penal, onde, como sabemos, compete em último termo ao juiz, oficiosamente, o dever de instruir e esclarecer o facto sujeito a julgamento: não existe aqui, por conseguinte, qualquer verdadeiro ónus da prova que recaia sobre o acusador ou o arguido. Em direito processual penal, não existe pelo menos seguramente, o chamado ónus da prova formal, segundo o qual as partes teriam o dever de produzir as provas necessárias a escorar as suas afirmações de facto, sob pena de não verem os factos respectivos ser tidos como provados” (Direito Processual Penal, 1.ª Edição 1974 Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, p. 212).
Ora, como já demonstrado, o Tribunal recorrido considerou improcedente a alegação sobre a insuficiência da matéria probatória e sobre o erro na valoração da prova, o que justifica, nesta dimensão, a decisão tomada, que não poderia conduzir a um juízo de absolvição, pois que a dúvida razoável não se instalou.
Assim, também nesta análise em concreto, a conclusão a retirar é a de não resultar evidente o desrespeito ao direito à presunção de inocência pelos fundamentos invocados. O acto de julgar não procede, obviamente, de um mero exercício de imputar determinado facto a quem dele não carrega a culpa. A prova, que persegue a verdade material, pode, efectivamente, ser aferida a partir dos autos.
iv. Da violação dos princípios da responsabilidade penal, da pessoalidade da pena e da sua intransmissibilidade, da não retroactividade da lei penal e da legalidade penal.
Vários Recorrentes, entre os quais, Pedro Lussati, Evaristo Inocêncio Cambande, Ildefonso Gama Ferraz e José Tchiwana alegam a violação dos princípios acima identificados, alicerçados em razões que, entre outras, se prendem com o decidido sobre o pagamento solidário da indemnização arbitrada a favor do Estado, com o facto de considerarem amnistiados os crimes porque foram condenados e, também, por entenderem que a Lei n.º 15/18, que serviu de fundamento para o arresto do seu património, incidiu sobre bens adquiridos antes da sua entrada em vigor.
À semelhança do que vem acontecendo, este conjunto de razões também serviu de fundamento para a alegada violação do direito ao julgamento justo, estando agora em causa aferir se se verifica a ofensa aos princípios acima identificados, sendo que, como já assinalado, a violação de um deles poderá redundar na violação dos outros.
A responsabilidade penal funda-se na culpa e não pode haver pena sem culpa, sendo esta uma exigência que decorre da própria dignidade da pessoa humana, cuja protecção constitui alicerce e fundamento do Estado democrático de direito.
Este princípio encontra-se reflectido no n.º 2 do artigo 42.º do CPA, ao estatuir que a “pena não pode ultrapassar a medida da culpa”. É, portanto, a culpa que decide a medida da pena que é aplicada a quem comprovadamente tenha cometido ilícito criminalmente sancionado.
Como escreve a respeito Manuel Simas Santos “(…) a sanção penal só pode fundar-se na constatação de que deve reprovar-se o autor pela formação da vontade que o conduziu a decidir o facto e que essa sanção nunca pode ser mais grave do que aquilo que o autor mereça segundo a sua culpabilidade” (Direito Penal de Angola, Escolar Editora-Angola, p. 66).
A pena não pode, por conseguinte, transcender a pessoa do condenado, assumpção que materializa o princípio da pessoalidade da pena ou da responsabilidade penal do agente, o único a quem a sanção pode ser aplicada.
Literalmente, este é um raciocínio que não pode ser transportado tal qual para o plano da responsabilidade civil, até mesmo se tidos em conta os objectivos perseguidos pela sanção penal, por um lado, e pela sanção civil, por outro. A primeira tem em vista uma finalidade de prevenção geral ou especial do crime, sendo que a finalidade da sanção civil tem em vista a reparação de danos.
Por outro lado, ainda que decorra de um processo penal, a responsabilidade civil tem, neste contexto, estatuto autónomo da responsabilidade penal, à luz do estabelecido no artigo 140.º do CPA. Os critérios para a sua determinação são, por isso, os definidos pela legislação civil, apesar de esta ser questão que continua a merecer uma intensa reflexão em sede da doutrina.
Manuel Simas Santos escreve a propósito que “as vias de convergência entre a acção penal e a acção civil resultante de facto delituoso têm sido amplamente debatidas na doutrina, apontando-se fundamentalmente duas alternativas de solução: considerar-se a reparação civil como um efeito da condenação para a submeter, quer substancial, quer processualmente, à disciplina penal; ou considerá-la na sua natureza civil, atribuindo- lhe efeitos penais se e onde os princípios do direito civil o permitirem” (Ibidem, p. 343).
Ora, tendo em atenção o que ilustram os autos e já antes demonstrado, o Tribunal Supremo não se desviou do critério estabelecido no Código Penal para a determinação da indeminização. A solução encontrada, na sua relação com princípios e direitos consagrados na Constituição, não merece qualquer censura desta Corte.
Perante o verificado, não se descortina, assim, a violação do princípio da pessoalidade da pena e da responsabilidade penal.
A alegada ofensa ao princípio da legalidade penal foi justificada, na óptica dos Recorrentes, com aplicação da Lei n.º 15/18 e com o facto de alegadamente terem sido amnistiados os crimes pelos quais foram condenados, igualmente, violaria o princípio da irreversibilidade das amnistias.
Tal como tem sido acentuado por este Tribunal Constitucional, o princípio da legalidade penal, consagrado nos n.ºs 2 e 3 do artigo 65.º da CRA e no artigo 1.º do CPA, constitui-se numa garantia do cidadão contra o Estado. Tem por propósito limitar o ius puniendi deste, quer em matéria de definição dos crimes quer das penas. Como assevera Claus Roxin, “o Estado de Direito protege o indivíduo não só mediante o Direito Penal, mas também do Direito Penal” (Strafrecht, Allgemeiner Teil, I, Munique, 1994. Tradução espanhola, Derecho Penal, Parte General, I, Madrid, 1997, p. 137).
O princípio da legalidade penal encontra tradução no brocardo latino nullum crimen sine lege, ou nulla poena sine lege, que tem subjacente a ideia de reserva de lei, o que, numa formulação directa, quer significar que não há crime, não há pena, sem que uma lei assim o determine. Neste princípio está incorporado o princípio da proibição da reatroactividade de lei penal (nullum crime sine lege proevia), de que emana a exigência segundo a qual a lei só é aplicada a factos ocorridos durante a sua vigência.
Acontece que o aresto em sindicância é suficientemente objectivo quanto ao juízo decisório firmado com relação à questão da aplicação da Lei n.º 15/18, em que os Recorrentes fundamentam a ofensa aos princípios da legalidade penal e da não retroactividade da lei penal.
A 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo considerou que os crimes cometidos pelos aqui Recorrentes foram de execução continuada, justificando-se, deste modo, o facto de o referido diploma legal ter sido aplicado.
Por outro lado, o Acórdão recorrido não se debruçou sobre a alegada violação do princípio da irreversibilidade das amnistias, questão também suscitada por José Tchiwana, tendo como referência a Lei n.º 35 /22, de 23 de Dezembro, quando refere que nenhum tribunal verificou que o processo estava amnistiado com a entrada em vigor, subentende-se, da Lei n.º 35/22, de 23 de Dezembro Lei da Amnistia.
Porém, tal não corresponde objectivamente à verdade dos autos. Por um lado, é importante notar que esta lei deixou de fora, entre outros, os crimes de peculato, de corrupção, de recebimento indevido de vantagens, de tráfico de influência, de branqueamento de capitais, de retenção de moeda e de falsificação de documentos (alíneas, h), i) e j) do n.º 1 do artigo 3.º).
A lei também dispõe sobre a não devolução de bens declarados perdidos a favor do Estado que tenham sido apreendidos nos processos-crime abrangidos pela amnistia, desde que não devam ser restituídos a quem legitimamente os deva possuir nos termos gerais do direito (artigo 5.º).
Por outro lado, atento ao facto de, em decorrência do disposto no artigo 2.º desta Lei da Amnistia, terem sido perdoadas em ¼ (um quarto) as penas aplicadas aos Recorrentes visados neste processo medida decidida em sede do Tribunal da Relação de Luanda e confirmada pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo (fls. 17.176 e verso e 18.631, verso).
Destarte, esta Corte de Justiça Constitucional é levada a concluir que, do decidido no aresto objecto de impugnação nestes autos, não resulta qualquer ofensa aos princípios da não retroactividade da lei penal, da legalidade penal e da irreversibilidade da amnistia.
v. Da ofensa ao princípio da proibição do excesso
O Recorrente Manuel Correia vem alegar ofensa ao princípio da proibição do excesso, previsto no artigo 57.º da CRA, por entender que a indemnização solidária arbitrada a favor do Estado é excessivamente superior ao prejuízo causado e de igual modo muito superior ao dano causado ao próprio Estado.
Ora, o referido princípio, indissociável do princípio da proporcionalidade em sentido restrito é, assim, entendido como princípio da «justa medida», nas palavras de Gomes Canotilho. Trata-se de equacionar os meios e o fim «(…) mediante um juízo de ponderação, com objectivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim». Em suma, pesam-se «(…) as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim» (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 1999, p. 264).
Sucede que os argumentos aduzidos pelo Recorrente para fundamentar a alegada violação do princípio da proibição do excesso, têm a ver com o mérito da causa, pois que a indemnização arbitrada decorre da valoração feita pelo Juiz da causa, aquando do julgamento da matéria fáctica e no uso do seu poder de livre apreciação e, tal como já referenciado, este Tribunal não se constitui em mais uma instância da jurisdição comum, cabendo-lhe, apenas, ajuizar a constitucionalidade da decisão e não o mérito ou demérito da mesma.
Deste modo, não pode proceder o alegado pelo Recorrente, relativamente a violação do princípio da proibição do excesso.
vi. Da violação dos direitos à intimidade da vida privada, à inviolabilidade de domicílio e à integridade física e da nulidade do processo
A violação dos direitos supra identificados é arguida pelo Recorrente Pedro Lussati com o argumento de terem sido feitas buscas e apreensões no seu domicílio sem mandado e de ter sido sequestrado, mantido em cativeiro e interrogado durante 10 dias, 24 horas sob 24 horas. Quanto à nulidade do processo funda-se no facto de, segundo o Recorrente, ter sido o mesmo promovido por pessoas estranhas ao Ministério Público.
É facto que as questões arroladas são susceptíveis de fundamentar um juízo de inconstitucionalidade. O direito à inviolabilidade do domicílio, que é corolário do direito à intimidade da vida privada, traduz exactamente a garantia de o indivíduo não ver afectado o seu status libertatis por ingerências arbitrárias do Estado. Não é, porém, absoluto e, como tal, pode ser objecto de restrições. Por seu lado, o âmbito normativo da protecção do direito à integridade física, há-de incluir as formas de tratamento que possam causar danos não apenas ao corpo, mas também à saúde mental e emocional.
De todo o modo, importará referir que o Tribunal da Relação de Luanda, no aresto proferido no contexto dos presentes autos, deu resposta às questões ora em pauta. Concluiu que carecem de fundamento, na medida que o processo teve início mediante denúncia e que as revistas, buscas e apreensões foram devidamente ordenadas pelo Magistrado competente, conforme fls. 7 a 94 dos autos.
Aqui chegados, importa, agora, retirar conclusões relativamente a todo o expendido.
Com o recurso extraordinário de inconstitucionalidade está em causa reparar “lesões” que decorram da ofensa a princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais, no confronto com o juízo decisório firmado pelo Tribunal recorrido, cujos fundamentos e premissas em que assenta podem, em alguns casos, contrariar a exigida vinculação a estes princípios, direitos, liberdades e garantias no exercício da função jurisdicional.
No plano prático, a tutela jusconstitucional, tem em conta, como visto, as diferentes dimensões em que, em face do caso concreto, se manifestam estes princípios, direitos, liberdades e garantias e a interdependência que existe entre uns e outros.
Este recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto separadamente pelo Ministério Público e pelos demais Recorrentes neste processo, embora tendo como objecto o mesmo Aresto condenatório da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo.
A intervenção do Ministério Público encontra plena justificação ante o seu estatuto constitucional e legal de que decorre competência e legitimidade, enquanto órgão garante da legalidade e titular da acção penal, para promover a realização do direito e da justiça, tendo em conta princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais, bem como outros interesses que encontram amparo na Constituição e na lei.
Os demais Recorrentes, pese o facto de terem invocado a lesão dos mesmos direitos e princípios fundamentais, à luz, em alguns casos, dos mesmos fundamentos, também o fizeram alicerçados em fundamentos que caracterizam especificamente a situação de cada um enquanto sujeitos processuais.
Por conseguinte, o vício de inconstitucionalidade de que enferma o acórdão recorrido, decorrente da ofensa a princípios, direitos e garantias fundamentais, verificado ao longo da apreciação deste recurso extraordinário de inconstitucionalidade, não se estende a todos os Recorrentes visados nestes autos.
Assim, perante o alegado pelo Ministério Público, é de considerar que, no Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal do Tribunal Supremo, se vislumbra a violação dos princípios da propriedade do Estado, da tutela o interesse superior do Estado, da supremacia da constituição e da legalidade, nos termos dos artigos 14.º, 37.º em harmonia com o artigo 95.º, o n.º 2 do artigo 174.º, 6º e 72.º todos da Constituição da República de Angola.
No caso dos Recorrentes Pedro Lussati, Evaristo Inocêncio Cambande, Ildefonso Armando Gama Ferraz, Jacinto Hengombe e José Tchiwana, a decisão recorrida não enferma de qualquer vício de inconstitucionalidade, pelo que improcedem os recursos extraordinários de inconstitucionalidade por estes interpostos.
Quanto aos Recorrentes Lourenço Afonso Felisberto Pascoal, Fernando Abel, Atanásio Lucas José, Inácio Sangueve, Almeida Adão, Aníbal Pires Nunes Antunes, Manuel Evaristo Pacheco, Abreu Jamba Lumbongo e António João Martins Kibiana, condenados na pena de 3 anos de prisão em sede do Tribunal da Relação de Luanda, considera esta Corte de Justiça Constitucional que o Acórdão recorrido, em face do estabelecido no n.º 2 do artigo 496.º do CPPA, ao agravar a medida da pena, coloca em causa a garantia constitucional do non bis in idem, por violação do caso julgado e dos princípios da legalidade e o da taxatividade dos recursos.
No que concerne ao Recorrente Joaquim José Amado, cuja pena de prisão foi, igualmente, agravada pelo Tribunal recorrido, à margem do estabelecido no n.º 2 do artigo 482.º do CPPA, o Aresto posto em crise atenta contra o direito ao contraditório, espelhado no n.º 1 do artigo 67.º e no n.º 2 do artigo 174.º, ambos da CRA e, consequentemente, contra o princípio da legalidade e os direitos à ampla defesa e ao julgamento justo e conforme.
Relativamente aos Recorrentes Manuel Correia e Hermez Francisco Tyaunda, que viram confirmadas em sede do Tribunal Supremo a pena de 3 anos de prisão, o facto de a Instância recorrida ter conhecido dos seus recursos, apesar do disposto no n.º 2 do artigo 496.º do CPPA, não redundou em lesão que fira de inconstitucionalidade o aresto em sindicância com relação aos mesmos.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
a) Negar provimento aos recursos interpostos pelos Recorrentes Pedro Lussati, Evaristo Inocêncio Cambande, Ildefonso Armando Gama Ferraz, Jacinto Hengombe, José Tchiwana, Manuel Correia e Hermez Francisco Tyaunda, mantendo-se, quanto aos mesmos, o acórdão recorrido nos seus termos e fundamentos.
b) Dar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, sendo que devem manter-se arrestados preventivamente os bens do de cujus Gamaliel Óscar Pereira da Gama, até decisão final transitada em julgado, de natureza cível, referente ao património incongruente. Com relação ao arguido Henrique Chilambo Ngueve Alfred e entendendo-se conforme o sentido da interpretação do Ministério Público, deve o Tribunal recorrido reapreciar a compatibilidade do património lícito com o património incongruente, nos termos e no espírito do artigo 5.º da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro.
c) Dar provimento aos recursos interpostos pelos Recorrentes Lourenço Afonso Felisberto Pascoal, Fernando Abel, Atanásio Lucas José, Inácio Sangueve, Almeida Adão, Aníbal Pires Nunes Antunes, Manuel Evaristo Pacheco, Abreu Jamba Lombongo, António João Martins Kibiana, por ofensa aos princípios da legalidade, do non bis in idem, da taxatividade dos recursos e violação dos direitos ao contraditório e ao julgamento justo e conforme, e declarar a nulidade da decisão recorrida com relação aos mesmos, devendo manter-se para o efeito, o decidido pelo Tribunal da Relação de Luanda, com relação à pena de prisão aplicada.
d) Dar provimento ao recurso interposto pelo Recorrente Joaquim José Amado, por violação do princípio do contraditório, devendo o Tribunal recorrido atender ao disposto no n.º 2 do artigo 482.º do Código do Processo Penal Angolano.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 6 de Novembro de 2024.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dr. João Carlos António Paulino (Declarou-se Impedido)
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva