ACÓRDÃO N.º 928/2024
PROCESSO N.º 1155-C/2024
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Lucrécio de Jesus de Brito Martins da Cruz, Recorrente, melhor identificado nos autos, inconformado com a decisão vertida no Acórdão, proferido pela 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo no Processo n.º 2689/2019, veio a esta Corte interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Para tanto, arregimentou as suas alegações nos termos que abaixo se sintetizam:
1. O Acórdão recorrido é inconstitucional por violação do princípio da legalidade, em virtude de o Tribunal ad quem ter declarado nulo o contrato de concessão de direito de superfície num processo impróprio e contra parte ilegítima.
2. O Acórdão recorrido declarou nulo o contrato de concessão de direito de superfície em processo impróprio e contra pessoa imprópria, nos termos do artigo 69.º e ss da Lei de Terras.
3. Violou, outrossim, o princípio do contraditório, nos termos do n.º 2 do artigo 174.º da CRA, pois, ao decidir em processo impróprio, não chamou os interessados que o deveriam ajudar a esclarecer a verdade, de modo a tomar uma decisão prudente e esclarecida.
4. Pois, o contraditório só pode ser exercido num processo em que as partes sejam devidamente identificadas. O facto de o Tribunal ad quem não ter tomado a decisão em processo próprio equivocou na classificação da acção o que impediu a tomada de uma decisão prudente e esclarecida e decidiu sem o contraditório.
5. A decisão é também inconstitucional por ser violadora do direito a julgamento justo e equitativo artigo 72.º da CRA, porque com tal decisão o Tribunal ad quem violou a lei e afastou os demais princípios do Estado de Direito, enquanto itinerário que deve ser seguido pelos Tribunais ao administrar a justiça e promover a paz social.
6. O Acórdão recorrido violou o princípio da imparcialidade, por ter desrespeitado a Constituição e as leis, o Tribunal ad quem afastou qualquer possibilidade de se colocar ao lado da verdade, facto que revela o seu interesse em favorecer os moradores do edifício n.º 101.
7. A Decisão recorrida é também violadora do princípio da livre iniciativa privada, propriedade, segurança e certeza jurídicas, por ter declarado nulo o direito de superfície do Recorrente em desrespeito a legislação fundiária vigente.
Termina, no essencial, pedindo que este Tribunal declare inconstitucional o Acórdão proferido no Processo n.º 2689/2019 pela 1.ª secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo.
O processo foi à vista do Ministério Público que, no essencial, se pronunciou nos seguintes termos: “(…) Para a declaração de nulidade do contrato de concessão do direito de superfície, os artigos 69.º e seguintes da Lei n.º 9/04, de 9 de Novembro (Lei de Terras), prevêem um mecanismo próprio que consiste numa acção de nulidade que deve ser intentada contra a autoridade concedente que haja proferido a decisão contrária à lei ou aos seus regulamentos, na qual ficam salvaguardas todas as garantias processuais das partes, o que não foi observado.
Nesta perspectiva, em que não foi proposta a competente acção de nulidade do contrato do direito de superfície contra a autoridade concedente e a decisão foi proferida fora da referida acção e contra pessoa diversa da que tem legitimidade passiva, vide artigo 71.º, n.º 1 da Lei n.º 9/04, de 9 Novembro, nos parece que o Acórdão recorrido afronta fundamentalmente o princípio constitucional da legalidade (artigo 6.º da CRA) e a norma do artigo 177.º, n.º 1 da CRA.
Nestes termos pugnamos pelo provimento do recurso.”
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
Nos termos e fundamentos da alínea a) e do § único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), estabelece-se como âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Foi proferido um aresto pelo Tribunal Supremo e esgotada a cadeia recursória, pelo que, o Tribunal Constitucional tem competência para apreciar o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “…as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
Assim, atento o disposto supra, é indubitável a legitimidade do Recorrente, uma vez que, como prescreve a alínea a) do artigo 50.º da LPC, a legitimidade para o recurso extraordinário de inconstitucionalidade é uma legitimidade reflexa ou derivada da legislação processual civil para a qual a LPC remete.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade assenta em aferir se, ao declarar nulo o contrato de concessão do direito de superfície, o Acórdão prolactado pela 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2689/2019, contende com princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados na CRA.
V. APRECIANDO
O Recorrente veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade a pretexto de considerar inconstitucional a Decisão do Tribunal Supremo que declarou nulo o contrato de constituição do direito de superfície, por alegada violação dos princípios da legalidade, da tutela jurisdicional efectiva, do contraditório e do direito a julgamento justo e conforme, todos previstos na CRA.
De forma sumária, ressalta-se que resulta dos autos que o aqui Recorrente foi réu numa acção de reivindicação de propriedade proposta pela comissão de moradores do edifício n.º 101. Na mesma acção, o aqui Recorrente deduziu pedido reconvencional, pedindo a condenação da autora no reconhecimento do seu direito de superfície sobre o imóvel n.º 101, sito na Rua Major Canhangulo.
O Tribunal a quo, negou provimento a pretensão de ambos os contendores, absolvendo-os dos respectivos pedidos, o que levou a que cada um deles interpusesse recurso de apelação para o Tribunal ad quem.
O Tribunal ad quem, por seu turno, negou reconhecer a propriedade do imóvel, por usucapião, a favor da apelante e, em simultâneo, declarou nulo o contrato de direito de superfície celebrado entre o aqui Recorrente e o Governo Provincial de Luanda.
O Tribunal ad quem justificou a declaração da nulidade por entender que o processo de concessão do direito de superfície a favor do Recorrente não cumpriu os procedimentos legais exigidos, sobretudo os previstos nos artigos 80.º, alínea b) do 136.º, n.º 1 do 140.º e 141.º, todos do Decreto n.º 58/07, de 13 de Julho, Regulamento Geral de Concessão de Terrenos (RGCT), os quais salvaguardariam o direito de preferência dos moradores do edifício n.º 101, que detêm a posse há mais de 20 anos.
Concretizando, argumentou, o Tribunal recorrido, que no processo de concessão a Administração Municipal da Ingombota deveria ter informado sobre a posse precária que os moradores do edifício n.º 101 detinham sobre o prédio, há mais de 20 anos, nos termos da alínea b) do artigo 136.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 140.º do Regulamento Geral de Concessão de Terrenos, aprovado pelo Decreto n.º 58/07, de 13 de Julho.
Entendeu, ainda, que não foi exarado despacho liminar pela autoridade concedente, agravada pelo facto de a concessão não ter sido operada mediante arrematação em hasta pública, nos termos do artigo 80.º do Decreto n.º 58/07, de 13 de Julho.
A Comissão de Moradores em 2008 viu o seu pedido de legalização do terreno em causa a ser negado pela Administração Municipal da Ingombota, com fundamento de que, o terreno em causa não pertencia ao Governo da Província de Luanda mas, sim, à empresa privada Sardinha & Leite, Lda.;
Porém, no que concerne as informações e pareceres ficou omitida a indicação da existência de direitos de terceiros, conforme previsto na alínea b) n.º 1 do artigo 141.º do Decreto n.º 58/07, de 13 de Julho, pois era do conhecimento da Administração Municipal da Ingombota que o terreno em litígio é ocupado, com aproveitamento útil e efectivo, pelos moradores do prédio n.º 101, com direito de preferência reconhecido nos termos do artigo 215.º do RGCT.
Em face do exposto, deve concluir-se que, ao decidir pela concessão do terreno em causa a favor do réu, a autoridade concedente, além de não obedecer todos os procedimentos necessários, exigidos por lei, prejudicou terceiros que, nos termos da mesma, teriam prioridade na referida concessão.
Desta feita, considerou nula a decisão da autoridade concedente por ser contrária à Lei de Terras.
O Recorrente opõe-se à decisão de declaração de nulidade conquanto na sua perspectiva foi declarada em processo impróprio, contra quem não tem legitimidade passiva e, em consequência, entende que a decisão viola os princípios constitucionais da legalidade, do julgamento justo e equitativo e do Estado Democrático de Direito.
Sobre a alegada violação dos Princípios da Legalidade, Tutela Jurisdicional Efectiva e do Julgamento justo e conforme
Argumenta o Recorrente que o Acórdão do Tribunal ad quem está inquinado de inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade, porquanto, o Tribunal recorrido desatendeu a lei por ter declarado nulo o direito de superfície, numa acção imprópria e contra parte ilegítima.
O Princípio da legalidade figura-se como reminiscência do Estado de Direito e está consagrado no artigo 6.º da CRA. No n.º 2 postula-se que “o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”. O n.º 3 dispõe que “as leis, os tratados e os demais actos do Estado (…) e dos entes públicos em geral só são válidos se forem conformes à Constituição.
A Constituição da República de Angola (CRA) consigna no n.º 1 do artigo 177.º o dever de “os tribunais assegurarem a observância da Constituição, das leis e demais disposições normativas vigentes, a protecção dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos e das instituições, e decidem sobre a legalidade dos actos administrativos”.
O princípio da legalidade, tal como recortado nos artigos 6.º e 177.º da CRA traduz de forma incólume a ideia de que a lei é o fundamento, limite e controle democrático de todo o poder no Estado de Direito e garante dos direitos fundamentais.
Isto significa que o fundamento de legitimidade ou validade formal e material de actuação dos poderes públicos encontra-se plasmado na Constituição e em todo normativo que dela derive.
O princípio da legalidade é um instrumento de limitação e orientação da actuação de todos os órgãos do poder público, que serve, outrossim, de baluarte de protecção dos cidadãos contra arbítrios do Estado (vide Acórdão 787/2022 acessível no site www.tribunalconstitucional.ao).
Com efeito, nenhuma decisão que interfira na esfera jurídica dos particulares poderá ser legitimamente tomada se não estiver em conformidade com a Constituição, sob pena de violação do princípio da legalidade.
O princípio da legalidade tem corolário na administração da justiça fixando a exigência de que o processo se constitua e tramite segundo o ritual estabelecido e sempre salvaguardando os direitos e as garantias das partes inerentes ao mesmo, cuja preterição determina, em princípio, a invalidade do acto praticado.
Em sentido simétrico assevera Hermenegildo Cachimbombo que “(…) ao analisarmos o conteúdo deste princípio devemos ter em conta a legalidade da decisão, que implica que o sentido decisório deve ter necessariamente como fundamento os critérios de composição de conflitos integrados em normas jurídicas, portanto, na lei, e, por outro lado, devemos ter em conta a legalidade dos trâmites processuais” (Manual de Processo Civil e Perspectivas da Reforma, Casa das Ideias, 2017, p. 45).
Aquilata o Recorrente que o Acórdão do Tribunal ad quem está inquinado de inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade, porquanto, o Tribunal recorrido desatendeu a lei por ter declarado nulo o direito de superfície, numa acção imprópria e contra parte ilegítima.
Será assim? Veja-se!
A questão da inconstitucionalidade suscitada em relação ao Acórdão do Tribunal ad quem pressupõe precisar o regime da nulidade, no âmbito do Direito Administrativo, de modo a concluir se a declaração de nulidade operada pelo Tribunal ad quem é violadora dos preceitos constitucionais invocados.
A ordem jurídica administrativa angolana discrimina, essencialmente, dois regimes de nulidades para os actos administrativos, sendo um regime geral e um regime especial, consoante se esteja perante um acto administrativo comum ou especial, respectivamente.
As nulidades gerais têm a sua sede de regulação básica no Código de Procedimento Administrativo (CPA), não obstante a sua aplicabilidade subsidiária aos procedimentos administrativos especiais em tudo que seja omisso.
Ora, nos termos do artigo 202.º do CPA o regime da nulidade comporta o seguinte:
1. O acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente de haver ou não declaração da sua nulidade, ou do momento dessa declaração.
2. A nulidade é invocável a todo tempo por qualquer interessado e pode ser declarada também a todo tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal, desde que legalmente competente em razão da hierarquia, matéria e território.
As nulidades especiais são assacadas de disposições normativas ou regulatórias especiais.
No caso vertente, o acto declarado nulo consubstancia-se num acto constitutivo de direito de superfície, cuja regulação inscreve-se no âmbito dos Direitos Fundiários, o qual constitui ramo ou segmento especial de Direito Administrativo.
Nesta seara, por força do disposto no artigo 85.º da Lei de Terras, o regime da concessão de terrenos, entenda-se direitos fundiários, é regulado pelo Decreto n.º 58/07, de 13 de Julho (Regulamento Geral de Concessão de Terrenos).
Ao abrigo do artigo 69.º da Lei de Terras, é fulminado de nulidade todo o acto que concede direitos fundiários ao arrepio da lei e dos regulamentos aplicáveis.
Com efeito, a apreciação do regime da nulidade em face da concessão de direitos fundiários deve, prima facie, partir da Lei de Terras e do respectivo regulamento e só a título subsidiário aplicar-se-ão as normas do CPA.
Nesta conformidade, a secção I do capítulo IV da Lei de Terras tem como epígrafe Acção de Nulidade. Na mesma secção, o artigo 69.º sanciona com nulidade as decisões da autoridade concedente contrárias à lei.
No que toca à legitimidade passiva vem estabelecido no artigo 71.º que “a acção de nulidade deve ser intentada contra a autoridade concedente que haja proferido a decisão contrária à lei ou aos seus regulamentos”.
No caso em análise, com fundamento de ter havido violação aos preceitos que norteiam o procedimento de concessão do direito de superfície, o Tribunal ad quem declarou nulo o direito de superfície concedido ao aqui Recorrente, em sede de recurso de uma acção de reivindicação da propriedade por usucapião, movida pela Coordenadora do Prédio rústico n.º 101 contra o aqui Recorrente.
Assim sendo, este Tribunal pela sua especificidade não se vai debruçar sobre o mérito ou demérito da interpretação que o Tribunal ad quem fez das normas de direito ordinário que postulam o procedimento a observar na concessão de direitos fundiários, maxime, o direito de superfície e da sanção decorrente da sua preterição.
Afigura-se, apenas, aferir se o Tribunal ad quem, não obstante deparar-se-lhe nulo o direito de superfície concedido, podia declará-lo em sede do processo de natureza cível impetrado para reivindicar a propriedade e, em caso afirmativo, com que efeitos.
Ora, da conjugação dos artigos 69.º, 71.º, 72.º e 73.º da Lei de Terras infere-se, ostensivamente, que as nulidades decorrentes de situações jurídicas de constituição de direitos fundiários devem ser declaradas em impugnação administrativa especial, isto é, numa acção de nulidade, instaurada contra a autoridade concedente em processo a correr trâmites no fórum do contencioso administrativo do tribunal territorialmente competente.
Isto pressupõe que, por não se tratar de acção especial de nulidade do acto administrativo, o Tribunal ad quem nada tinha a fazer diante do vício de nulidade?
Veja-se,
É doutrina consolidada que o acto nulo é ineficaz desde o seu surgimento, com isso, não produz qualquer efeito jurídico. Isto pressupõe, em tese, que os tribunais e as autoridades administrativas têm legitimidade para desaplicá-lo na situação em concreto.
Posto que, a apreciação da nulidade foi feita fora do processo próprio e as partes não tinham legitimidade passiva, o poder jurisdicional de cognição da nulidade do direito de superfície por parte do Tribunal ad quem esgotava-se na recusa de efeitos ao direito de superfície concedido ao Recorrente.
Entrementes, o poder difuso de cognição de nulidades de actos administrativos conferido aos tribunais, independentemente da competência, em razão da matéria, hierarquia e território, limita-se a desaplicar o acto administrativo inquinado, tratando-o como se não existisse.
Pois, como bem esclarece Diogo Freitas do Amaral “(…) está em causa um conhecimento incidental de nulidade do acto, que tem como consequência a desconsideração dos seus efeitos numa dada situação e apenas com referência a essa situação” (Curso de Direito Administrativo, V.II, Editora Almedina, 3.º edição, 2016, p. 357).
Neste contexto, diante das nulidades identificadas em relação ao direito de superfície constituído, o Tribunal ad quem dispunha de um poder de cognição incidental, o seu poder de conhecimento da nulidade estava recatado a obstar ao Recorrente o reconhecimento, no processo, da titularidade do direito de superfície.
Ainda que se estivesse sob a batuta do regime geral de nulidade consignado no n.º 2 do artigo 202.º do CPA segundo o qual “a nulidade é invocável a todo tempo por qualquer interessado e pode ser declarada também a todo tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal, desde que legalmente competente em razão da hierarquia, matéria e território”.
Cum grano salis dever-se-ia interpretar essa disposição, pois uma interpretação perfunctória pode sugerir a ideia de que o legislador atribuiu poderes de declaração de nulidade difuso, quando apenas confere poderes difusos de mera cognição para desconsideração de qualquer pretenso efeito reivindicado ao acto inquinado de nulidade.
Em verdade, a norma exige mais, pois, não basta que seja tribunal ou órgão administrativo para declarar a nulidade do acto, é necessário que tenha competência em razão da matéria, território e hierarquia.
Com relação às nulidades dos actos administrativos, há que se distinguir claramente o simples poder de conhecer, do poder de declarar a referida nulidade. O primeiro poder apenas legitima os tribunais a recusar aplicar ou reconhecer efeitos jurídicos a actos nulos; ao passo que o segundo, confere um poder mais intenso que se traduz no poder-dever de declaração jurisdicional de nulidade do acto com efeitos erga omnes, expurgando o acto da ordem jurídica.
O poder difuso de cognição da nulidade difere do poder jurisdicional para declarar nulo o acto, com eficácia extra murus do Processo.
No caso vertente, o Tribunal ad quem somente dispunha de poderes de mero conhecimento da nulidade e não para declaração da nulidade, com consequências jurídicas projectadas fora do Processo.
Destarte, a declaração jurisdicional de nulidade do direito de superfície com abrangência atribuída, ultrapassou a mera cognição e configurou exercício de uma competência material contencioso-administrativa numa instância cível.
Assim, ao declarar nulo o direito de superfície, ao invés de apenas recusar os seus efeitos e em sede de um processo cível, movida contra pessoa diversa da entidade concedente, exercitou, o Tribunal ad quem, uma competência jurisdicional declarativa de nulidade ultra incidental, e, contrária à lei e perniciosa ao direito ao processo e contraditório outorgado à entidade concedente.
É facto que na seara do artigo 29.º da CRA impinge-se aos tribunais assegurar aos interessados tutela jurisdicional efectiva, isto é, que seja plena e sem vazios.
O desiderato da tutela plena demanda a necessidade de os tribunais respeitarem a garantia de um processo que assegure estrutura básica de contraditório entre as partes e uma tramitação processual equitativa e célere.
A decisão de nulidade com eficácia que lhe foi outorgada no Acórdão recorrido arredou o direito à tutela plena devido à entidade concedente, porquanto, os efeitos da declaração da nulidade ultra processual anula in totum qualquer hipótese de direito ao processo e, por conseguinte, o exercício do direito ao contraditório pela entidade concedente.
Neste contexto, é entendimento do Tribunal Constitucional que o Tribunal ad quem vulnerou os princípios da legalidade e do contraditório, relevantes para o direito constitucional a tutela jurisdicional, na parte em que projecta os efeitos da nulidade do acto de constituição do direito de superfície para além do processo.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO RECURSO E DECLARAR INCONSTITUCIONAL A DECISÃO RECORRIDA POR VIOLAÇÃO DE PRECEITOS CONSTITUCIONAIS DA LEGALIDADE E DO JULGAMENTO JUSTO E CONFORME, ARTIGOS 6.º, 29.º, 72.º E DO N.º 1 DO ARTIGO 177.º, TODOS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE ANGOLA.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 15 de Novembro de 2024.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dr. João Carlos António Paulino
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Vitorino Domingos Hossi