ACÓRDÃO N.º 930/2024
PROCESSO N.º 1156-D/2024
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Florinda Rodrigues Faria e Edson Faria Amaral Gourgel, Recorrentes, com os demais sinais de identificação nos autos, vêm junto desta Corte Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2412/2017.
Não se conformando com a decisão do Tribunal ad quem, vieram, os Recorrentes, por via do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, alegar que o Acórdão em pauta está eivado de inconstitucionalidades, alicerçando-se nos fundamentos que abaixo se sintetizam:
1. O Acórdão recorrido é inconstitucional por ofensa ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 29.º, conquanto o Tribunal ad quem delimitou o âmbito do recurso, resumindo-se, substancialmente, na questão de saber se é ou não nula a decisão recorrida nos termos da alínea a) do artigo 688.º do CPC.
2. O Tribunal a quo violou o artigo 511.º do CPC, pois, ao proferir o despacho saneador-sentença incorreu em erro, porquanto a falta do questionário e especificação impediu a apreciação de factos relevantes e prejudicou a garantia do contraditório e ampla defesa.
3. O próprio Acórdão recorrido incorreu em erros na apreciação dos factos e consequentemente na má aplicação do direito e da lei.
4. O erro resultou do facto de o Tribunal ad quem ao reconhecer a propriedade à autora desconsiderou o quadro jurídico constitucional vigente à data, que determinava a transferência irreversível para o património do Estado dos bens imóveis dos cidadãos que abandonaram o país sem qualquer justificação, por um período superior a quarenta e cinco (45) dias.
5. Atento ao facto de as normas que ditaram a transferência dos imóveis abandonados para esfera do Estado serem imperativas, os negócios jurídicos celebrados em sua violação são considerados nulos, ao abrigo dos artigos 294.º e 295.º, ambos do Código Civil (C.C).
6. Nesta sequência, a venda feita por Fernando Vieira Vardasca à autora dos autos é nula, sendo esta nulidade invocável a todo tempo e podendo ser declarada oficiosamente pelos tribunais, ao não ter optado em declarar nulo o contrato, o Acórdão recorrido violou direitos fundamentais dos Recorrentes consagrados nos artigos 28.º, 29.º, 37.º, 85.º; 97.º e 174.º da CRA.
7. Ademais, o direito reivindicado pela autora estava caducado, porque resultava da previsão da Lei n.º 3/76, de 3 de Março (Lei das Nacionalizações e Confiscos) e a Lei n.º 43/76, de 19 de Junho, o prazo de quarenta e cinco 45 dias para que os antigos proprietários exercessem o direito reivindicando as suas propriedades, findos os quais extinguia-se o direito.
8. Portanto ficou provado nos autos que a autora só reivindicou a propriedade 19 anos depois, verificando-se assim a prescrição do direito, ao qual se lhe aplica a regra da caducidade do artigo 298.º do C.C.
9. Esta excepção de caducidade deveria ser apreciada oficiosamente pelos tribunais recorridos.
10. O Acórdão é inconstitucional por ofensa ao princípio da irreversibilidade das nacionalizações e confiscos, porquanto, dispunha a alínea a) do artigo 4.º da Lei n.º 3/76, de 3 de Março a possibilidade de confisco e nacionalização de bens dos cidadãos nacionais ou estrangeiros que se ausentaram injustificadamente do território nacional por período superior a quarenta e cinco dias.
11. Na mesma senda, o n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 43/76, de 19 de Junho, determinou a reversão em benefício do Estado angolano, sem direito a indemnização, de todos os prédios de habitação de cidadãos nacionais e estrangeiros, que sem qualquer justificação se tenham ausentado do país por período superior a quarenta e cinco dias.
12. O acto de venda do imóvel em litígio ocorreu em 1982, quando o imóvel já se encontrava na esfera do Estado angolano e na posse dos Recorrentes.
13. Com isso, a decisão de restituição do imóvel a autora viola o direito à posse e habitação do Recorrentes.
Conclui pedindo ao Tribunal Constitucional que declare inconstitucional o Acórdão recorrido, por força das alegadas violações das disposições dos artigos 29.º, 85.º 97.º e 174.º da CRA;
O processo foi à vista do Ministério Público que se pronunciou pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para, em seguida, decidir.
II. COMPETÊNCIA
Nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º e do § único da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece como âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Foi proferido um aresto pelo Tribunal Supremo, pelo que, o Tribunal Constitucional tem competência para apreciar o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
O Recorrente é parte vencida no Processo n.º 2412/2017, no qual foi proferido o Acórdão recorrido, pelo que tem plena legitimidade para interpor o presente recurso.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto apreciar se a decisão proferida pelo Tribunal ad quem, que confirma a decisão do Tribunal a quo, violou direitos, liberdades e/ou garantias constitucionais dos Recorrentes.
V. APRECIANDO
O Recorrente decaiu em primeira e segunda instâncias na acção de reivindicação da propriedade proposta contra si.
O fulcro das suas argumentações assenta no facto de considerar que a decisão que deu provimento à acção de reivindicação da propriedade e ordenou a restituição do imóvel à autora é inconstitucional porque ofensiva aos princípios da tutela jurisdicional efectiva; do julgamento justo e conforme, da irreversibilidade das nacionalizações e confiscos e consequentemente o seu direito à habitação e a posse sobre o imóvel.
Os Recorrentes chamam à colação o facto de o Tribunal ad quem ter confirmado o despacho saneador-sentença, que considera ter sido proferido prematuramente, posto que, entende existirem questões que só poderiam ser bem apreciadas, caso o processo sequenciasse com questionário e especificação. Além do mais, argumenta, que o reconhecimento do direito de propriedade à autora foi feito ao arrepio do regime constitucional e legal vigente após a independência, que, na sua óptica ditou a nacionalização do imóvel em litígio de forma irreversível.
Em boa verdade, a centralidade do presente recurso reside em dois aspectos, designadamente: (i) aferir se a decisão de confirmação do despacho saneador-sentença violou o direito a tutela jurisdicional efectiva e (ii) se a decisão de reconhecimento e restituição da propriedade do imóvel contende com o princípio da irreversibilidade das nacionalizações e confiscos e por conseguinte ofensiva ao direito à habitação dos Recorrentes.
1. Sobre a pretensa violação do Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva
O princípio da tutela jurisdicional efectiva está consignado no artigo 29.º da CRA e constitui uma garantia imprescindível dos particulares na defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, está, portanto, compenetrado com desígnio do Estado de Direito.
Este princípio encontra acolhimento nos instrumentos internacionais de protecção de Direitos Humanos, nomeadamente, no artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), de igual modo, sedimentado na jurisprudência do Tribunal Constitucional, designadamente nos Acórdãos n.ºs 882/2024; 865/2023 e 826/2023 (acessível em www.tribunalconstitucional.ao).
Em termos substanciais, este princípio abrange subprincípios que lhe são conexos, quais sejam, o da celeridade processual, da exequibilidade e execução das sentenças, da adequação funcional, do contraditório ou ampla defesa, do patrocínio judiciário, do direito ao juiz natural e outros, a respeito vide, também, o Acórdão n.º 826/2023, disponível em www.tribunalconstitucional.ao.
No mesmo sentido, o Acórdão 865/2023 assevera que “o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (…) consubstancia-se nos meios jurisdicionais de que os particulares dispõem de modo a garantir a efectividade do seu direito de reagir contra as suas violações, através da actividade realizada pelo poder judiciário” acessível em www.tribunalconstitucional.ao.
Em tese concordante, Suzana Tavares da Silva defende que “o princípio ou garantia de acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva trata-se (…) de uma dimensão essencial de limitação do poder do Estado que assegura aos cidadãos o direito de defender-se mediante processo justo e equitativo “due process” de actos dos poderes públicos e perante outros sujeitos de direito privado (Direito Constitucional I, Ed. Instituto Jurídico - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2016, p.p 144-145).
No essencial, o legislador constituinte situou o direito à tutela jurisdicional efectiva na génese do princípio de que a prestação jurisdicional deve ser concedida aos interessados sem vazios, lacunas ou insuficiências perniciosas à guarida ou efectivação do direito junto de instâncias jurisdicionais.
In casu, os Recorrentes imputam ao Acórdão do Tribunal ad quem violação do princípio em equação a pretexto de ter confirmado o despacho saneador-sentença, decisão esta que os Recorrentes consideram ter sido prematura e perniciosa ao seu direito de ampla defesa, pois, entendem que deixou de analisar questões ou factos relevantes para decisão que só seriam possíveis se fossem incorporados ao questionário e especificação, em sede do saneamento do processo.
Será assim, atente-se!
Vale frisar que as fases ou ciclos do processo dispostos no Código de Processo Civil (CPC) orientam-se pelo princípio da sequência lógica e não cronológica ou necessária. Significa que, o processo pode ser decidido sem que sejam esgotadas todas as fases estabelecidas.
Ao abrigo do consignado na alínea c) n.º 1 do artigo 510.º do CPC “realizada a audiência ou logo que findem os articulados (…) é proferido dentro do prazo de 15 dias despacho saneador, para, nos termos da alínea c) conhecer directamente do pedido, se a questão de mérito for unicamente de direito e puder já ser decidida com necessária segurança ou se, sendo questão de direito e de facto, ou só de facto, o processo contiver todos os elementos para uma decisão conscienciosa”.
Pressupõe que a lei permite ao tribunal decidir sobre o mérito da demanda, mediante Despacho Saneador-Sentença, sempre que, estando na fase do saneamento do processo, este contenha elementos que habilitem o tribunal a proferir uma decisão segura e justa.
Com efeito, o Tribunal Constitucional, em sede do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, não funciona como instância de revisão ou reapreciação do mérito das decisões recorridas. Portanto, não cabe a esta Corte perscrutar se a opção em decidir no saneamento é acertada ou não, cabendo, apenas, aferir se foram cumpridos os pressupostos estabelecidos pelo direito ordinário para o efeito.
No caso vertente, a decisão do Tribunal a quo incidiu sobre uma acção de reivindicação de propriedade, para cuja decisão ou procedência o Tribunal basta-se com a legitimidade do autor e a prova do direito de propriedade invocado.
O Tribunal ad quem considerou, ainda, justificada a decisão do Tribunal a quo porquanto, pela natureza do direito invocado, a procedência da acção o autor deve alegar e invocar factos que provem o seu direito de propriedade (nos termos do artigo 875.º do Código Civil) e n.º 1 do artigo 51.º e alínea a) do artigo 889.º do Código Notariado. Com relação a posse invocada pelo Réus, aqui recorrentes é indispensável que a prova seja feita por via documental.
O Tribunal a quo não se absteve de apreciar o direito de propriedade invocado pela autora em contraposição ao direito de posse invocado pelos réus, pelo que julgou procedente a acção e em consequência reconheceu o direito de propriedade da autora.
A autora juntou documentos, nomeadamente, certidão de escritura pública de compra e venda do imóvel em litígio; certidão predial que nos termos das disposições acima fazem fé da titularidade do mesmo.
Com base no princípio da repartição do ónus da prova, consignado no artigo 342.º do Código Civil, aquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito invocado, ao passo que aquele contra quem se invoca o direito tem o ónus de fazer prova dos factos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito invocado.
No caso de reivindicação de propriedade, o autor deve fazer prova de que é o proprietário. E a autora fez prova da titularidade juntando, entre outros documentos, a certidão da escritura de compra e venda do imóvel em causa, celebrada com o anterior proprietário e a certidão predial, que atesta a inscrição do imóvel na sua esfera jurídica.
Ora, os documentos referidos são designados documentos autênticos que gozando de fé pública têm força probatória plena dos factos que atestam, nos termos do n.º 1 do artigo 371.º C.C. Ao abrigo do n.º 1 do artigo 372.º do C.C “a força probatória contida em documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade”.
Não consta dos autos que os Recorrentes tenham arguido a falsidade dos documentos juntados aos autos pela autora, ademais os Recorrentes procuraram defender-se destes documentos por meio de perguntas, designadamente, quem foi o proprietário originário do imóvel? O proprietário abandonou ou não o país em 1975? Foram os impostos de sisa pagos no prazo determinados por lei? (...).
Diante desta factualidade e reconhecendo a força probatória dos documentos juntos pela autora, o Tribunal recorrido considerou justificada a decisão do mérito da causa, no despacho saneador-sentença.
Esta Corte Constitucional considera, assim, que a decisão recorrida não merece qualquer censura, conquanto não é violadora do direito à ampla defesa dos Recorrentes, pois a decisão tomada com base em documentos autênticos, contra os quais os mesmos não invocaram os factos impeditivos dos seus efeitos.
O princípio da celeridade processual não se compagina com o prolongamento do processo para atender questionamentos espúrios e que em circunstância alguma alteraria os efeitos das certidões juntas como prova da titularidade do imóvel.
Ademais, o direito a ampla defesa e o direito ao contraditório não são compagináveis com acções ou atitudes processuais das partes que indiciam estratégias dilatórias da efectivação do direito reconhecido. Pretender que o Tribunal recorrido esgotasse todas as fases do processo mesmo dispondo de elementos legais para decidir com objectividade e segurança, em prol de questionamentos que em nada ilidem a prova dos autos seria agir contra o interesse na tutela efectiva do direito da autora.
Nesta esteira, este Tribunal julga improcedente a alegada violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva.
2. Da Violação do Princípio da Irreversibilidade das Nacionalizações e Confiscos
Os Recorrentes consideram inconstitucional o Acórdão recorrido por alegadamente violar o princípio da irreversibilidade das nacionalizações e confiscos, postulado no artigo 97.º da CRA, advogando o facto de o Tribunal ad quem, ao confirmar a decisão que reconhece a propriedade à autora, agiu ao arrepio do princípio da irreversibilidade das nacionalizações e confiscos.
Alegam a ofensa ao princípio mencionado com base nos seguintes argumentos: “a alínea a) do artigo 4.º da Lei n.º 3/76, de 3 de Março, determinou a possibilidade de confisco e nacionalização dos bens dos cidadãos nacionais ou estrangeiros que se ausentassem injustificadamente do território nacional por período superior a quarenta e cinco dias”.
Ainda em sede das suas alegações, ententem que o n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 43/76, de 19 de Junho, que determinou a reversão em benefício do Estado angolano o apartamento em litígio de acordo com a inscrição na matriz predial urbana pertencia ao cidadão português de nome António Alves Mascarenhas, que pelo facto de ter abandonado o país em 1975, o apartamento passou para esfera patrimonial do Estado. A alienação do imóvel ocorreu em 1982 quando o mesmo já se encontrava na esfera jurídica do Estado angolano e na posse dos Recorrentes.
Assim, na óptica dos Recorrentes, o contrato de compra e venda é nulo, porquanto foi celebrado contra norma injuntiva que determinou o confisco de todos os bens daqueles proprietários que se ausentaram do país por mais de quarenta e cinco dias, sem justificação. Portanto, a venda foi feita a non domino.
Será assim?
Ora, o princípio da irreversibilidade das nacionalizações e confiscos está consagrado no artigo 97.º da CRA nos termos do qual “são válidos e irreversíveis todos os efeitos jurídicos dos actos de nacionalizações e confiscos praticados ao abrigo da lei competente, sem prejuízo do disposto em legislação específica sobre as privatizações”.
O presente artigo representa uma manifestação da soberania do Estado angolano e vem legitimar e atribuir carácter definitivo a actos de carácter político-legislativo (nacionalização) ou de carácter meramente administrativo (confisco) que recaíram sobre bens e direitos que pertenceram a pessoas colectivas e singulares (…) Raul Carlos Vasques Araújo/Elisa Rangel Nunes (Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, 2014 p.p 491-492).
Com efeito, mais do que tecer considerações sobre o princípio da irreversibilidade das nacionalizações e confiscos, há que se aferir se o imóvel em litígio, efectivamente, foi objecto de nacionalização ou confisco, como salientam os Recorrentes.
Os Recorrentes alegam que o imóvel foi alvo de nacionalização ancorando-se no disposto na alínea a) do artigo 4.º da Lei n.º 3/76, de 3 de Março que estabelecia “poderão ainda ser nacionalizados, nos termos do corpo do artigo anterior, os bens de cidadãos nacionais ou estrangeiros que se ausentarem injustificadamente do território nacional por um período superior a quarenta e cinco dias”.
Ao que se deduz do vertido acima, as nacionalizações não se operavam ope legis, o próprio legislador adoptou o vocábulo “poderão”, que traduz uma hipótese ou uma possibilidade. O legislador ordinário não determinou que estavam nacionalizados os bens de todos cidadãos ausentes do país por mais de quarenta e cinco dias, como sugerem os Recorrentes.
Aliás, uma leitura sistemática do diploma torna claro que, havendo hipótese de nacionalização, tinha de ser despoletado o competente processo para a sua instrução, conforme consagrado no artigo 5.º da lei em pauta.
Acresce que, os Recorrentes limitam-se a indicar disposições legais, e não fizeram prova nos autos de que efectivamente se o vendedor estava ausente do país por mais de quarenta e cinco dias e que foi instruído o competente processo de confisco.
Não há evidências nos autos de que o imóvel adquirido e reivindicado pela autora foi objecto de qualquer de acto de nacionalização ou mesmo confisco praticado por despacho Conjunto dos Ministros da Justiça e do Urbanismo e Habitação, conforme estabelecia o artigo 2.º da Lei n.º 43/76, de 19 de Junho.
Assim, não se pode concluir que o bem foi nacionalizado ou confiscado por mera referência a factis especie legal do artigo 4.º da Lei n.º 3/76, de 3 de Março.
Não tendo logrado fazer prova de confisco ou nacionalização do imóvel, é estéril advogar violação do princípio da irreversibilidade das nacionalizações e confiscos, pelo simples facto de que falta o acto de nacionalização ou confisco sobre o bem em disputa, que é o seu pressuposto material.
Isto posto, o Tribunal Constitucional declina a alegada violação ao princípio da irreversibilidade das nacionalizações.
3. Sobre a pretensa violação do Direito à Habitação
Em derradeira contestação do Acórdão recorrido sustentam os Recorrentes que o mesmo é inconstitucional, por ofender o direito à habitação consagrado no artigo 85.º da CRA.
Na opinião de Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes “o direito à habitação consagrado no artigo 85.º da CRA, assim como os demais direitos fundamentais sociais, constitui um direito negativo do cidadão e um direito positivo do Estado.
Na sua vertente negativa, o cidadão tem o direito de obter habitação, quer adquirindo moradia própria, quer através de arrendamento em condições compatíveis com a renda familiar, ao passo que na vertente de direito positivo, comporta imposição do Estado ao qual garante e promove políticas e medidas que permitem os cidadãos a obter uma moradia digna” (Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, p.p 431-432).
O direito à habitação constitucionalmente consagrado visa assegurar a todos o direito a habitar, não o de não habitar. Os provedores do direito à habitação são o Estado (…) as Autarquias Locais e não, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou senhorios.
Dos autos, decorre que a autora adquiriu a propriedade do imóvel em litígio por via do contrato de compra e venda outorgado por escritura pública, ao passo que os Recorrentes tornaram-se arrendatários por via de um contrato de arrendamento celebrado com o Estado, através da Direcção Provincial da habitação de Luanda à data.
Consta dos autos que o Estado, após reconhecer ter se equivocado quanto a outorga do contrato de arrendamento, pois, o imóvel não pertencia ao Estado, este, por sua vez, notificou prontamente todos os interessados da decisão de reversão da intervenção do prédio, anulando o contrato de arrendamento celebrado com os Recorrentes, deixando de perceber o pagamento das rendas.
Malgrado terem sido notificados da decisão retro mencionada, estes não abandonaram o imóvel, tampouco ajustaram qualquer contrato com a autora.
Este facto impulsionou a proprietária do imóvel a despoletar a acção de reivindicação do imóvel, a que os Tribunais a quo e ad quem deram provimento.
Atendendo que ficou provado nos autos, com documentos autênticos, que o imóvel é de facto, pertença da autora, o Tribunal estava legalmente obrigado a reconhecer e determinar a restituição do imóvel a autora.
Nesta conformidade, este Tribunal entende que a Decisão de restituição do imóvel ao legítimo titular não ofende o direito à habitação dos Recorrentes, pois inexiste contrato de arrendamento entre a autora e os Recorrentes.
Assim, esta Corte Constitucional considera que não merece qualquer censura o Acórdão recorrido, por não vulnerar o direito à habitação dos Recorrentes.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO, POR NÃO CONFIRMAR NENHUMA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS.
Custas pelos Recorrentes, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 15 de Novembro de 2024.
OS JUIZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dr. João Carlos António Paulino
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Vitorino Domingos Hossi