Loading…
TC > Jurisprudência > Acórdãos > Acórdão Nº 941/2024

 

 

 

 

ACÓRDÃO N.º 941/2024

 

PROCESSO N.º 1174–B/2024
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Pedro Fernando Salomão, com mais sinais de identificação nos autos, veio nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 25/10, de 3 de Dezembro, interpor o presente recurso, do Acórdão proferido pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 915/19, alegando em síntese o seguinte:
1. O Recorrente intentou, junto da Sala de Trabalho do então Tribunal Provincial de Luanda, agora Tribunal da Comarca de Luanda, no âmbito do Processo n.º 184/14-D, acção de recurso em matéria disciplinar, contra o Banco Angolano de Investimento, tendo a mesma sido julgada improcedente e absolvida a Recorrida de todos os pedidos.

2. Inconformado com a decisão, interpôs recurso para o Tribunal ad quem, tendo, com isto, visto, em seu benefício, revogada a decisão do Tribunal a quo, declarando nulo o despedimento, bem como condenando a Apelada a pagar ao Recorrente o valor de KZ 710 577,00 (setecentos e dez mil, quinhentos e setenta e sete Kwanzas) de salários intercalados, nos termos do n.º 3 do artigo 229.º, bem como o valor de KZ 236 859,00 (duzentos e trinta seis mil, oitocentos e cinquenta e nove Kwanzas) de indemnização, por antiguidade de três anos de serviço, ao abrigo do n.º 1 do artigo 229.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 265.º, todos da Lei n.º 2/00, de 11 de Fevereiro, Lei Geral do Trabalho (LGT) em vigor à data dos factos.

3. O Aresto em sindicância, apesar de ter declarado nulo o despedimento, decidiu extrair desta invalidade as consequências do despedimento improcedente e, não efectivamente, as do despedimento nulo, cujas consequências estão previstas no n.º 3 do artigo 228.º da LGT, violando, deste modo, normas imperativas.

4. Para o Tribunal Supremo fundamentar a sua decisão, que é a todos os níveis injusta e inconstitucional, socorre-se da jurisprudência firmada naquela instância, segundo a qual, quando se tratar de nulidade de despedimento, nos termos do artigo 228.º da LGT e havendo um lapso de tempo muito longo, nove (9) anos, entre a data do despedimento e a prolação da sentença, apresenta-se mais sensato e justo lançar mão das consequências da improcedência do despedimento (artigo 229.º LGT).

5. Deste modo, sustenta o Recorrente que o Acórdão recorrido violou o princípio do “favor laboratoris”, porquanto as consequências extraídas do despedimento nulo são de longe mais favoráveis que as consequências extraídas do despedimento improcedente, bem como o princípio do Direito a Julgamento Justo e Conforme, constitucionalmente consagrado no artigo 72.º da CRA, na estrita medida em que, ao extrair do despedimento nulo as consequências do despedimento improcedente, ao arrepio da lei, prejudicou o Recorrente, uma vez que as vantagens creditícias são maiores.

6. Sustenta ainda que jurisprudência alguma pode derrogar uma lei, sobretudo uma lei em sentido formal.
O Recorrente termina pedindo que se dê provimento ao presente recurso, com a revogação da decisão recorrida, declarando inconstitucional o Acórdão recorrido nos termos do n.º 2 do artigo 226.º da Constituição, por violação dos princípios alegados.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade nos termos da alínea a) do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), tendo sido esgotada a cadeia de recursos ordinários.

III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC), têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional "as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário".

O Recorrente é parte no Processo n.º 915/19, que correu trâmites junto da Câmara de Trabalho do Tribunal Supremo, e não se conformando com a decisão proferida, tem legitimidade para interpor o presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade.

IV. OBJECTO
O presente recurso tem como objecto o Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 915/19, que correu trâmites junto da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, cabendo agora verificar se tal decisão violou ou não as normas ou princípios constitucionais alegados pelo Recorrente.

V. APRECIANDO
O presente recurso resulta do facto de o Recorrente estar inconformado com o Acórdão Recorrido, proferido no âmbito do Processo n.º 915/19, que correu trâmites junto da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo.

Deste modo, sustenta o Recorrente que o Aresto em sindicância violou o princípio do julgamento justo e conforme, consagrado no artigo 72.º da CRA, bem como o do favor laboratoris.

Neste âmbito, importa ajuizar, hic et nunc, se na decisão prolactada no Acórdão recorrido foram ou não violados os princípios alegados pelo Recorrente, pelo facto de o Tribunal ad quem ter declarado nulo o despedimento, mas decidiu extrair desta nulidade as consequências do despedimento improcedente e, não efectivamente, as do despedimento nulo.

Assistir-lhe-á razão?

Ora, vejamos:

Apesar de o Requerente ter alegado de forma distinta os princípios sindicados no Aresto em apreço, julgamos que os mesmos podem ser tratados de forma unívoca, na medida em que a violação do princípio do favor laboratoris, acarrecta, necessariamente, a violação do princípio do julgamento justo e conforme.

Importa salientar que o princípio do favor laboratoris conduz a concretas soluções de direito que, perante as diversas vias interpretativas possíveis, haveria que eleger a que mais favorável se mostrasse aos interesses dos trabalhadores.

O princípio do tratamento mais favorável é hoje utilizado como instrumento apto para dirimir conflitos hierárquicos entre as normas, e como sustenta António Menezes Cordeiro, “num concurso de fontes laborais, deverá prevalecer as mais favoráveis aos trabalhadores” (Do Tratamento mais Favorável no Direito do Trabalho, in Revista Internacional do Direito do Trabalho, Instituto do Direito de Trabalho, Lisboa, Ano III, 2023, N.º 4, p. 173, disponível em www.ridt.pt.).

No mesmo sentido, assevera João Leal Amado que “o princípio do favor laboratoris relaciona-se no ordenamento laboral como hierárquico, do qual representa uma modalização, no sentido de que a fonte de intensidade mais forte prevalece sobre a mais débil, isto é, as normas que prevejam condições mais favoráveis para os trabalhadores” (Contrato de Trabalho, 3.ª ed., Coimbra, 2013, p. 44).

No caso em apreço, o Acórdão em sindicância, apesar de ter declarado o despedimento nulo, extraiu dele as consequências do despedimento improcedente, com fundamento em jurisprudência firmada por aquela Corte.

Deste modo, as consequências extraídas de uma norma imperativa, diferente da aplicada, desvirtua-se da sua teleologia, dada a constitucionalização que as mesmas representam, de certeza e segurança jurídica, sendo certo que, no quadro dos direitos fundamentais, o Estado Democrático de Direito, como é o nosso, encontra-se vinculado à prossecução de um objectivo determinado, sob o primado da lei, sem descurar a equidade, como fim último do direito.

Quer isto dizer que, na extracção das consequências deferentes da que a norma postula, o que está em causa é, unicamente, a não realização ou realização defeituosa de um dever ou uma tarefa constitucionalmente ordenada na produção de actos jurídicos, o que significa o estabelecimento de uma garantia de estabilidade quanto aos direitos jus fundamentais em questão.
Neste ínterim, o Acórdão recorrido, ao declarar nulo o despedimento, deveria extrair dele as consequências do artigo 228.º do LGT, em vigor à data dos factos, como afirma Márcia Nigiolela: “a indemnização devida ao trabalhador, no despedimento nulo, decorre do incumprimento de uma prestação fungível – ausência de reintegração – e não de indemnização por despedimento” (O Exercício do Poder Disciplinar no Ordenamento Jurídico Angolano, Universidade Católica, 2014, p. 92).

Continua, a mesma autora, ao defender que “trata-se de uma confusão entre o regime da nulidade e o da improcedência do despedimento, estabelecidos nos artigos 228.º e 229.º da LGT. A consequência imediata no despedimento nulo consiste no pagamento imediato dos salários e complementos sem atender a outra actividade retributiva que o trabalhador tenha efectuado durante o prazo em que o contrato não esteve a ser executado. Esta opção legislativa é fundada na continuidade do vínculo laboral e no facto de não se atender da indemnização” (ob. cit., pp. 93 e 98).

No mesmo sentido fundamenta Norberto Moisés Moma Capeça que “declarando-se nulo o despedimento, este não produz o efeito extintivo que tinha associado, mantendo-se o contrato de trabalho como se nunca tivesse sido interrompido, ou seja, as partes detêm os mesmos direitos e estão sujeitas às mesmas obrigações que teriam se o contrato nunca tivesse sido posto em causa” (Ilicitude do Despedimento Disciplinar e suas Consequências, Where Angola Book Publisher, 2012, p. 93).

Deste modo, entre as várias concretizações, no despedimento nulo não existe a faculdade de se optar pela reintegração ou a indemnização, isto é, a reintegração do trabalhador é obrigatória, já no despedimento improcedente existe uma particularidade que se traduz na faculdade de optar entre a reintegração e a indemnização. Em caso de não reintegração, o empregador tem a opção de proceder à reintegração imediata do trabalhador, ou de indemnizá-lo caso não proceda à sua reintegração.

Quanto ao princípio do julgamento justo e conforme, importa frisar que o mesmo assume-se como um direito-garantia dos cidadãos perante as autoridades judiciárias, impelindo a que as partes do processo tenham um tratamento isento, equânime e ajustado ao direito constituído, formal ou substantivo, em todas as fases do processo. Trata-se de um direito que é expressão de um sistema de justiça integrado num Estado democrático e de direito, que se efectiva em condições de exercício de uma decisão devidamente fundamentada no direito e na justiça.

Este princípio está associado ao conceito de processo equitativo tido como uma regra fundamental de qualquer sociedade democrática, profundamente imbricado com o Estado de Direito, não havendo fundamento para qualquer interpretação restritiva e que visa, acima de tudo, defender os interesses das partes e os próprios da administração da justiça, que os litigantes possam apresentar o seu caso ao tribunal de uma forma efectiva.

A este propósito, Adlezio Agostinho sustenta que “o julgamento justo e conforme como princípio processual do Direito Constitucional é um dos princípios essenciais no Estado constitucional, e protege a pessoa contra a sua objectivação no processo. De acordo com este princípio, eles devem ter a oportunidade de influenciar o andamento e o resultado do processo, a fim de proteger os seus direitos, exercerem os poderes processuais de forma independente e evitarem a interferência do Estado ou de outras partes envolvidas no processo” (Manual de Direito Processual Constitucional “Princípios Doutrinários e Procedimentais sobre as Garantias Constitucionais” Parte Geral e Especial, AAFDL Editora, 2003, p. 401)

Como se vislumbra, o Aresto em apreço, ao extrair as consequências do despedimento improcedente, apesar de considerar o mesmo como nulo, e tendo em atenção ao acima estribado, facilmente se depreende que o Acórdão em sindicância violou os princípios do favor laboratoris e do julgamento justo e conforme, na estrita medida em que derrogou uma norma imperativa em detrimento de jurisprudência firmada por aquela Corte Suprema e, tal como se escalpelizou, existe uma diferença diametralmente oposta quanto aos regimes da nulidade do despedimento e o da improcedência; dito de outro modo, na nulidade, além dos salários-base, também são exigíveis os complementos que integram a remuneração, ao passo que na improcedência apenas são exigíveis os salários-base, tendo, o mesmo, um certo limite consoante a antiguidade do trabalhador.

Assim sendo, face ao exposto, esta Corte considera que o Aresto recorrido ofendeu os princípios do julgamento justo e conforme, consagrado no artigo 72.º e no n.º 4 do artigo 76.º, ambos da CRA, e do favor laboratoris, previsto no n.º 3 do artigo 7.º da LGT.
Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, POR ENTENDER QUE O ACORDÃO RECORRIDO OFENDE PRINCÍPIOS E VIOLA DIREITOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE ANGOLA, NOMEADAMENTE, O DO JULGAMENTO JUSTO E CONFORME E O FAVOR LABORATORIS.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 6 de Dezembro de 2024.
OS JUIZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dr. Gilberto de Faria Magalhães

Dr. João Carlos António Paulino

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dr. Vitorino Domingos Hossi (Relator)