ACÓRDÃO N.º 799/2023
PROCESSO N.º 903-A/2021
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
João Domingos Soares, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional impetrar Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (REI) do Acórdão prolactado pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, datado de 05 de Dezembro de 2019, no âmbito do Processo n.º 2786/19, que negou provimento ao recurso por si interposto.
O Recurso foi admitido. Notificado o Recorrente para apresentar alegações, em observância ao disposto no artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), conforme se vê a fls. 20 e 21 dos autos, este alega, em síntese, que:
1. A razão da interposição do presente recurso prende-se com o facto do douto Acórdão recorrido, proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, não ter decidido sobre qualquer uma das alterações requeridas pelo Recorrente.
2. A decisão proferida violou de forma flagrante e ostensiva o n.º 2 do artigo 6.º, bem como os artigos 29.º, 57.º e 72.º, todos com dignidade constitucional.
3. Ao decidir sobre o Acórdão proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, devia este notificar a representante legal do Recorrente no sentido desta se poder pronunciar ou não sobre o mesmo. Não o tendo feito violou o princípio do acesso ao direito e aos Tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, nos termos do n.º 1 do artigo 29.º da CRA.
4. O Tribunal recorrido, ao decidir sobre o Acórdão recorrido, deveria ter em conta que o Recorrente deveria beneficiar de uma atenuação extraordinária da pena, nos termos do n.º 4 do artigo 94.º in fine do Código Penal (CP).
5. A situação em que se encontra o Recorrente, pressupõe uma violação do princípio do processo justo e equitativo que impõe não só o julgamento justo perante os Tribunais mas o próprio direito de acesso aos tribunais enquanto garantia fundamental da justiça, nos termos dos artigos 29.º e 72.º da Constituição.
Termina pedindo inteiro provimento ao presente recurso e que por via dele se revogue o Acórdão do Tribunal a quo por estar em desacordo com a Constituição, designadamente, por violação dos seguintes princípios e direitos constitucionais:
i. princípio da legalidade, n.º 2 do artigo 6.º da CRA;
ii. princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, artigo 29.º da CRA;
iii. direito a julgamento justo e conforme a lei, artigo 72.º da CRA.
O processo foi à vista do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional, que sustentou a sua promoção nos marcos seguintes:
1. O princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva vem consagrado no artigo 29.º da CRA e é um direito fundamental que a Constituição reconhece ao cidadão para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
2. Neste processo constata-se que o Recorrente interveio sempre que foi necessário exercer a sua defesa mediante o devido e pontual contraditório como se pode confirmar através de fls. 10, 45, 83 a 84 e 93 a 94 dos autos.
3. Parece-nos não colher a alegada violação do direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, na medida em que o Recorrente pôde defender-se nos termos da lei do processo vigente naquela altura, quer em sede de 1.ª instância, tanto em sede de 2.ª instância.
4. Sobre a alegada falta de notificação do Acórdão da 2.ª instância, da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, consta a fls. 112 dos autos o despacho de 27 de Março de 2020 que ordena a notificação das partes.
5. Destarte não se vislumbram as alegadas violações à Constituição e a lei.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) do artigo 49.° da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, garantias e liberdades constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos. Esta faculdade está igualmente prevista na alínea m), do artigo 16.° da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, LOTC.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é parte legítima no Processo n.º 2786/19, que correu seus trâmites na 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo. Tem direito a contradizer, segundo dispõe o n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional, por força do artigo 2.º da LPC.
A legitimidade para interpôr o presente recurso extraordinário de inconstitucio- nalidade, cabe-lhe, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é saber se o Acórdão da 2.ª Secção Câmara Criminal do Tribunal Supremo, de 05 de Dezembro de 2019, proferido no Processo n.º 2786/19, terá alegadamente incorrido em inconstitucionalidade, violando os direitos fundamentais do Recorrente, a saber: princípio da legalidade, o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e direito ao julgamento justo e conforme.
V. APRECIANDO
João Domingos Soares, melhor identificado nos autos, vem requerer mediante recurso extraordinário de inconstitucionalidade, a apreciação do Acórdão prolactado pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2786/19, alegando violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, princípio da legalidade e direito ao julgamento justo e conforme e por isso mesmo pede a sua revogação.
O núcleo essencial de direitos e garantias fundamentais dispostos na Constituição da República de Angola (CRA), dispõem de elementos essenciais para todos os que acorrem aos Tribunais tenham as suas querelas dirimidas em tempo útil, materializando com isso o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva. Este princípio, permite o direito ao recurso, uma segunda reapreciação da questão litigante, mas que não deve em hipótese alguma ser esta confundida com a garantia de que, a decisão será a seu favor.
O princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva visa garantir a plena harmonia da decisão com o princípio da legalidade. Todas as pessoas que intervenham junto das distintas jurisdições no Estado de direito angolano devem usar todos os meios de defesa, participando em todas as fases processuais permitidas por lei, até à prolacção da decisão.
Em face do que se verifica nos autos, teve o Recorrente o direito de defesa, exercendo o contraditório com o intuito de ver salvaguardados os seus lídimos direitos, liberdades e garantias fundamentais. Por isso, julgamos que nesta questão em particular bem andou o Acórdão recorrido.
Por outro lado, alega igualmente o Recorrente que o princípio da legalidade terá sido violado na medida em que o Tribunal ad quem, não atentou o facto de este ser merecedor da atenuação extraordinária da pena nos termos do n.º 4 do artigo 94.º do Código Penal vigente à data dos factos.
Ora, é mister sublinhar que esta Corte de Justiça Constitucional, em obediência ao artigo 181.º da Constituição, não pode se pronunciar sobre o mérito ou demérito das decisões, ou seja, não se resume a sua tarefa como uma terceira instância de recurso da jurisdição comum. As questões a serem tratadas aqui, reportam-se aos limites traçados pela dogmática constitucional, que se resumem às especificidades, dito de outro modo, à análise da constitucionalidade do Acórdão recorrido.
O n.º 2 do artigo 6.º da CRA refere que, “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”. Este princípio é a bússola orientadora do Estado democrático de direito permitindo que os actos todos devem com ele gozar conformidade. O princípio da legalidade, impõe cumprimento rigoroso do legalmente previsto, atentando para a concretização de uma justiça adequada, justa e proporcional, associado isto ao brocado de Robert Alexy, “o fim último dos direitos fundamentais é a garantia de dignidade humana”. In Teoria dos Direitos Fundamentais, 2.ª Edição, Malheiros Editores, 2013, pág. 41.
A observância do princípio da legalidade empresta ao processo, os limites necessários da acção do julgador em todas as instâncias que ali for chamado, nos termos daquela norma e atendendo ao princípio da interpretação sistemática da Constituição, ou seja, em plena harmonia com as normas princípios e normas regras dispostas no ordenamento jurídico angolano.
O Recorrente sublinha que o princípio da legalidade, foi violado porquanto de seu juízo, o Acórdão recorrido, não observou os ditames legais constitucional e processualmente, nos termos dos parâmetros, o que se discorda em absoluto conforme já se referiu acima. Por outro lado, sustenta-se que, a par do até aqui referido, o Recorrente limitou-se simplesmente em dizer que a violação ao sobredito princípio, conforme expresso no presente parágrafo. Ora, José Afonso da Silva anota assim sobre o princípio da legalidade: “sujeita-se ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca da igualização das condições dos socialmente desiguais”. In Curso de Direito Constitucional Positivo, Editora Malheiros, 2013, pág. 421. Com isto, este Tribunal julga não ser de atender a alegação de violação do princípio em causa, por estar o Acórdão recorrido em conformidade com à Constituição e a lei.
A hermenêutica constitucional resultante da norma do artigo 72.º da Constituição, reporta o direito ao julgamento justo e conforme uma ligação com o princípio da legalidade, e tal resulta da interpretação sistemática da Constituição. Se a decisão for ilegal ela será injusta se for legal será justa.
A doutrina sustentada por Norberto Bobbio, é alicerçada no ensinamento de que a norma jurídica comporta três valorações a saber: “1) se é justa ou injusta; 2) se é válida ou inválida; 3) se é ineficaz ou eficaz. Trata-se dos três problemas distintos: da justiça, da validade e da eficácia de uma norma jurídica”. In Teoria da Norma Jurídica, 5.ª edição, 2014, pág. 47. Dito por outras palavras, a norma jurídica tem de ser capaz de realizar justiça, aliás é este um dos fins do qual se propõe, pois, nisto reside a sua validade e eficácia. Não sendo fulcral só decidir, mas também que a decisão satisfaça as partes envolvidas do ponto de vista da observância da justeza da própria decisão e a certeza jurídica, obedecendo à Constituição e a lei.
Por isso, a doutrina sinalizada por J.J. Gomes Canotilho sustenta que, “Do princípio do Estado de direito deduz-se, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito”. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição Almedina. 2003, Pág. 494. Essa realização do direito aqui, entende-se na equidade das decisões judiciais, ou seja, todos têm direito a um “processo legal, justo e adequado”, significando que toda a acção do tribunal deve obediência à Constituição e ao legalmente previsto, prosseguindo para a materialização de uma justiça adequada, equânime, justa e proporcional em plena harmonia com à Constituição e a lei.
O Recorrente evoca a violação da sobredita norma no Acórdão recorrido, porquanto não teria sido notificado da decisão do Acórdão do Tribunal Supremo. Ora, ao contrário das alegações do Recorrente, os autos a fls. 118, fazem fé da assinatura da sua mandatária de recepção da notificação, deixando sem efeito aquele fundamento.
Quer no entendimento ao princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, quer no princípio da legalidade, bem como, no direito ao julgamento justo e conforme, em nada se verificam nos autos com realce ao Acórdão objecto de sindicância, a violação dos direitos, liberdades e garantias fundamentais do Recorrente. O que se vislumbra nas alegações do Recorrente interpostas nesta Corte de Justiça Constitucional, é nada mais do que o pedido de uma reapreciação do mérito e demérito do Acórdão recorrido, e isto, como já referimos este Tribunal está impedido de fazê-lo, por ser contrário às suas competências nos termos do artigo 181.º da CRA.
Aqui chegados, esta Corte Constitucional é levada a concluir que o Acórdão que ora se impugna não está ferido de inconstitucionalidade, em face dos fundamentos invocados pelo Recorrente, que os centra na violação do princípio da legalidade, do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, bem como na violação do direito ao julgamento justo e conforme.
Não obstante, o presente processo impõe que este Tribunal se debruce sobre o facto de o Recorrente ter já cumprido a pena de prisão a que foi condenado, na medida em que se encontra privado da liberdade desde 26 de Agosto de 2017, tendo conhecido condenação final a 5 de Dezembro de 2019.
Assim, em conformidade com artigo o 10.º da LPC, na sequência de diligência junto do Representante do Ministério Público neste Tribunal, este fez saber que o Recorrente se encontra ilegalmente privado de liberdade, apesar da expiação da pena pelo decurso do tempo, aos 26 de Fevereiro de 2022.
Ora, a República de Angola, enquanto Estado democrático de direito, assenta a sua soberania no primado da lei, nota muito bem referida no n.º 1 do artigo 2.º da CRA, que é remissiva, in casu, com o n.º 2 do artigo 6.º e artigos 12.º e 26.º também da CRA, sendo este último que interessa aqui fazer um sublinhado.
O artigo 26.º da CRA evoca o chamado princípio da cláusula aberta, princípio este que permite a entrada no ordenamento jurídico angolano das chamadas normas materialmente constitucionais, ou seja, normas com dignidade constitucional contidas em documentos de defesa, promoção e protecção dos direitos humanos no plano Internacional, ratificadas pelo Estado angolano. Estas normas em obediência ao princípio da soberania pontuada no n. º 1 do artigo 2.º da CRA, só são absorvidas pelo ordenamento jurídico se estiverem em plena harmonia com o direito Pátrio.
As garantias do arguido, à luz dos documentos de defesa, promoção e protecção dos direitos humanos subscritos por Angola, não permite a esta Corte de Justiça Constitucional ignorar o facto de que a esta altura já a pena foi expiada.
Assim, sob pena, de contender com o artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos humanos, (DUDH) que sustenta que, “Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efectivo para os actos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”, sem olvidar o direito Pátrio conforme já se fundamentou acima e designadamente os artigos 57.º, 64.º e 66.º todos da CRA, esta Corte de Justiça Constitucional, como um Tribunal de Direitos Humanos, não pode ignorar este facto, sob pena de violação da Constituição e dos instrumentos jurídicos internacionais de defesa dos direitos humanos de que Angola é parte.
Tendo em conta o fundamento acima expendido deve o presente recurso proceder com a consequente libertação do Recorrente, independentemente de improceder quanto à violação dos princípios alegados.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PEDIDO FORMULADO, TENDO EM CONTA O OBJECTO DO PROCESSO.
DEVE, PORÉM, O RECORRENTE SER RESTITUÍDO À LIBERDADE, EM OBEDIÊNCIA À CONSTITUIÇÃO, À DUDH E À LEI.
Sem custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 07 de Fevereiro de 2023.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima D’ A. B. da Silva