ACÓRDÃO N.º 802/2023
PROCESSO N.º 961-C/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Arnaldo Martins Carreira, com os demais sinais de identificação nos autos, vem, junto desta instância, interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolactado pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 1715/18.
O réu, aqui Recorrente, foi pronunciado e condenado em co-autoria material pelo crime de roubo, concorrendo com o crime de homicídio frustrado, p. e p. pelo artigo 433.º do Código Penal (CP).
O Tribunal a quo, em sede de julgamento, convolou o crime de roubo concorrendo com o crime de homicídio frustrado, para crime de roubo qualificado, nos termos dos artigos 448.º do Código de Processo Penal (CPP) e 435.º do CP, respectivamente. Concomitantemente, lançou mão da faculdade de atenuação extraordinária da pena, consagrada no n.º 1 do artigo 94.º do CP, tendo aplicado ao réu a pena de 15 anos e 2 meses de prisão maior, no pagamento de kz 70 000,00 (setenta mil kwanzas) de taxa de justiça e no pagamento de 46 211 525,00 (quarenta e seis milhões, duzentos e onze mil e quinhentos e vinte e cinco kwanzas) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados ao ofendido.
O Ministério Público interpôs recurso da decisão por imperativo legal, nos termos do artigo 647.º do CPP.
O réu, inconformado, também recorreu da decisão a quo, nos termos do n.º 1 do artigo 658.º do CPP.
O Tribunal Supremo, em sede de apreciação do recurso, requalificou o crime, tendo convolado a infracção, nos mesmos termos da acusação e da pronúncia e, consequentemente, condenou o réu pelo crime de roubo concorrendo com o crime de homicídio frustrado, p. e p. pelo artigo 433.º do Código Penal (CP), conjugado com o artigo 10.º e n.º 1 do artigo 104.º, ambos do CP e, por sua vez, confirmou a pena aplicada pelo Tribunal de primeira instância.
Inconformado com a decisão do Tribunal ad quem, interpôs o presente recurso com base, em síntese, nas seguintes alegações:
1. O Recorrente até ao presente momento encontra-se preso, mesmo com o deferimento do recurso pelo Tribunal Supremo. O Tribunal Supremo não se pronunciou sobre a liberdade do Recorrente, tampouco, foi este notificado do deferimento do recurso pelo Tribunal ad quem, (…)
2. Notificado pelo Tribunal Constitucional para a junção das alegações, conforme consta dos autos, requereu junto deste Tribunal, que o Recorrente seja posto em liberdade para que se possa manter o efeito suspensivo do recurso (…) e não seja violado o princípio da presunção de inocência consagrado no n.º 2 do artigo 67.º, e o princípio da legalidade nos termos do artigo 6.º, ambos da CRA (…).
3. Colhe-se dos autos que o Recorrente foi condenado na pena de 15 anos e 2 meses de prisão maior pelo crime de roubo, concorrendo com homicídio frustrado, p. e p. pelo artigo 433.º do antigo CP, decisão esta confirmada pelo Tribunal Supremo;
4. No dia 25 de Janeiro de 2022, após a baixa do processo (…) o Tribunal da Comarca de Benguela, emitiu um mandado de captura contra o Recorrente para ser conduzido à cadeia, para cumprir a pena que lhe foi aplicada;
5. (…) Nesta senda, o Tribunal da Comarca de Benguela não observou que a norma em questão, artigo 433.º do antigo Código Penal, ao abrigo da qual se condenou o Recorrente, já foi despenalizada pelo novo Código Penal, nos termos do artigo 138.º conjugado com o n.º 3 do artigo 2.º todos do novo CP;
6. A norma consagra que “quando o facto deixa de ser crime por força de lei posterior, a sentença condenatória, ainda que transitada em julgado, não se executa, ou seja, se tiver começado a ser executada, cessa imediatamente a execução e todos os seus efeitos”, ou seja, já não pode ser aplicada no contexto actual porque deixou de ser crime;
7. Tal situação foi suscitada tão logo a captura do Recorrente por via de um requerimento a solicitar ao Tribunal da Comarca de Benguela para se pronunciar sobre a despenalização da norma, o Tribunal por sua vez ignorou, não se pronunciou sobre a questão (…);
8. Por sua vez, notificou o Recorrente simplesmente do parecer do Ministério Público, no seu parecer não se baseou no crime que consta dos autos, que é o de homicídio frustrado, mas sim se pronunciou de uma outra norma que não faz parte dos autos, sendo de roubo qualificado, só para não promover a despenalização da norma de que o Recorrente foi condenado (…) violando assim o n.º 2 do artigo 36.º da CRA;
9. O Recorrente está a cumprir pena decorrente de um crime inexistente violando com isso o Estado democrático de direito, nos termos do n.º 2 do artigo 2.º conjugado com o n.º 4 do artigo 65.º ambos da CRA, visto que a constituição consagrou o princípio da lei mais favorável;
10. (…) A despenalização, quer isso dizer que o crime foi extinto nos termos do artigo 138.º conjugado com o n.º 3 do artigo 2.º, todos do novo CP (…)
11. O Acórdão recorrido nos remete a uma inconstitucionalidade nos termos do n.º 2 do artigo 65.º da CRA, ferindo assim o princípio do Estado democrático de direito, estabelecido no artigo 2.º da CRA;
12. O princípio da legalidade é o principal apanágio do Estado democrático de direito, na medida em que todos os actos devem obedecer rigorosamente ao que está respaldado na Constituição e na lei, n.º 2 do artigo 6.º da CRA;
13. O Recorrente ao ser condenado ou preso por uma norma extinta no nosso ordenamento jurídico, tal facto viola o Estado democrático de direito;
14. (…) A decisão recorrida violou o aspecto formal do processo (…) não obedecendo as normas legais do actual CP (…) a todos é assistido o direito a um julgamento justo e conforme à lei;
15. No controlo difuso da constitucionalidade, os juízes são obrigados a respeitar e a assegurar o exercício dos direitos e garantias fundamentais, porém, in casu, a decisão recorrida procurou aprofundar e sistematicamente violar os direitos, liberdades e garantias fundamentais do Recorrente, uma actuação contrária e arrepiante aos ditames da Constituição.
O Recorrente terminou as suas alegações requerendo que seja julgado inconstitucional e anulado o Acórdão do Tribunal Supremo, pelo facto da norma em questão já ter sido extinta do CP.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º e do § único da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é parte no processo que deu lugar à decisão recorrida, pelo que tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitu- cionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º LPC, que dispõe o seguinte, “têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto apreciar a constitucionalidade do Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que confirmou a decisão do Tribunal de primeira instância e condenou o Recorrente a 15 anos e 2 meses de prisão maior, no âmbito do processo n.º 1715/18.
V. APRECIANDO
A apreciação do presente recurso incide sobre duas questões centrais, quais sejam: sobre o facto de o Tribunal ad quem não se ter debruçado sobre o efeito suspensivo do recurso e, consequentemente, da violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 67.º da CRA; bem como sobre a violação dos princípios do Estado democrático de direito e da legalidade, constantes dos artigos 2.º e 6.º, respectivamente, ambos da CRA.
A) Sobre o efeito suspensivo do recurso
Depreende-se dos autos que o Ministério Público, recorreu da decisão por imperativo legal, nos termos do artigo 647.º do CPP e, de igual modo, o Recorrente, e o assistente de defesa do ofendido interpuseram recurso da decisão de primeira instância, por discordar desta.
O Tribunal ad quem, por seu turno, confirmou a decisão do Tribunal a quo, que condenou o Recorrente a 15 anos e 2 meses de prisão maior.
O processo baixou para o Tribunal a quo, o Meritíssimo Juiz a quo, emitiu um mandado de captura contra o réu, aqui Recorrente, conforme fls. 628, 629 e 630 dos autos.
O Recorrente discordando da decisão do Tribunal ad quem, interpôs recurso junto do Tribunal Constitucional, conforme fls. 631 e 632.
Dos autos, verifica-se que em virtude do mandado de captura supramencionado, o réu, aqui Recorrente, foi preso para o cumprimento da pena que lhe foi aplicada pelo Tribunal a quo e confirmada pelo Tribunal ad quem.
Efectivamente, com a interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, a decisão do Tribunal ad quem fica suspensa, ou seja, não é exequível em virtude do efeito suspensivo do recurso extraordinário de inconstitucionalidade interposto sobre a decisão ad quem, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 44.º conjugado com n.º 1 do artigo 51.º da LPC.
Compulsados os autos depreende-se que o Recorrente, encontrava-se a responder o processo em liberdade, à vista disso, este deveria continuar na condição em que se encontrava (liberdade), até a decisão do Tribunal Constitucional.
Neste contexto, a execução da decisão do Tribunal ad quem, mesmo estando pendente o recurso extraordinário de inconstitucionalidade, ofendeu o princípio da legalidade e da presunção de inocência do arguido, consagrados nos artigos 6.º e 67.º, ambos da CRA.
Todavia, não se pode deixar de assinalar que a inconstitucionalidade da decisão que ordenou a execução imediata do Acórdão recorrido foi suscitada no processo principal, mas não em expediente processual autónomo, como o habeas corpus.
Neste ínterim, o Tribunal Constitucional entende que a utilidade dos efeitos da inconstitucionalidade, ora reconhecida, está intrinsecamente dependente da procedência ou improcedência das inconstitucionalidades imputadas ao Acórdão recorrido.
B) Sobre a violação do princípio do Estado democrático de direito e do princípio da legalidade
O Recorrente sustenta nas suas alegações que “o Tribunal da Comarca de Benguela, não observou que a (…) norma em questão, artigo 433.º do antigo código penal, que condenou o réu, já foi despenalizada pelo novo Código Penal Angolano, nos termos do artigo 138.º conjugado com o n.º 3 do artigo 2.º. todos do novo CPA”.
O réu refere que está a cumprir uma pena baseada num crime inexistente, violando com isso o Estado democrático de direito, n.º 2 do artigo 2.º conjugado com o n.º 4 do artigo 65.º, ambos da CRA.
Assistirá razão ao Recorrente?
Vejamos;
O artigo 9.º da Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro, que aprova o Código Penal Angolano (CPA), estabelece que entraria em vigor noventa dias após a sua publicação. E a publicação foi feita aos 11 de Novembro de 2020, tendo iniciado a sua vigência aos 11 de Fevereiro de 2021.
Compulsados os autos verifica-se que a decisão recorrida foi prolactada aos 22 de Julho de 2020, conforme fls. 623, portanto, muito antes do actual Código Penal Angolano ter sido aprovado.
Ora do ponto de vista jurídico, era materialmente impossível que o Tribunal ad quem aplicasse o CPA, uma vez que este não estava em vigor.
Com efeito, não colhem os argumentos aduzidos pelo Recorrente quando invoca as disposições do CPA para pôr em crise um Acórdão proferido em data anterior à sua vigência.
Pois, mesmo o CPA actual, que foi chamado à colação pelo Recorrente, preceitua no n.º 1 do artigo 2.º que as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente ao tempo da prática do facto (…).
O Acórdão recorrido andou bem, tendo julgado o processo, de acordo com os parâmetros legais, ou seja, nos termos da lei que à data se encontrava em vigor.
De salientar, que não assiste razão ao Recorrente quando alega que a sua conduta foi despenalizada e a norma do artigo 433.º do antigo CP, de que serviu de base para a sua condenação está extinta no CPA.
O artigo 433.º do antigo CP, tem como epígrafe “Roubo concorrendo com o crime de homicídio” estabelece “quando o roubo for cometido ou tentado, concorrendo o crime de homicídio, será aplicada aos crimes a pena de prisão maior de vinte a vinte e quatro anos”.
O n.º 2 do artigo 402.º CPA, tem como epígrafe “Roubo Qualificado” e dispõe que:
2. A pena é de 3 a 12 anos de prisão quando:
a) O roubo for cometido com arma de fogo ou qualquer dos agentes ostentar arma de fogo, no momento da sua prática;
b) Do facto resultar, com dolo ou negligência, perigo efectivo para a vida da vítima ou ofensa grave à sua integridade física.
Atento à norma supra, conclui-se que a conduta do Recorrente não foi despenalizada, como referido nas suas alegações. Essa continua a ser punida nos termos do CPA. O que sucedeu foi a alteração da designação e da moldura penal abstracta, que à luz do CP revogado era de 20 a 24 anos de prisão maior, sendo que o actual CPA estabelece para a conduta em causa uma moldura penal abstracta de 3 a 12 anos de prisão.
O facto de a norma do CPA ser mais favorável ao Recorrente, tal não se podia aplicar, visto que, como já foi mencionado acima, aquando do julgamento do recurso pelo Tribunal ad quem ainda não se encontrava em vigor.
Nesta conformidade o Tribunal Constitucional entende que, tendo em conta as disposições conjugadas do n.º 4 do artigo 65.º e do n.º 3 do artigo 26.º, ambos da CRA, deve a medida condenatória ser adequada de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 402.º e no n.º 2 do artigo 2.º, ambos do CPA.
Assim sendo, pelo exposto, é entendimento deste Tribunal que a decisão recorrida não violou o princípio do Estado democrático de direito, artigo 2.º da CRA, o princípio da legalidade, artigo 6.º da CRA, nem qualquer outro princípio, direito, liberdades e garantias do Recorrente.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO POR NÃO SE TER VERIFICADO A VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E DA LEGALIDADE.
CONTUDO DEVE-SE PROCEDER À ADEQUAÇÃO DA MEDIDA CONDENATÓRIA NOS TERMOS DO N.º 2 DO ARTIGO 402.º E N.º 2 DO ARTIGO 2.º, AMBOS DO CPA CONJUGADOS COM O N.º 4 DO ARTIGO 65.º DA CRA.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 03/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
O Tribunal Constitucional, em Luanda, 08 de Fevereiro de 2023.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)
Dra. Maria de Fátima de Lima D’ A. B. da Silva