ACÓRDÃO N.º 808/2023
PROCESSO N.º 1008-B/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Nsilo António, melhor identificado nos autos, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolactado pelo Supremo Tribunal Militar, no âmbito do Processo n.º 55/STM/2019, que alterou, em sede do recurso interposto pelo Ministério Público, a pena de um ano de prisão, declarada suspensa, proferida pelo Tribunal Militar da Região de Luanda, pela prática do crime de violência contra militar de igual graduação ou equivalente, previsto e punível no n.º 2 do artigo 20.º da Lei n.º 4/94, de 28 de Janeiro, Lei dos Crimes Militares, para a pena efectiva de dois anos de prisão, tendo, ainda, aplicado uma pena acessória de demissão, nos termos da alínea b) do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 7.º do mesmo diploma legal.
O Recorrente apresenta, em síntese, as seguintes alegações:
1. O Recorrente foi condenado pelo Tribunal a quo na pena de um ano de prisão correcional, pela prática do crime de violência contra militar de igual graduação ou equivalente, ilícito previsto e punível pelo artigo 20.º n.º 2 da Lei n.º 4/94, de 28 de Janeiro, Lei dos Crimes Militares.
2. O Tribunal a quo decidiu suspender a execução da pena, nos termos do disposto no artigo 88.º do Código Penal vigente na altura, fez ainda recurso a atenuação extraordinária da pena, nos termos do artigo 94.º do mesmo diploma.
3. Porém, o Digno Magistrado do Ministério Público, inconformado com a decisão do Tribunal a quo, recorreu para o Supremo Tribunal Militar, alegando que não existia razão para o Tribunal a quo fazer recurso a atenuação extraordinária da pena e que não foi levada em conta as circunstâncias agravantes por si invocadas. Com isso, solicitou a condenação do Réu dentro dos limites da moldura penal abstrata.
4. O Supremo Tribunal Militar julgou procedente o recurso e condenou o Réu na pena efectiva de dois anos de prisão e ainda aplicou uma pena acessória de demissão, nos termos do disposto no artigo 7.º n.º 2 da alínea b) e n.º 3 da Lei n.º 4/94, de 28 de Janeiro, Lei dos Crimes Militares.
5. Contudo, o Tribunal ad quem ao alterar a decisão do Tribunal a quo, não levou em conta a norma prescrita no artigo 473.º do CPP, uma vez que podia fazer uma qualificação diversa dos factos, fossem eles de natureza incriminadora, bem como as circunstâncias modificativas da pena, desde que para tal, notificasse o arguido e o assistente para no devido tempo se pronunciarem, sobre a questão da nova qualificação jurídica suscitada no recurso.
6. O Recorrente não foi notificado da decisão a proferir pelo Supremo Tribunal Militar, tendo sido surpreendido com uma condenação nova, o que desde já constitui decisão surpresa, proibidas pelo legislador constitucional angolano, tal como já foi vertido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 639/2020.
7. Pelas razões supra, o Acórdão recorrido violou o princípio do contraditório, previsto pelo artigo 174.º n.º 2, direito a ampla defesa, artigo 67.º n.º 1, direito ao julgamento justo e conforme, art.º 72.º, tutela jurisdicional efectiva dos direitos, artigo 29.º, todos da CRA, é por isso inconstitucional.
8. De acordo ao exposto supra, o mesmo ofendeu ainda o princípio da “Proibição da reformatio in pejus”, sendo que este Tribunal não pode: a) em prejuízo de qualquer dos arguidos aplicar pena ou medida de segurança que possa considerar-se mais grave do que aquela que foi aplicada pela decisão recorrida”, b) ”revogar o benefício da suspensão da execução da pena … , c) aplicar qualquer pena acessória não aplicada na decisão recorrida”, conforme previsto pelas alíneas a), b), e c) do artigo 473.º do Código Penal.
9. Uma vez ofendido o princípio da Proibição da Reformatio in Pejus, violou-se consequentemente, direitos e princípios, dentre eles, o princípio da legalidade, ex vi artigo 6.º da CRA, em consequência disso, violou as liberdades e garantias fundamentais devidamente consagradas no Constituição da República de Angola, mormente o direito à liberdade de locomoção.
O Recorrente termina pedindo ao Tribunal Constitucional que declare inconstitucional a decisão recorrida por ofensa ao princípio do contraditório (n.º 2 do artigo 174.º da CRA) e a violação do direito a ampla defesa (n.ºs 1 e 2 do artigo 67.º da CRA), tutela jurisdicional efectiva (29.º da CRA) e a violação do direito ao julgamento justo e conforme (artigo 72-º da CRA), bem como a ofensa dos princípios da proibição da reformatio in pejus e o da legalidade (6.º da CRA).
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional - LPC, bem como da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho — Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns, conforme estatuído no § único do artigo 49.º da Lei do Processo Constitucional (LPC).
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é parte no Processo n.º 55/STM/2019, que correu os seus trâmites no Supremo Tribunal Militar, pelo que tem legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (…) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.
IV. OBJECTO
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem como objecto apreciar se o Acórdão prolactado pelo Supremo Tribunal Militar, no âmbito do Processo n.º 55/STM/2019, ofendeu ou não princípios, direitos e garantias consagrados na CRA, invocados pelo aqui Recorrente.
V. APRECIANDO
Questão prévia
O Recorrente foi condenado pelo Tribunal Militar da Guarnição de Luanda na pena de um ano de prisão, declarada suspensa por um período de dois anos, pela prática dos crimes de insubordinação, extravio e deterioração de bens militares e violência contra militar de igual graduação.
Desta condenação, inconformado, o Digno Representante do Ministério Público junto do Tribunal a quo interpôs recurso, pedindo que ao réu seja aplicada uma pena única e efectiva, tendo em atenção a quantidade de crimes em concurso e a gravidade de cada um deles (fls. 119-120).
O Supremo Tribunal Militar, mediante o Acórdão em crise, decidiu alterar a decisão do Tribunal a quo, condenando o réu na pena efectiva de dois anos de prisão maior e aplicou também a pena acessória de demissão.
Inconformado com a decisão, o Recorrente interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. No decurso da sua apreciação para decisão, foi aprovada e entrou em vigor a Lei n.º 35/22, de 23 de Dezembro, Lei da Amnistia, que vem amnistiar todos os crimes comuns puníveis com a pena de prisão até oito anos, cometidos por cidadãos nacionais e estrangeiros, no período de 12 de Novembro de 2015 a 11 de Novembro de 2022, bem como os crimes militares puníveis com pena de prisão até oito anos, conforme estabelece o artigo 1.º da referida lei.
O mesmo diploma legal estabelece ainda que não beneficiam da amnistia, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º Os crimes dolosos de que tenha resultado a morte, ofensa grave à integridade física ou quando tenha havido o emprego de arma de fogo.
Nestes termos, impende sobre este Tribunal, o dever de apreciar se há, efetivamente, razões para o conhecimento do objecto do presente recurso ou se é de aplicar a Lei da Amnistia e, consequentemente, declarar amnistiados os crimes em que foi condenado o aqui Recorrente, uma vez que a amnistia é uma causa de extinção da responsabilidade criminal determinada pelo poder legislativo, que elimina genericamente a incriminação de factos passados, cfr. artigo 138.º do Código Penal Angolano (CPA).
Deste modo, importa, in casu, apreciar e decidir, se o crime é doloso, se houve emprego de arma de fogo e se resultou morte ou ofensa grave à integridade física do ofendido, conducente a ser ou não declarada a amnistia.
Assim, vejamos:
Constata-se, desde logo, que o crime de violência contra militar de igual graduação ou equivalente, previsto e punível no n.º 2 do artigo 20.º da Lei n.º 4/94, de 28 de Janeiro, Lei dos Crimes Militares, é doloso, mas que não resultou em morte do ofendido (Cfr. 96 e 141). O Acórdão recorrido salienta que o Réu actuou com a intenção de alvejar o seu colega e o resultado morte só não ocorreu por circunstâncias alheias ao mesmo e não colhem as suas justificações, segundo as quais o disparo ocorreu devido a falta de destreza no manuseamento da pistola. (Cfr. fls. 96 e 141).
Cabe, assim, apenas verificar se o mesmo foi praticado com emprego de arma de fogo e, ainda, se este cometimento resultou ou não em ofensa grave à integridade física do ofendido, ex vi do artigo 1.º da Lei da Amnistia.
Os autos demonstram que o crime, pelo qual o aqui Recorrente foi condenado, foi praticado com o uso da pistola de marca Jericho n.º 3337267, (fls. 51, 72, 77, 96 e 170).
Sobre a gravidade da ofensa causada ao ofendido, transparece dos autos que (…) o Agente Adilson Francisco, ficou sob cuidados médicos por três semanas, pelo facto de ter ficado com graves lesões no músculo do diafragma e no pulmão direito, tal como reporta o relatório médico a fls. 56 dos autos. Segundo o auto de exame de sanidade, constante a fls. 66 dos autos, atento à gravidade da lesão, o Agente Adilson necessitava de um período de aproximadamente 360 (trezentos e sessenta) dias para a sua recuperação total. (Cfr. fls. 132).
Nestes termos, o Recorrente não beneficia da amnistia, uma vez que foi condenado por um crime doloso, praticado com emprego de arma de fogo, de que resultou ofensa grave à integridade física do ofendido, ex vi do n.º 2 in fine do artigo 1.º e a alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 35/22, de 23 de Dezembro, Lei da Amnistia. É de referir que a Lei da Amnistia não exige acumulação destes pressupostos, bastando a existência de qualquer um deles para afastar o benefício da amnistia.
Por outro lado, o Recorrente nas suas alegações realça, como questão prévia, a ofensa do princípio da presunção de inocência, pois, tendo sido condenado com uma pena declarada suspensa, na data em que foi notificado do Acórdão em crise foi imediatamente conduzido à cadeia, quando, devia ser mantida a situação carcerária de apresentar-se uma vez ao Tribunal a quo, como medida cautelar (cfr. fls. 78).
Em face aos factos e fundamentos supra, requereu a posteriori que este Tribunal repusesse a legalidade, isto é, que o restituísse a liberdade, nos termos do n.º 4 do artigo 42.º e da al. a) do artigo 49.º da LPC.
A prisão ilegal é reprovável num Estado de Direito como o nosso, porém, há órgãos vocacionados a tratar de assuntos relativos à soltura e fiscalização das garantias processuais dos arguidos, entre os quais o Ministério Público, enquanto fiscal da legalidade.
Por outra, o exercício de qualquer direito deve ser feito nos termos da lei, mediante os mecanismos e procedimentos legais estabelecidos para o efeito.
Ora, o Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, é um tipo de recurso cujo objecto de apreciação deve ser uma sentença ou decisões dos demais Tribunais que contenham fundamentos de direito que contrariem princípios ou violem direitos, liberdades e garantias fundamentais previstos na Constituição da República de Angola, assim dispõe o n.º 1 do artigo 49.º da LPC.
In casu, a Constituição da República de Angola, consagrou, no artigo 68.º, um expediente processual adequado para reagir contra todo o tipo de prisão ou detenção ilegal, que é o Habeas Corpus que deve ser impetrado no tribunal competente.
Pelo exposto, não é o Tribunal Constitucional o órgão competente para decidir em primeira instância sobre o Habeas Corpus.
Deste modo, porque não há fundamento legal para declarar o crime amnistiado, urge apreciar se o Acórdão recorrido violou ou não violou os princípios, direitos e garantias consagrados na CRA, invocados pelo aqui Recorrente, nomeadamente, o princípio do contraditório, o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, o direito a ampla defesa, o direito a julgamento justo e conforme, o princípio da legalidade, bem como o princípio da Proibição da reformatio in pejus, previstos, respectivamente, nos artigos 174.º n.º 2, 29.º, 67.º n.º 1, 72.º, e 6.º, todos da CRA e pelo n.º 1 do artigo 473.º do Código Penal Angolano (CPPA).
Porque os princípios e direitos constitucionais alegadamente violados estão directamente relacionados com a violação do princípio da proibição da reformatio in pejus, será este o princípio apreciado em primeiro lugar.
A) Sobre a Violação do Princípio da Proibição da Reformatio in Pejus e do Princípio da Legalidade
O Recorrente alega que o Acórdão recorrido violou o princípio da proibição da reformatio in pejus, uma vez que o Tribunal não pode, em prejuízo do Arguido, aplicar pena ou medida de segurança que possa considerar-se mais grave do que aquela que foi aplicada pela decisão recorrida; revogar o benefício da suspensão da execução da pena; nem aplicar qualquer pena acessória não aplicada na decisão recorrida, conforme vem previsto nas alíneas a), b) e c) do artigo 473.º do Código Penal Angolano.
Ademais, alega que uma vez violado o princípio da proibição da reformatio in pejus, foi, consequentemente, ofendido o princípio da legalidade, ex vi do artigo 6.º da CRA.
Importa, desde logo, referir que a lei processual penal aplicável in casu é o actual Código de Processo Penal Angolano (CPPA), que foi aprovado pela Lei n.º 39/20, de 11 de Novembro e entrou em vigor em 2021, após um período de vacatio legis de 90 dias, tendo em conta que a decisão de que se recorre foi prolactada no dia 10 de Março de 2022.
Aliás, o n.º 1 do artigo 4.º do CPPA dispõe que: 1. A Lei Processual Penal é de aplicação imediata, mantendo os actos praticados no domínio da lei anterior a sua inteira validade.
O artigo 473.º do CPPA, sob a epígrafe “Proibição da «reformatio in pejus»”, dispõe que: 1. Quando o recurso de uma decisão condenatória for interposto no exclusivo interesse da defesa, quer o seja pelo arguido, pelo Ministério Público ou por ambos, o Tribunal superior não pode, em prejuízo de qualquer arguido, ainda que não recorrente: a) Aplicar pena ou medida de segurança que possa considerar-se mais grave do que aquela que foi aplicada pela decisão recorrida; b) Revogar o benefício da suspensão da execução da pena ou o da sua substituição por outra menos grave; c) Aplicar qualquer pena acessória não aplicada na decisão recorrida; d) Modificar, de qualquer outro modo, a pena ou a medida de segurança aplicadas em prejuízo do ou dos arguidos.
Assim, quando o recurso for interposto no exclusivo interesse da defesa, quer o interponha o arguido, o Ministério Público (no exclusivo interesse da defesa) ou ambos, isto é, o arguido e, ao mesmo tempo, o Ministério Público (no exclusivo interesse da defesa), o tribunal superior não poderá agravar a condenação nos termos expressos nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 473.º da CPPA. Ou seja, o Tribunal Supremo pode, por conseguinte, atenuar a pena, mas não agravá-la, quando o recurso for interposto no exclusivo interesse da defesa.
De acordo com Vasco Grandão Ramos, O instituto da proibição da «reformatio in pejus» tem como objectivo fundamental realizar a justiça material e tornar mais efectivo o direito de defesa, gravemente comprometido pelo natural temor do réu de, ao recorrer de uma sentença que considera injusta para o tribunal superior, ver por este agravada ainda a pena e, consequentemente, aumentada a injustiça. In Direito Processual Penal – Noções fundamentais; Colecção Faculdade de Direito da UAN, 3.ª Edição; 2003, pág. 403.
Ora, o n.º 1 do artigo 473.º do CPPA impõe, como requisito incontornável, que a proibição da reformatio in pejus, só se aplica quando o recurso for interposto somente pelo réu ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse da defesa, ou pelo réu e pelo Ministério Público nesse mesmo exclusivo interesse.
Na mesma perspectiva do n.º 1 do artigo 473.º do CPPA, ao impor que o recurso seja interposto no exclusivo interesse da defesa, Manuel Lopes Maia Gonçalves, defende que o sentido da proibição da reformatio in pejus é o de obstar que o arguido veja alterada a sentença penal, em seu prejuízo, quando só a defesa recorreu, ou mesmo, quando também o Ministério Público recorreu, mas no exclusivo interesse do arguido. In Código de Processo Penal Anotado, 10.ª edição, revista e actualizada, Almedina, 1999, págs. 725 e 726.
Todavia, in casu, o recurso foi interposto apenas pelo Ministério Público, que não o fez no exclusivo interesse da defesa, pois consta dos autos, fls. 109 e 114 a 120, que o Magistrado do Ministério Público (Procuradoria Militar da Região de Luanda) foi quem recorreu do Acórdão prolactado pelo Tribunal da 1.ª Instância, conforme estabelece o artigo 68.º da Lei n.º 5/94, de 11 de Fevereiro, Sobre a Justiça Penal Militar, por inconformação da decisão e não no exclusivo interesse do réu, aqui Recorrente.
Portanto, o arguido, ora Recorrente, não interpôs recurso da decisão condenatória, facto que poderia impedir que as penas impostas pudessem ser alteradas em seu prejuízo. Aliás, diz o Acórdão recorrido que Notificada a Defesa (…), esta limitou-se a tomar conhecimento (fls. 137).
Por esta razão e nos termos do n.º 1 do artigo 473.º do CPPA, considera este Tribunal que o Acórdão recorrido não ofendeu o princípio da proibição da reformatio in pejus.
B) Sobre a Violação dos Princípios do Contraditório e do Acesso ao Direito e Tutela Jurisdicional Efectiva e dos Direitos à Ampla Defesa e a Julgamento Justo e Conforme
Não obstante a alegada violação destes princípios e direitos constitucionais esteja prejudicada pelo facto de não estarem criados, no caso concreto, os pressupostos para se aplicar a proibição da reformatio in pejus, o Tribunal vai debruçar-se sobre aquelas questões e violações alegadas pelo Recorrente, decorrentes da qualificação diversa dos factos e da falta de notificação antes de ser proferida a decisão do Tribunal ad quem.
O Recorrente alega que o Acórdão em crise, para alterar a decisão do Tribunal a quo, e qualificar diversamente os factos, quer no âmbito da incriminação, quer no âmbito das circunstâncias modificativas da pena, teria, antes de decidir, que notificar, o arguido e o assistente para, no devido tempo, se pronunciarem, sobre a questão da nova qualificação jurídica suscitada no recurso, de acordo com a norma prescrita no artigo 473.º do CPPA.
Assim, por não ter sido notificado da decisão antes desta ser proferida pelo Supremo Tribunal Militar, alega o Recorrente que foi surpreendido com uma condenação nova, o que constitui decisão surpresa e viola o princípio do contraditório, o direito a ampla defesa, o direito ao julgamento justo e conforme, bem como o princípio da tutela jurisdicional efectiva, previstos, respectivamente, nos artigos 174.º n.º 2, 67.º n.º 1, 72.º e 29.º, todos da CRA.
O artigo 473.º do CPPA, alegadamente violado pelo Acórdão recorrido, consagra no n.º 1 o princípio da proibição da reformatio in pejus e nos dois números seguintes estabelece uma excepção a este importante princípio de Direito Processual Penal.
Assim, o n.º 2 do artigo 473.º do CPPA determina que: A proibição estabelecida neste artigo não se aplica quando o Tribunal superior qualificar diversamente os factos, quer a qualificação diga respeito à incriminação quer às circunstâncias modificativas da pena. E o n.º 3, deste mesmo preceito, estabelece que: Na hipótese prevista no número anterior, o Tribunal deve, antes de decidir, notificar o arguido, o Ministério Público e o assistente para, no prazo de 8 dias, se pronunciarem, querendo, sobre a questão da nova qualificação jurídica suscitada no recurso.
Atente-se que a lei afasta a proibição da reformatio in pejus, quando o Acórdão recorrido qualificar diversamente os factos, desde que, neste caso, o réu seja notificado para que, no prazo de oito dias, se pronuncie, querendo, sobre a questão da nova qualificação jurídica suscitada no recurso.
Vejamos então:
Para que se possa impor ao Tribunal o dever de, antes de decidir, notificar o arguido, o Ministério Público e o assistente, para no prazo de oito dias se pronunciarem nos termos da lei, como alega o Recorrente, importa, desde logo, saber: 1. Se o recurso foi interposto no exclusivo interesse do Recorrente; 2. Se o Acórdão em crise qualificou diversamente os factos.
Está, desde já supra provado que o recurso interposto pelo Ministério Público não foi impetrado no exclusivo interesse do Réu e que este (Réu ora Recorrente) nem sequer recorreu do Acórdão do Tribunal a quo, limitando-se a tomar conhecimento através de notificação.
Assim, deve-se, desde logo, considerar que o Tribunal ad quem não se encontrava limitado pelo princípio da proibição da reformatio in pejus.
A qualificação diversa dos factos, prevista no n.º 2 do artigo 473.º do CPPA, deverá existir quando implique um enquadramento jurídico substancialmente diverso, quanto à incriminação ou às circunstâncias modificativas da pena, daquele em que o arguido foi condenado.
Tal facto não se verifica, porquanto consta dos autos que o réu, aqui Recorrente, foi condenado pelo Tribunal ad quem no âmbito da mesma qualificação jurídica dada aos factos pelo Tribunal a quo, ou seja, nas duas instâncias o Recorrente foi condenado pela prática do crime de violência contra militar de igual graduação ou equivalente, previsto e punível no n.º 2 do artigo 20.º da Lei n.º 4/94, de 28 de Janeiro, Lei dos Crimes Militares.
O Acórdão recorrido, na reapreciação dos mesmos factos, manteve, ou seja, não alterou a mesma qualificação jurídica do Tribunal a quo, embora, em concreto, tenha condenado o réu com uma pena efectiva de prisão.
Não houve, portanto, uma diversa qualificação dos factos, conducente à imputação de um crime diverso, nem se ultrapassaram os limites das sanções aplicáveis.
De acordo com Ana Prata, Catarina Veiga e José Manuel Vilalonga, a qualificação, em Direito Penal, consiste na Previsão de circunstâncias de um crime que fundamentam uma maior ilicitude do facto ou uma maior culpa do agente e que determinam o agravamento dos limites abstratos da pena legalmente estabelecido relativamente aos limites que a lei consagra para crime na sua configuração simples (não qualificada). In Dicionário Jurídico, Direito Penal, Direito Processual Penal, Volume II, 2.ª Edição, Almedina, pág. 427.
Ademais, fora do quadro da proibição da reformatio in pejus, estabelecida no artigo 473.º do CPPA, o Supremo Tribunal Militar não tinha a obrigação legal de dar conhecimento prévio ao réu, ora Recorrente, das consequências jurídicas que decorreram dos factos a si imputados.
Neste sentido, não assiste razão ao aqui Recorrente, por não se ter verificado a qualificação diversa dos factos, não existir obrigação legal do Tribunal ad quem notificar o arguido antes de decidir, nem, tão pouco, terem sido violados os princípios do contraditório e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, o direito à ampla defesa e o direito a julgamento justo e conforme, alegados pelo Recorrente.
Feita uma apreciação dos fundamentos acima expostos, esta Corte Constitucional considera que o Acórdão recorrido não ofendeu princípios, direitos e garantias, consagrados na CRA.
Nestes termos,
DECIDINDO:
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO.
Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho — Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 09 de Março 2023.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria de Fátima de Lima D´A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr. Vitorino Domingos Hossi