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ACÓRDÃO N.º 817/2023

Processo n.º 1002-D/2022
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)

Em nome do Povo, acordam, os Juízes, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

O Ministério das Finanças, melhor identificado nos autos, interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolactado pelo Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 148/15, que negou provimento ao recurso e confirmou a decisão proferida pela Câmara do Cível e Administrativo do Tribunal Supremo, que deferiu provimento ao recurso contencioso de impugnação de acto administrativo e decidiu anular o acto administrativo praticado pelo Recorrente.

Do Acórdão proferido pelo Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, a mais alta instância da Jurisdição Comum, recorreu para o Tribunal Constitucional, onde, após notificação, nos termos do estatuído no artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), o Recorrente, alegou, em síntese, o seguinte:
1. A Administração pública deve centrar a sua actividade na prossecução do interesse público, não apenas respeitando os direitos e interesses dos particulares, mas disciplinando os funcionários e agentes públicos, como única forma de assegurar a referida prossecução do interesse público.

2. Com efeito, sem prejuízo dos demais princípios que enfermam a actuação da Administração Pública, o princípio da prossecução do interesse não pode ser alcançado na base de funcionários públicos que, manifestamente, desrespeitam as ordens e orientações da hierarquia, essencialmente quando emanadas de forma legal e dentro das competências estatuídas.

3. É exactamente por isso que o Decreto n.º 33/91, de 26 de Julho (Regime Disciplinar dos Funcionários Públicos e Agentes Administrativos), amplamente invocado pelo Acórdão recorrido, estabelece, logo no seu preâmbulo, que “o funcionamento organizado e disciplinado da Administração Pública é uma das condições fundamentais para o asseguramento das funções que lhe são acometidas”.

4. Ou seja, o princípio constitucional de prossecução do interesse público encontra-se intrinsecamente associado à ideia de uma Administração Pública organizada e disciplinada.

5. Essa organização e disciplina apenas se alcança quando os funcionários públicos agem no estrito marco das ordens e orientações legítimas dos superiores hierárquicos, n.º 2, do artigo 4.º do Decreto n.º 33/91, de 26 de Julho.

6. O quadro constitucional vigente à data dos factos (2003) já assegurava que competia ao Governo dirigir os serviços e a actividade da administração do Estado, pelo que cabia ao Ministro das Finanças pugnar pela disciplina dos funcionários públicos sob a sua tutela.

7. Ora, na sua decisão, o Acórdão recorrido é manifestamente acrítico em relação ao acervo documental carreado para o processo, num exercício manifestamente parcial, no sentido de, a todo o custo, salvaguardar única e exclusivamente os interesses do aí recorrido, o funcionário público Claudino Sacramento Tavares.

8. Na verdade, num completo descaso da documentação dos autos, o Acórdão recorrido limita-se a invocar a dimensão formal da lei, chegando inclusive a afirmar factos que não correspondem minimamente à verdade.

9. A fls. 276 (pág. 14 do Acórdão) é afirmado que “No caso sub judice o ora Recorrente afirma, que o processo disciplinar que despoletou a demissão do ora Recorrido, se resume na sua notificação no jornal de Angola. Ora tal afirmação não tem fundamento: primeiro por não ter juntado aos autos a publicação do Jornal de Angola para sustentar a sua afirmação.

10. Nada mais falso, porém, desde logo, é falso que o Recorrente tenha afirmado que o processo disciplinar que despoletou a demissão do ora Recorrido, se resume na sua notificação no jornal de Angola, como se encontra, deliberadamente sublinhado no Acórdão recorrido. E tal é falso porque na sua contestação (e nas alegações escritas) o Recorrente afirmou expressamente que:

a) Atento que o Recorrente não tinha domicílio certo, e ainda às características do processo disciplinar (artigo 27.º do Decreto n.º 33/91, de 29 de Julho), o Recorrente foi notificado em parte incerta, através de publicação de anúncio no Jornal de Angola.

b) Não tendo o Recorrente comparecido no período de 33 dias, nem deduzido qualquer oposição, foi elaborado, nos termos do disposto no artigo 36.º do Decreto 33/91, de 26 de Julho, o competente relatório final e submetido à consideração de Sua Excelência o Ministro das Finanças.

c) O Ministro das Finanças, no uso das competências que a lei lhe confere, aplicou ao Recorrente, na sequência do processo disciplinar que lhe foi movido, a pena disciplinar correspondente, qual seja, a de demissão.

11. Do que fica acima transcrito, resulta que o Recorrente especificou no que consistiu o processo disciplinar instaurado e quais foram as peças processuais do mesmo, nunca tendo afirmado que o mesmo processo se resumia à publicação do jornal de Angola.

12. Por outro lado, muito ao contrário do afirmado no Acórdão recorrido, a prova da publicação da notificação do aí Recorrido para participar do processo, foi feita, mediante junção dessa publicação (documentos com os números 13 e 14 da contestação, e realçado nas alegações escritas).

13. Não podemos deixar de realçar o voto vencido contra o Acórdão recorrido, que não suscita dúvidas sobre a superficialidade com que a decisão avaliou as provas dos autos.

14. Ora, o Acórdão recorrido, optando por uma manifesta ausência de análise, e socorrendo-se de inverdades facilmente demonstradas, produziu uma decisão que põe em causa o princípio constitucional ínsito no artigo 72.º da CRA, negando ao Recorrente um julgamento justo e conforme, prejudicando de forma perigosa o princípio da prossecução do interesse público a que o Recorrente se encontra constitucionalmente obrigado.

15. Trata-se de um perigoso precedente uma vez que se a decisão recorrida vingar, é assegurado aos funcionários públicos, por um lado, o “direito” de ilegitimamente recusarem as ordens e orientações dos seus superiores hierárquicos e, por outro lado, o “direito” de se esquivarem à notificação pessoal para o processo disciplinar, com o resultado de que o processo disciplinar seria sempre inviável, mas a seu favor!

16. Estaria assim comprometido o normal e eficiente funcionamento da Administração Pública, assim como comprometido estaria o asseguramento das funções a que estão acometidos os responsáveis máximos do funcionalismo público.

17. Sem prejuízo do atrás evidenciado, o Acórdão recorrido fere igualmente a Constituição, uma vez que, para fundamentar a sua decisão, aplica ao caso concreto norma que à data dos factos não se achava em vigor no nosso ordenamento jurídico.

18. Com efeito, à pág. 14, o Acórdão recorrido afirma também que…“Nesse sentido, a Constituição da República de Angola. (abreviadamente CRA) reconhece o direito ao trabalho, expressamente, como direito fundamental de todo o cidadão (artigo 76. º da CRA). A Constitucionalização do direito do trabalho surge como o reconhecimento da necessidade especial de uma especial tutela que deve ser dada ao trabalhador, fruto do desequilíbrio existente entre este e o empregador pelo que o direito ao trabalho, enquanto compromisso constitucional, no sentido de manifestação da dignidade humana deve sempre condicionar a actuação do Estado e dos seus órgãos”.

19. Repare-se que, ao contrário da norma do artigo 72.º da CRA é meramente processual, exigindo que os tribunais garantam que, no momento em que os factos são julgados, todos os argumentos e documentação devem ser criticamente julgados, a norma do artigo 76.º da CRA é substantiva, isto é, garante a atribuição de direito material ao trabalho.

20. Ora, sendo uma norma material/substantiva, ela só pode ser aplicada ao tempo da sua vigência, ou, dito de outro modo, ela é de aplicação aos factos ocorridos ao seu tempo de vigência.

21. À data da prática do acto administrativo impugnado não se encontrava em vigor a CRA, a qual foi promulgada a 5 de Fevereiro de 2010.

Em conclusão, o Recorrente requer que seja declarada a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, porquanto:

a) O Acórdão recorrido, optando por uma manifesta ausência de análise, e socorrendo-se de inverdades facilmente demonstradas, produziu uma decisão que põe em causa o princípio constitucional ínsito no artigo 72.º da CRA, negando ao Recorrente um julgamento justo e conforme, prejudicando de forma perigosa o princípio da prossecução do interesse público a que o Recorrente se encontra constitucionalmente obrigado.

b) O Acórdão recorrido fere igualmente a Constituição, uma vez que, para fundamentar a sua decisão, aplica ao caso concreto norma que à data dos factos não se achava em vigor no nosso ordenamento jurídico.

c) É entendimento do Recorrente que o Acórdão recorrido, ao se fundamentar numa norma constitucional inexistente à data dos factos, produziu uma decisão manifestamente parcial, favorecendo injustamente o Recorrido, pondo em causa o princípio da igualdade que as partes devem merecer dos tribunais, sendo por isso inconstitucional.

O Recorrente termina pedindo que seja declarada a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, quer por violação do princípio constitucional de julgamento justo e conforme, como por violação do princípio de prossecução do interesse público a que a Administração pública se encontra adstrita, assim como por violação do dever de aplicar ao julgamento dos factos normas e princípios constitucionais vigentes à data em que os factos foram praticados.
O processo foi à vista do Ministério Público junto desta Corte Constitucional que, em conclusão, pugnou pelo não provimento do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por entender que, o acto de demissão do funcionário nas circunstâncias em que ocorreu, está eivado de ilegalidade e, por conseguinte, determina a sua nulidade.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso foi interposto, com base na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direitos e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição da República de Angola”.

Além disso, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE

A legitimidade para a interposição de um recurso extraordinário de inconstitucionalidade cabe, no caso de sentença, a pessoa que em harmonia com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, possa dela interpor recurso ordinário, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC).
O Recorrente foi parte no Processo sob o n.º 148/15, que correu termos no Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, que não viu a sua pretensão satisfeita, tendo, por conseguinte, legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade circunscreve-se à apreciação da constitucionalidade do Acórdão proferido pelo Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 148/15, que concedeu provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida.

V. APRECIANDO

O pedido de declaração de inconstitucionalidade do aresto recorrido assenta sobre as conclusões das alegações que, por força do disposto no artigo 690.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável subsidiariamente ao processo constitucional, ex vi do artigo 2.º da LPC, delimitam as questões a conhecer no presente recurso.
É submetida à apreciação do Tribunal Constitucional o Acórdão prolactado pelo Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, em sede do Processo n.º 148/15, que confirmou a decisão recorrida.
O Recorrente, no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, requereu a intervenção do Tribunal Constitucional, por entender que o Acórdão recorrido ofendeu princípios constitucionais, mormente o princípio do julgamento justo e conforme, da prossecução do interesse público adstrito à Administração Pública e do dever de aplicação ao julgamento dos factos, normas e princípios vigentes à data em que foram praticados.

a) Da ofensa ao princípio do julgamento justo e conforme

O Recorrente alude a fls. 336 que o Acórdão recorrido, optando por uma manifesta ausência de análise e socorrendo-se de inverdades facilmente demonstradas, produziu uma decisão que põe em causa o princípio constitucional ínsito no artigo 72.º da CRA, negando ao Recorrente um julgamento justo e conforme, prejudicando de forma perigosa o princípio da prossecução do interesse público a que o Recorrente se encontra constitucionalmente obrigado.

No entanto, é sabido que este princípio constitucional, significa que todo o acto praticado por autoridade judicial, para ser considerado válido, eficaz e completo, deve obedecer a todos os pressupostos formais e materiais previstos na legislação aplicável.

Tem sido entendimento desta Corte, tal como referido no seu Acórdão n.º 650/2020, de 24 de Novembro, que, “o princípio do julgamento justo e equitativo é um princípio fundamental de qualquer sociedade democrática, profundamente imbricado com o Estado de direito (rule of law), não havendo fundamento para qualquer interpretação restritiva e que visa, acima de tudo, defender os interesses das partes e os próprios da administração da justiça, que os litigantes possam apresentar o seu caso ao tribunal de forma efectiva; tem como significado básico que as partes na causa têm o direito de apresentar todas as observações que entendam relevantes para a apreciação do pleito, as quais devem ser adequadamente analisadas pelo tribunal, que tem o dever de efectuar um exame criterioso e diligente das pretensões, argumentos e provas apresentadas pelas partes e que a justeza (fairness) da administração da justiça, além de substantiva, se mostre aparente (justice must not only be done it must also be seen, to be done).

Socorrendo-se à doutrina, no sentido de sustentar tal tese, Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes entendem que, “o direito a julgamento justo é um pressuposto do Estado Democrático de Direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração da justiça funcional e independente. Ela tem de assegurar um julgamento público e num prazo razoável e garantias de defesa material”. In Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, pág. 398.

Mais, como refere o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos “O direito a um julgamento justo pode ser violado de muitas formas diferentes mas, como princípio geral, tem de se ter sempre presente que o arguido deverá ter, em todas as circunstâncias, a genuína possibilidade de responder às acusações, impugnar provas, contra-interrogar testemunhas e fazer tudo isto numa atmosfera digna”. In Direitos Humanos da Administração da Justiça, Capítulo 7 – Direito a um Processo Justo: Parte I – Do Julgamento à Sentença Final, International Bar Association, 2003, pág. 2013.

Desta feita, volvendo olhares para os autos, a fls. 182, verifica-se que o argumento do Recorrente, segundo o qual o Acórdão recorrido optou por uma ausência de análise, negando-lhe um julgamento justo e conforme, não colhe, na medida em que o requisito cristalizado no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 33/91, de 26 de Julho, isto é, a obrigatoriedade do processo escrito, é a condição para a validade ou invalidade do procedimento disciplinar.

A lei estipula regras para os casos de demissão no funcionalismo público, pois que, os actos administrativos para serem válidos devem obedecer rigorosamente a fase adjectiva e a fase substantiva, o que não ocorreu no caso sub judice, porquanto, o processo disciplinar instaurado contra o funcionário do Ministério da Finanças desobedeceu aos critérios contidos no artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 33/91, de 26 de Julho.

Assim, ao não se verificar a obediência dos artigos supra referidos, coloca em causa todo o processo, culminando com a sua nulidade.

Verifica-se, o mesmo entendimento, com a consagração do disposto no n.º 1 do artigo 201.º da Lei n.º 31/22, de 30 de Agosto – Lei que aprova o Código de Procedimento Administrativo, o qual alude que são nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.

Por seu turno, está implícito no n.º 4 do artigo 76.º da CRA, que o despedimento sem justa causa é ilegal, constituindo-se a entidade empregadora no dever de justa indemnização ao trabalhador demitido, nos termos da lei.

Não sendo, pelo supra exposto, de considerar violado o princípio constitucional aqui em ênfase.

b) Da ofensa ao princípio de prossecução do interesse público a que a Administração Pública se encontra adstrita

O Recorrente chama ao caso controvertido, a violação da prossecução do interesse público adstrito à Administração Pública, invocando que o Acórdão recorrido é manifestamente acrítico em relação ao acervo documental carreado para o processo, num exercício manifestamente parcial, no sentido de, a todo o custo, salvaguardar única e exclusivamente os interesses do funcionário público Claudino do Sacramento Tavares.
No entanto, à luz do n.º 3 do artigo 198.º da CRA, “A prossecução do interesse público deve respeitar os direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares”. Neste contexto, Raul Carlos Vasques Araújo, Elisa Rangel Nunes e Marcy Lopes aludem que “Determina o número 2 (que hoje corresponde ao n.º 3) deste artigo o citado limite negativo da actuação da Administração Pública. Este limite negativo decorre da subordinação da Administração à Constituição e à lei. Mas a subordinação à Constituição e à lei é extensiva aos indivíduos que constituem o Estado, aos seus cidadãos que a elas se encontram nos mesmos termos subordinados. Daí decorre que quer a Administração, quer os particulares têm de conformar a sua actuação à lei, que é quem define os direitos e deveres de uns e dos outros”. In Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo II, pág. 635.

À semelhança do que foi enfatizado supra, Gomes Canotilho e Vital Moreira referem que “como toda a actividade pública, a Administração está subordinada à Constituição. O Princípio da constitucionalidade da administração não é outra coisa senão a aplicação, no âmbito administrativo, do princípio geral da constitucionalidade dos actos do Estado. Todos os poderes e órgãos do Estado (em sentido amplo) estão submetidos às normas e princípios hierarquicamente superiores da Constituição”. In Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume II, 4.ª Edição Revista, pág. 797-798.

Assim, no caso em apreço não há manifesta exactidão em face da reclamação do ora Recorrente, porquanto, a fls. 182 dos autos, o tribunal ad quem, alude que “o acervo de documentos carreados ao processo, conquanto pertinentes do procedimento administrativo não constitui processo disciplinar, nos termos do artigo 25.º a 38.º, todos do Decreto – Lei n.º 33/91, de 26 de Julho”.

Por conseguinte, enfatiza-se que o processo que culminou com a demissão do então funcionário Claudino do Sacramento Tavares, não vem junto ao processo disciplinar precedente legalmente indispensável e exigível para a aplicação da pena ou medida disciplinar, como é a demissão.

Embora seja líquida a ideia segundo a qual o regime disciplinar visa, entre outros aspectos, a manutenção da disciplina no trabalho, assegurando uma melhor prossecução do interesse público, os funcionários públicos gozam de garantias previstas na CRA e na legislação aplicável, pelo que o poder disciplinar não deve ser exercido de forma abusiva e em desrespeito dos direitos legalmente protegidos dos particulares, nos termos do n.º 3 do artigo 198.º da CRA e do artigo 16.º do CPA.

Deste modo, esta magna Corte Constitucional não comunga com a ideia do Recorrente, segundo a qual, o aresto recorrido terá violado a prossecução do interesse público a que a administração se encontra adstrita.


c) Da violação do dever de aplicação de normas e princípios constitucionais vigentes à data dos factos (Princípio da Legalidade)
Para melhor sustentar a sua defesa e o pedido de inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, o Recorrente traz à colação a fundamentação segundo a qual, a decisão recorrida não atendeu as normas e princípios constitucionais vigentes à data dos factos, ou seja, à data da prática do acto impugnado não se encontrava em vigor a CRA, a qual foi promulgada a 5 de Fevereiro de 2010.
A propósito, importa elucidar o Recorrente, nas palavras de Jorge Bacelar Gouveia “A nova Constituição de 2010 manteve a identidade constitucional inaugurada em 1992, a qual não foi tolhida e dela se apresentando como um aprofundamento jurídico-constitucional. Porquê? Por várias razões. Essa é uma conclusão que se retira logo do facto de a Constituição ter sido limitada pela LCRA através de um severo regime de hiper-rigidez constitucional, pela aposição de um conjunto forte de limites ao correspondente poder constitucional, precisamente designado de revisão constitucional”. In Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, 2017, pág. 237.
Como é sabido, a Constituição da República é a expressão superior do interesse público, é a lei suprema de um Estado. Por conseguinte, ela consagra direitos, liberdades e garantias fundamentais para os cidadãos.
A sua supremacia é inderrogável. Com efeito, alude o n.º 3 do artigo 6.º da CRA, que “As leis, os tratados e os demais actos do Estado, dos órgãos do poder local e dos entes públicos em geral só são válidos se forem conformes à Constituição”.
Deste modo, via de regra, todos os actos resultantes dos órgãos jurisdicionais, quer anteriores quer presentes, são praticados em conformidade com a Constituição da República.
Desta feita, compete-nos referir que as Constituições são susceptívies de várias mutações, todavia, existem normas inderrogáveis aquando do surgimento de revisões constitucionais, como é o caso das normas respeitantes ao direito do trabalho. A esse respeito, Waldemar Freitas assevera que, “A Constituição tem de estar em consonância com a realidade social de cada país, e por este facto há necessidade de ela não se fechar à evolução da sociedade. As alterações às constituições são necessárias, dado que visam melhorar as normas constitucionais acompanhando desta forma a evolução da sociedade”. In Limites Materiais da Revisão Constitucional no Direito Angolano, Universidade Católica, Editora Lisboa 2021, pág. 25.
O argumento do Recorrente, segundo o qual, quando o acto impugnado foi praticado, não se encontrava em vigor a CRA, não colhe, porquanto o direito ao trabalho contempla o núcleo duro da Constituição, ou seja, o direito ao trabalho está contemplado no catálogo ou sistema de direitos fundamentais da Lei Constitucional de 1992 que, por conta dos limites materiais de revisão, não foram restringidos na Constituição de 2010.
Ainda assim, compulsados os autos a fls. 277 e seguintes, constata-se que a norma evocada pelo Recorrente não constitui o principal fundamento para a improcedência do seu recurso pelo Plenário do Tribunal Supremo.
Logo, esta Corte Constitucional, não comunga da argumentação inerente à derrogabilidade da norma constitucional laboral, pelo que se entende que não foi violado o dever de aplicação de normas e princípios vigentes à data dos factos.
Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Julho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 23 de Maio de 2023.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

 

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente e Relatora) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva 

Dr. Gilberto de Faria Magalhães

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lima d’A. B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor (Declarou-se impedido)

Dr. Vitorino Domingos Hossi