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ACÓRDÃO N.º 821/2023

 

PROCESSO N.º 927-A/2021
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

António Rodrigues de Carvalho Júnior, com os demais sinais de identificação nos autos, veio ao Tribunal Constitucional impetrar Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade do Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo n.º 714/18, que julgou improcedente o pedido de impugnação da decisão da 3ª Secção da Sala de Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, no âmbito de uma Acção de Conflito Laboral, interposta contra a SONANGOL, EP.
No Aresto ora impugnado, a Câmara do Trabalho decidiu manter a decisão da primeira instância, que julgou procedente a excepção de prescrição de créditos laborais e demais direitos reclamados pelo aqui Recorrente, o que determinou a absolvição da SONANGOL, EP deste pedido.
Em sede desta Corte Constitucional, o Recorrente, inconformado, considera que o Acórdão posto em crise enferma do vício de inconstitucionalidade, por violar o direito à remuneração, o princípio da conformidade das decisões judiciais com a constituição e com a lei e o princípio da Supremacia da Constituição e da legalidade, reflectidos, respectivamente, no artigo 76.º, no n.º 1 do artigo 177.º e artigo 6.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA).
Este entendimento é sustentado nas alegações submetidas a este Tribunal Constitucional, em que o Recorrente, em síntese, se pronuncia no sentido seguinte:
1. O Tribunal recorrido precipitou-se ao escusar-se conhecer outras matérias que não a prescrição, pois que o conhecimento de tais matérias seria determinante para saber se houve ou não prescrição do direito que o Recorrente pretendia ver reconhecido.

2. Era imprescindível que o Tribunal Supremo apreciasse a questão que visava saber se a relação laboral entre o apelante (ora recorrente) e a apelada (SONANGOL, EP) se encontrava ou não suspensa e se houve ou não extinção da relação jurídico laboral.

3. Só seria possível aferir se os direitos que o Recorrente exige estão ou não prescritos depois de aferida a questão de saber se o contrato de trabalho celebrado entre o recorrente e a requerida (SONANGOL, EP) caducou em Dezembro de 2007 ou se perdurou até ao ano de 2013 e 2014.

4. Ficou patente na decisão proferida em 1ª Instância que esse contrato não caducou, pois, como afirma erroneamente o Acórdão que ora se impugna, o referido contrato havia sido renovado automaticamente a 8 de Dezembro de 2007.

5. Desde essa data, o contrato foi-se renovando de seis em seis meses, porquanto ao Recorrente não mais foi comunicada qualquer cessação do contrato até ao ano de 2013, altura em que, indignado pelos salários e subsídios em atraso, começou a exigir os referidos rendimentos junto das autoridades de direito.

6. Prova de que o contrato perdurou para além do ano de 2007 consiste também no facto de, em função de negociações mantidas entre a Recorrente e a direcção da SONANGOL, EP, esta ter pago USD 150 000,00 (cento e cinquenta mil dólares norte americanos) ao Recorrente como parte dos salários e subsídios referentes ao ano laboral de 2010.


7. Estando provado que o Recorrente deu entrada do seu requerimento de tentativa de conciliação a 5 de Setembro de 2013 e que a relação laboral perdurou até ao ano de 2014, então é facto que o recorrente tem direito a receber créditos que eram exigíveis nos anos de 2012 e 2013, pois estes créditos não estavam prescritos à data da sua reivindicação judicial (5 de Setembro de 2013).


8. O Tribunal Supremo, ao assumir a narrativa da decisão proferida em 1ª Instância, segundo a qual o contrato de trabalho celebrado entre o Recorrente e a requerida (Sonangol EP) não perdurou até ao ano de 2013/2014, apesar da existência de provas, proferiu uma decisão violadora de direitos e normas constitucionais e, por isso, inconstitucional.

9. O Acórdão ora impugnado manteve uma decisão que usou critérios arbitrários para valorizar algumas provas, desprezando completamente outras mais fortes por serem documentais e de testemunhas que vivenciaram os factos.


10. O Tribunal recorrido confirmou uma decisão que violou lei expressa, designadamente o direito à remuneração pelos serviços prestados, previsto no artigo 162.º da Lei Geral do Trabalho em vigor à data dos factos (Lei n.º 2/00, de 11 de Fevereiro) e violou regras sobre a prescrição de créditos, prevista no artigo 187.º desta mesma lei.

11. O Acórdão que aqui se impugna vetou ao Recorrente um direito legítimo e constitucionalmente protegido, o direito à remuneração e seu corolário, o direito a não ser privado da mesma, violando assim direitos constitucionais, na medida em que, nos termos do n.º 2 do artigo 76.º da CRA, todo o trabalhador tem direito à formação profissional, justa remuneração, descanso, férias, protecção, higiene e segurança no trabalho.

12. Sendo que o n.º 1 do artigo 177.º da CRA dispõe que os tribunais garantem e asseguram a observância da Constituição, das leis e demais disposições normativas vigentes (…) e que o n.º 2 do artigo 6.º também da CRA diz que o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis, resulta que as normas de direito constitucional constituem uma lei superior, o que implica a conformidade de todos os actos dos poderes públicos com a Constituição, que está no vértice do sistema jurídico de Angola, sob pena de serem considerados inconstitucionais.

Em face do acima expendido, o Recorrente termina pedindo que o Tribunal Constitucional declare a inconstitucionalidade do Acórdão objecto do presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade e que, consequentemente, reconheça os seus direitos.
O processo foi à vista do Ministério Público, que pugnou pelo não provimento do Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, considerando na sua promoção o seguinte: “(…) atento ao Acórdão recorrido depreende-se que o mesmo escusou-se de analisar muitas outras questões que o próprio acórdão tinha em pauta no seu objecto, porque considerou provada a caducidade do contrato de trabalho e a prescrição do prazo para requerer o pagamento de todos os créditos laborais que eram devidos ao Recorrente.
Por esse facto, o Acórdão recorrido julgou, a nosso ver bem, prejudicadas as demais questões a analisar, por estarem intimamente ligadas com aquelas duas anteriores.
É que, se provado que o Recorrente não aproveitou o prazo legal para reclamar o pagamento dos seus créditos e direitos e se a relação jurídico-laboral cessou, parece-nos que, de facto, não faz sentido analisar todas as demais situações daí decorrentes, cuja existência pressupõe a manutenção da relação jurídico-laboral e a capacidade activa de demandar créditos e direitos do Recorrente.
O Acórdão recorrido fundamentou de forma clara as razões pelas quais não conheceu das demais situações, assim como sustentou legal, doutrinariamente e com base na livre apreciação da prova todas as posições que tomou.
Não vemos, por isso, qualquer violação do princípio da legalidade que, como já referimos, encabeça os demais direitos e princípios alegadamente violados na óptica do recorrente, porquanto o acórdão recorrido observou o disposto na lei e na Constituição”.
Colhidos os vistos cumpre, agora, apreciar e decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é, nos termos alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que violem princípios, direitos, garantias e liberdades, previstos na Constituição, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente cabíveis.
A decisão proferida pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo esgota, deste modo, a cadeia recursória em sede de jurisdição comum.

III. LEGITIMIDADE

A legitimidade processual decorre do interesse directo em demandar e ou contradizer, tal como estatui o n.º 1 do artigo 26.º do Código do Processo Civil, CPC, aplicado subsidiariamente aos processos sujeitos à jurisdição do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.
Estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC que têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade o Ministério Público e as pessoas, que de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.
O Recorrente é parte vencida no processo cujo Acórdão é objecto da presente sindicância. Tem, como tal, legitimidade processual activa para recorrer.

IV. OBJECTO

Constitui objecto deste recurso verificar a alegada inconstitucionalidade do Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo n.º 714/18, por violação de princípios, direitos e garantias previstos na Constituição da República de Angola.


V. APRECIANDO

O presente pedido de inconstitucionalidade encontra fundamento na alegada tomada de decisão judicial, em sede do recurso de Apelação, ao arrepio do estabelecido nas normas legais aplicáveis à contenda laboral submetida ao reexame da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, o que, em face da Supremacia da Constituição, do princípio da legalidade e na perspectiva do Recorrente, configura violação ao disposto no n.º 2 do artigo 6.º, no n.º 1 do artigo 177.º e, consequentemente, no n.º 2 do artigo 76.º, todos da Constituição da República de Angola.

Vejamos, assim, em que medida assistirá ou não razão ao Recorrente.

Da presente sindicância resulta que na génese do recurso para o Tribunal Supremo esteve uma Acção de Conflito Laboral, julgada pela 3ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, ao abrigo do Processo n.º 215/014-12, em que o Recorrente pediu a condenação da SONANGOL, EP no pagamento, entre outras remunerações, de salários, subsídios legais e benefícios de assistência médica e medicamentosa referentes ao período compreendido entre Junho de 2007 a Junho de 2014.

Conforme os autos, o vínculo laboral estabelecido com a entidade empregadora, nesse espaço temporal, havia resultado de um contrato a termo, renovável de seis em seis meses, e celebrado na altura em que o Recorrente passou à reforma (Junho de 2007). Segundo o alegado, nos termos do referido contrato, este recebeu apenas os salários relativos aos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2007, bem como USD 150 000,00 (cento e cinquenta mil dólares norte-americanos), pagamento referente a dívidas dos anos anteriores, ficando por liquidar uma quantia acima de Kz 42 000 000,00 (quarenta e dois milhões de Kwanzas).

Tendo em conta os factos trazidos ao processo e a prova produzida e livremente valorada, o Tribunal de 1ª Instância pronunciou-se no sentido de o referido contrato a termo ter deixado de vigorar em 2008 (8 de Junho de 2008), na medida em que a comunicação sobre a sua cessação, feita oralmente, ocorreu um mês depois de o contrato ter sido renovado, automaticamente, pelo período de seis meses.

Com fundamento na cessação do contrato de trabalho a termo e na prescrição dos direitos reclamados pelo aqui Recorrente, excepção peremptória invocada pela SONANGOL, EP na sua contestação, aquele Tribunal, ao abrigo do estabelecido no artigo 300.º da LGT, aplicável à data dos factos, decidiu julgar prescritos os referidos direitos, absolvendo, deste modo, a SONANGOL, EP do pedido submetido a juízo.

Na sua sentença pode ler-se o seguinte: “(…) O requerente deu entrada do pedido de tentativa de conciliação no dia 05 de Setembro de 2013, aonde vem pedir os salários e subsídios legais em falta dos meses de Janeiro de 1989 até Dezembro de 1994; os salários e subsídios do período de Janeiro de 2007 a Junho de 2014 e os demais salários e subsídios até a decisão final. Ora, partindo do princípio de que o requerente foi comunicado da cessação do contrato no primeiro dia útil do mês de Janeiro de 2008, o mesmo tinha o prazo de um ano para exigir judicialmente todos os seus créditos laborais. Isto é, o requerente tinha até ao primeiro dia útil do ano de 2009 para requerer judicialmente os seus créditos laborais. O requerente ao não exigir judicialmente os seus créditos laborais dentro do prazo de um ano, a contar da data de cessação do contrato, perdeu todos os seus créditos e direitos resultantes da execução e da cessação do contrato de trabalho, por prescrição. A prescrição é uma excepção peremptória e traduz-se num facto extintivo do direito do autor e importa a absolvição total do pedido nos termos do artigo 496.º, alínea b), conjugado com o artigo 493.º, n.º 3, todos do CPC”.

Ora, a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, ao reapreciar a decisão, alicerçada no objecto que delimitou para o efeito, identificou, além de outras, a questão de saber se havia ou não lugar à prescrição dos créditos laborais reivindicados pelo aqui Recorrente, tendo acolhido os fundamentos do Tribunal de 1ª Instância. Ou seja, esta Câmara considerou prescrito o direito aos referidos créditos laborais, nos termos do artigo 300.º da LGT, vigente à data, acentuando que, sendo a prescrição uma forma de extinção do direito pelo seu não exercício durante um dado lapso de tempo fixado na lei e variável de caso para caso, dela só se encontram excluídos os direitos indisponíveis e aqueles que a lei expressamente isenta dela (é o caso dos direitos de propriedade, uso, habitação, usufruto, superfície e servidão), artigo 298.º, n.ºs 1 e 3 do CC.

Na sua fundamentação, aquela Câmara aduz, ainda, o seguinte: “Constata-se da sentença recorrida (fls. 299) e do ponto 5 das conclusões das alegações, que a relação jurídico-laboral existente entre as partes cessou, efectivamente, em Janeiro de 2008, isto porque, seguidamente, as partes celebraram contrato de trabalho a termo, contando, com efeito, o tempo da sua vigência para a antiguidade do trabalhador, nos termos do n.º 4 do artigo 218.º da LGT. É, portanto, a caducidade deste contrato de trabalho, já não a caducidade por razões de idade, mas pelo decurso do tempo, que aconteceu a 2 de Janeiro de 2008, que levanta o problema de saber se, aquando da instauração da acção judicial, a 5 de Setembro de 2013, os créditos laborais estavam ou não prescritos” (vide fls. 380).

Nesta senda e como se retira no Acórdão recorrido, a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo concluiu depreender-se dos autos que o Apelante (aqui Recorrente) trabalhou para a Apelada (SONANGOL, EP) até 2 de Janeiro de 2008, pelo que tinha até 1 de Janeiro de 2009 para requerer o pagamento de todos os créditos que lhe eram devidos, nos termos do artigo 300.º da LGT, à data em vigência. Acrescenta ainda que, não sendo a prescrição de conhecimento oficioso, não podia o Tribunal supri-la ex officio, de conformidade com o artigo 303.º do Código Civil.

Esta Câmara pronunciou- se, igualmente, sobre a questão de saber se a decisão do Tribunal de 1ª Instância seria nula tanto por falta de fundamentação, como pelo facto de existir oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos, respectivamente, das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil (CPC).

Relativamente à alegada falta de fundamentação da alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, partindo da premissa que a nulidade da sentença por falta de fundamentação se verifica quando o Tribunal julga procedente ou improcedente um pedido, mas não especifica os fundamentos de facto e de direito que foram relevantes para decisão, firmou entendimento em sentido contrário ao do que foi arguido pelo aqui Recorrente. Lê-se, assim, no seu aresto que se verifica, a fls. 294 a 305, que a sentença recorrida contém a devida e necessária fundamentação da decisão (…) e que o Meritíssimo Juiz a quo apresentou de forma clara, objectiva e pedagógica as razões que o levaram a decidir como decidiu (…), pelo que, deste ponto de vista, o Tribunal andou bem (…).

Quanto à alegada nulidade da sentença da 3ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, por oposição entre os fundamentos e a decisão (alínea c), do n.º 1 do artigo 668.º do CPC), o juízo decisório reflectido no Acórdão objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é também no sentido de não colher tal alegação. E isto levando em linha de conta que a decisão sobre a procedência da excepção da prescrição do direito do aqui Recorrente assentou em fundamentação cuja ratio conduziu logicamente à decisão prolactada pelo Tribunal a quo.

Ante o que se extrai do Acórdão posto em crise e à luz dos parâmetros jurídicos constitucionais, impor-se-á aferir se este aresto enferma, efectivamente, de vício de inconstitucionalidade por violar o princípio da Supremacia da Constituição, o princípio da legalidade e, consequentemente, o direito fundamental ao trabalho, na dimensão do direito à remuneração.

Assim, afigura-se evidente que no cerne do presente pedido de inconstitucionalidade está, na visão do Recorrente, o facto de a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo ter aderido à narrativa da 1ª Instância em matéria da prescrição dos créditos laborais, sem levar em consideração a prova que foi produzida nos autos, privilegiando as provas mais fracas em detrimento das mais fortes.

Ora, sendo certo que a prova constitui um elemento determinante da decisão judicial, sentença ou acórdão, é essencial para a formação da livre convicção do juiz a busca da verdade material ou até mesmo da verdade meramente formal. Porém, em sede do Tribunal Constitucional, por força dos seus poderes de cognição, não procede a um juízo de valoração fáctico concreto da controvérsia judicial nos termos em que se processa no plano da jurisdição comum. Tal significa que não cabe a esta Corte Constitucional sindicar o processo de formação da livre convicção do Tribunal, em face dos factos tidos como provados e não provados, desde que o conteúdo da decisão judicial reflicta, lógica e racionalmente, dentro das balizas legais e do direito, a opção por um dado juízo decisório, validamente controlável e justificável.

E nesta medida, perante o que os autos reportam e o que acima se espelha, considera este Tribunal Constitucional que não se materializa qualquer violação ao princípio da legalidade.

E isto quer na perspectiva da conformidade com a lei ordinária aplicada ao litígio, quer na consequente perspectiva de conformação com o princípio constitucional da legalidade o que, igualmente, colocaria em causa o princípio da Supremacia da Constituição, atendendo a que o acto jurídico público, (in casu, a decisão judicial) tem de assentar, formal e materialmente, num preceito determinado, que, por seu turno, se funda noutro de grau superior. MIRANDA, Jorge, In Teoria do Estado e da Constituição, 3ª Edição revista e actualizada, Editora Forense, pág. 444.

Na verdade, a Constituição representa a ordem jurídica de máximo grau de uma dada comunidade. É, portanto, a Lei Fundamental que, consagrando o conjunto de normas fundamentais de um determinado Estado, está colocada no vértice do sistema jurídico, a que confere validade, afirmando, assim, a sua supremacia. Tal determina que todas as situações jurídicas, positivas ou omissivas, se conformem com os princípios e normas nela estabelecidos, radicando, nesta acepção, o princípio da supremacia da Constituição, que se encontra positivado no n.º 1 do artigo 6.º e densificado no artigo 226.º, ambos da Constituição da República de Angola.

O princípio da legalidade, por seu lado, ao encontrar-se igualmente positivado na Constituição, resultará violado na situação em que tenha sido praticado acto que atente contra o princípio, o que configurará, simultaneamente, acto desconforme com a Lex Mater, posto que é desta que também emana a obrigação de os poderes do Estado subordinarem a sua acção à lei (além, obviamente da subordinação à Constituição). Aliás, como tem sido reiterado por este Tribunal Constitucional, o princípio vertido no n.º 2 do artigo 6.º e igualmente reflectido no n.º 1 do artigo 177.º ou, ainda, no artigo 175.º e no n.º 1 do artigo 179.º, todos da Constituição da República de Angola, assume-se como um dos pilares estruturantes do Estado democrático de direito, que se subordina à Constituição e se funda na legalidade.

Outrossim, figura como pressuposto da segurança jurídica e, consequentemente, da segurança social, sendo percebido como um princípio garantia de direitos e liberdades fundamentais e limitador da acção dos órgãos do poder público, obrigados que estão a agir dentro da esfera de competências fixada pelo legislador (vide o Acórdão n º 793/2022, disponível em https://tribunalconstitucional.ao/pt/acordaos/acordao-793-2022/).

Deste modo, e partindo da presunção de constitucionalidade de qualquer lei ou norma jurídica, o princípio da legalidade incorporará, implicitamente, no que à actuação do Tribunal diz respeito, a obrigatoriedade de concretizar a aplicação da lei ao caso concreto de forma a não colidir com a Constituição, enquanto normativo de escalão superior de um dado ordenamento jurídico.

Assim sendo, esta obrigação deve encontrar-se, igualmente, reflectida no dever de fundamentação da decisão judicial que, em si mesmo, é também compreendido como emanação do princípio da legalidade, como se lê no Acórdão em citação.

Ora, à luz da presente compreensão, entende este Tribunal Constitucional, como antes vislumbrado, que a decisão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, nos seus termos e fundamentos, não se afigura ferida de inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade, de consagração constitucional.

O aresto aqui em pauta sustenta, lógica e objectivamente, a reapreciação dos elementos de facto e de direito carreados ao processo que determinaram a aplicação, ao caso sub judice, da excepção peremptória da prescrição, de harmonia com o previsto no artigo 300.º da LGT, vigente à época.

Além da violação do princípio da legalidade, o Recorrente fundamentou, igualmente, o pedido de inconstitucionalidade do Acórdão impugnado na presente lide, alegando violação do direito ao trabalho, na dimensão do direito à remuneração, conforme estabelecido no n.º 2 do artigo 76.º da CRA.

O direito ao trabalho é, como sabido, um direito fundamental de natureza social, consagrado em vários instrumentos de direito internacional, como os da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (artigo 15.º), da Declaração Universal do Direitos Humanos (artigo 33.º) ou do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (artigo 6.º). Pressupõe, a igual que os demais direitos sociais, prestações positivas do Estado, de forma directa ou indirecta, tendencialmente aptas a proporcionar condições de vida dignas.

A tutela deste direito está, desta forma, associada à protecção da dignidade da pessoa humana que, quando formalmente acolhida no texto da Constituição, se transforma em princípio vinculante da actuação dos poderes públicos, além de não perder a sua qualidade de valor moral legitimador da força normativa da Constituição de um Estado de Direito material. In Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, pág. 51.

Por seu lado, o direito à retribuição, estabelecido por meio da relação contratual de trabalho e materializado pela via do pagamento do salário ou de outros dividendos, configura a premissa a partir da qual a protecção da dignidade da pessoa humana é assegurada. É a remuneração que permite, efectivamente, a subsistência do trabalhador e da sua família e define a sua qualidade de vida, recaindo sobre o empregador a obrigação de remunerar o seu empregado pelo trabalho prestado, mas não só.

Apesar de o direito ao trabalho comportar a dimensão de protecção, em que se ancora, enquanto posição jurídica fundamental, o direito de exigir dos poderes estatais protecção contra ingerências lesivas de terceiros, a apreciação da inconstitucionalidade da decisão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo por violação do direito à remuneração, tutelado no n.º 2 do artigo 76.º da CRA fica prejudicada pela prescrição do direito aos créditos laborais.

Nestes termos,


DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ACÓRDÃO PROLACTADO PELA CÂMARA DO TRABALHO DO TRIBUNAL SUPREMO, NA MEDIDA EM QUE NÃO SE VERIFICA A ALEGADA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ENUNCIADOS PELO RECORRENTE.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 06 de Junho de 2023.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

 Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira 

Dr. Gilberto de Faria Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dr. Simão de Sousa Victor