ACÓRDÃO N.º 824/2023
PROCESSO N.º 1014-D/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
Sismero Trindófolo José Manuel, Réu solto, com os demais sinais de identificação nos autos, veio ao Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolactado pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 3372/19.
O Recorrente foi acusado, pronunciado e condenado em primeira instância pela 3.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda na pena de 20 anos de prisão maior e multa de kz. 10 000,00 (dez mil Kwanzas) pela prática do crime de homicídio voluntário simples em concurso real com o crime de detenção ilegal de arma proibida, ao abrigo do Código Penal vigente à data dos factos.
Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal Supremo, tendo aquela instância confirmado, no mais, a decisão recorrida e alterado a medida da pena, atenuando-a para 16 anos de prisão pelo crime de homicídio simples e 4 meses de prisão e multa de kz 10 000,00 (dez mil Kwanzas) pelo crime de detenção ilegal de arma proibida, por estar em vigor, à data da apreciação dos autos, o novo Código Penal Angolano (CPA) que prevê para o crime de homicídio simples uma moldura penal mais favorável.
Aqui chegados, notificado para apresentar alegações, veio, a fls. 301 a 308, fundamentar a sua pretensão, em síntese, no seguinte:
1. A razão de ser do presente recurso é o douto Acórdão proferido, no dia 04 de Maio de 2022, pela 3ª. Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, em que se condenou o aqui Recorrente na pena de (16) dezasseis anos e (4) quatro meses de prisão e multa à razão de Kz. 10 000,00 (dez mil Kwanzas), com fundamento na prática dolosa do crime de homicídio simples, em concurso real heterogéneo com o crime de detenção ilegal de arma de fogo.
2. A referida decisão, em nosso entender, violou flagrantemente valores fundamentais do nosso ordenamento jurídico, nomeadamente os princípios da legalidade (n.º 2 do artigo 6.º), da presunção da inocência, de que é corolário o princípio do “in dubio pro reo” (n.º 2 do artigo 67.º), do acusatório (n.º 2 do artigo 174.º) e do processo justo e conforme (artigo 72.º), todos da Constituição da República de Angola, doravante abreviadamente designada por CRA.
3. Ficou provado nos autos, a fls. 5, que, com vista ao esclarecimento dos factos, o Chefe de Piquete de Investigação Criminal da Divisão de Polícia do Sambizanga, após ter tido conhecimento da existência de um cadáver no Banco de Urgência do Hospital Américo Boavida, deslocou-se até ao local do sucedido, tendo sido informado pelos populares que o autor do crime é um elemento afecto à Policia Nacional que, após aperceber-se de uma alegada “rixa de dois grupos composto por jovens que entre si arremessavam-se garrafas, pedras, perigando a integridade física dos transeuntes, o acusado empunhou a sua arma de fogo e na tentativa de dispersá-los, efectuou disparos no ar, tendo um escapulido e atingido a vítima que acabou por sucumbir”.
4. Neste diapasão, vêm, a fls. 27, 32, 34, 35, respectivamente, a mãe da vítima que atende pelo nome de Luísa João Francisco Dando, Raimundo Guilherme Domingos Sebastião, Mbemba Vicente António e Délio Eugénio Pedro Martins, todos declarantes nos presentes autos, afirmar a existência da sobredita rixa tal como sufraga a participação resultante da denúncia de populares.
5. Assim, esteve mal o Juiz dando como não provados os quesitos 4.º a 12.º, que afastam a existência de rixa, pois, vem desconsiderar as declarações prestadas pelos declarantes em clara violação aos princípios constitucionais que norteiam o mosaico constitucional.
6. O Tribunal Supremo proferiu a sua decisão de que ora se recorre extraordinariamente, nos mesmos termos inconstitucionais da sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, sem qualquer fundamentação de júri, chegando mesmo a fazer um facto non liquet constitucionalmente vedado aos tribunais, na medida em que foram ignorados todos os factos que afastam o dolo no caso, demonstrando manifesto atropelo à lei, isto porque limitou-se a arguir a inidoneidade do writ enquanto instrumento processual.
7. O Tribunal ad quem, devendo, de forma particular, aferir se no julgamento da matéria de facto, o princípio do in dubio pro reo foi ou não verificado, não o fez, simplesmente guiou-se pela matéria fáctica trazida pela primeira instância e as respostas dadas aos quesitos, ou seja, devendo valorar a prova, em abono ao princípio da legalidade.
8. Como pode o aqui Recorrente ser condenado pelo tipo legal de homicídio simples com uma moldura penal de 16 anos e quatro meses, sendo que o âmbito da sua actuação teve o seu alcance legal no artigo 31.º do Código Penal, tentando repelir uma agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos a este e a terceiros?
9. O Tribunal ad quem, com o Acórdão proferido, não traz à luz do dia qualquer elemento de prova que sustente a tese de que o Recorrente agiu com dolo directo de matar a vítima, ignorando todas as circunstâncias motivadoras e conexas ao caso, violando assim, o princípio da presunção da inocência.
10. O Acórdão recorrido não fixou em termos concretos e circunstanciais os actos praticados pelo Recorrente para a consumação do crime, para além da referência da narrativa vaga do iter criminis, não explicando a fundo as circunstâncias motivadoras do comportamento do Arguido, ou melhor, do elemento subjectivo, sendo este o critério determinante para subsunção do crime aos factos, portanto, sem por um lado avaliar a intensidade do dolo ou negligência do agente, como também, sem conhecer de que o referido comportamento se enquadra nas causas de justificação da ilicitude pois, somente quis o Arguido com aquele mesmo comportamento afastar um perigo real e iminente para salvaguarda do bem jurídico vida.
11. O julgamento, a que o Recorrente foi submetido e de que resultou a sua condenação, é um exemplo flagrante de que muita dúvida pairou sobre a veracidade dos factos a si imputados, pelo que se verificou, sim, a violação flagrante do princípio in dubio pro reo, ou seja, da presunção da inocência. No caso, não se conseguiu descortinar sobre o elemento subjectivo e as circunstâncias motivadoras e circunstanciais do facto típico.
12. O Tribunal ad quem ao decidir como decidiu, acompanhando a decisão do Tribunal a quo, baseando-se fundamentalmente em prova indiciária para condenar o Recorrente, pois a quem coube acusar não apresentou provas, não caucionou um juízo de probabilidade próximo da verdade material, em violação ao princípio do direito a um processo justo e conforme (artigo 72.º CRA).
13. Mais uma vez nesse quesito, o Tribunal a quo andou mal sufragado pelo Acórdão recorrido, pois a conduta do Recorrente não pode ser considerada com o grau de censurabilidade patente na decisão condenatória, por lhe faltar o elemento subjectivo do tipo, o dolo.
14. O Acórdão proferido pelo Tribunal Supremo viola o princípio constitucional da legalidade Penal (artigos 6.º e 175.º da CRA), pois para verificar qualquer acto como crime, devem os seus elementos constitutivos estar preenchidos, quanto ao Recorrente, no caso em apreço.
15. Com esta atitude o Tribunal ad quem, não só viola gravemente o dever de fundamentação, na medida em que ignora os argumentos de defesa na formação da sua convicção, fazendo suas as palavras do Ministério Público.
16. Como se pode ver no Acórdão recorrido, o próprio Tribunal manifesta dúvidas pelo que embarca em suposições como se de uma peça de ficção se tratasse. Ora bem, se o juiz não for elucidado pelos autos, restará apenas a dúvida e, em caso de dúvida, deverá, por imperativo constitucional, promover imediatamente a liberdade do arguido, aplicando outra medida punitiva se julgar necessário.
17. Se tivesse o Tribunal a quo observado o princípio do dispositivo, que de resto é um imperativo constitucional, consagrado no n.º 3 do artigo 26.º, e como tal de cumprimento obrigatório, perceberia pela mera análise dos factos narrados pela defesa e comprovados numa simples análise dos autos, que a sanção penal aplicada constitui-se absolutamente desnecessária, haja em vista que outra responsabilidade penal cumpriria os fins visados, o que faz dela excessiva e desproporcional ante a gravidade dos factos.
18. Uma decisão judicativa-decisória da concreta realização do direito, importa que seja condizente com os direitos fundamentais do Recorrente. No caso, a decisão não se reveste de fundamentação, uma vez que justifica, rectius, não explica os pressupostos de facto e de direito que lhe são subjacentes; ela se consubstancia numa clara ofensa ao Princípio da Fundamentação consagrado no n.º 3 do artigo 200.º da CRA.
Termina, o Recorrente, pedindo que seja procedente o presente recurso e, em consequência, julgada inconstitucional a decisão recorrida por contender com os princípios e normas acima evocados.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º, e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
Nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC, conjugado com a alínea b) do n.º 1 do artigo 463.º do Código de Processo Penal Angolano, dispõe, o Recorrente, de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por ter ficado vencido no âmbito do Processo n.º 3372/19, que correu os seus termos na 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem como objecto analisar se a decisão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolactada no âmbito do Processo n.º 3372/19, que confirma a decisão de primeira instância e julga improcedente o recurso interposto, é inconstitucional por ofender os princípios do julgamento justo e conforme, do in dubio pro reo, da legalidade e o da proporcionalidade.
V. APRECIANDO
No caso vertente, foi o Recorrente, em autos de querela, acusado, pronunciado e condenado, por Acórdão prolactado a 7 de Fevereiro de 2019, pela 3.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, na pena de 20 anos de prisão maior e multa de kz 10 000,00 (dez mil Kwanzas) pela prática do crime de homicídio voluntário simples, em concurso real com o crime de detenção ilegal de arma proibida.
Desta decisão interpôs recurso o arguido (fls. 202, 207 a 220) e o Ministério Público, por imperativo legal (fls. 206), sem ter apresentado alegações, no entanto, dispensáveis, nos termos do n.º 5 do artigo 690.º do Código de Processo Penal vigente à data dos factos.
Apreciados os autos, a 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, por Acórdão prolactado a 4 de Maio de 2022, alterou a medida da pena aplicada, condenando o então arguido, ora Recorrente, na pena de 16 anos de prisão pelo crime de homicídio simples e 4 meses de prisão e multa de kz 10 000,00 (dez mil Kwanzas) pelo crime de detenção ilegal de arma proibida, por estar em vigor, à data, o novo Código Penal, aprovado pela Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro, que prevê uma moldura penal mais favorável ao arguido, relativamente ao crime de homicídio simples, confirmando, no mais, a decisão tida em primeira instância.
Inconformado, o Recorrente interpôs o presente recurso, porquanto, na sua perspectiva, ao contrário do que ficou sedimentado nas instâncias recorridas, praticou o ilícito que lhe é imputado ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude – a legítima defesa – e, por este motivo, ao ter sido condenado por um crime doloso, tal decisão ofende os princípios do julgamento justo e conforme, do in dubio pro reo, da legalidade e da proporcionalidade.
Assistirá razão ao Recorrente?
Veja-se:
1. Sobre o Direito a Julgamento Justo e Conforme e o Dever de Fundamentação
O conceito de processo equitativo é um conceito amplo, susceptível de diversificada concretização, cuja densificação decorre sobretudo da jurisprudência sobre a matéria.
Deste modo, conforme ficou consignado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 650/2020 (disponível in www.tribunalconstitucional.ao), o princípio do julgamento justo e equitativo é um “princípio fundamental de qualquer sociedade democrática, profundamente imbricado com o Estado de Direito (rule of law), não havendo fundamento para qualquer interpretação restritiva, e que visa, acima de tudo, defender os interesses das partes e os próprios da administração da justiça para que os litigantes possam apresentar o seu caso ao tribunal de forma efectiva. Tem como significado básico que as partes na causa têm o direito de apresentar todas as observações que entendam relevantes para a apreciação do pleito, as quais devem ser adequadamente analisadas pelo tribunal, que tem o dever de efectuar um exame criterioso e diligente das pretensões, argumentos e provas apresentados pelas partes e que a justeza (fairness) da administração da justiça, além de substantiva, se mostre aparente (justice must not only be done, it must also be seen to be done).
É, na verdade, afirmam Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, “um pressuposto do Estado democrático e de direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente, que deve assegurar um julgamento público e num prazo razoável, bem como as garantias de defesa material”. In Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, FDUAN, 2014, pág. 398).
No caso dos autos, alega o Recorrente que o Acórdão recorrido violou o princípio do julgamento justo e conforme por não estar devidamente fundamentada a decisão de o condenar pelo crime de homicídio simples, na medida em que, resultam da prova carreada aos autos factos que afastam o dolo da acção, tendo sido praticado o ilícito que lhe é imputado no intuito de repelir uma agressão actual e ilícita, isto é, ao abrigo de um dos tipos justificativos da ilicitude.
Dispõe o n.º 4 do artigo 110.º do Código de Processo Penal Angolano (CPPA), que os actos decisórios proferidos sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentados, indicando-se as razões de facto e de direito que justificam a decisão.
Esta fundamentação, suscitada pela controvérsia e pela dúvida, deve incidir sobre a explicitação dos motivos que levaram o julgador a dirimir a controvérsia no sentido em que o fez. A fundamentação, expressão da legitimidade de exercício jurisdicional, deve satisfazer este requisito, ou seja, deve ser a necessária a explicitar as razões da decisão enquanto escolha e a suficiente a que essas razões resultem patentes para os intervenientes processuais e para a sociedade. Ou seja, não impõe uma enumeração exaustiva de todas as soluções possíveis, mas antes se basta com indicação das determinantes que a fundam e que, simultaneamente, arredam outras possibilidades.
É pacífica a jurisprudência (veja-se, entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 662/2021 e 702/2021) no sentido de que só a absoluta falta de fundamentação, não apenas a sua insuficiência, determina a nulidade da decisão, e, consequentemente, a inquine por violação do direito a julgamento justo e conforme. Deve ser uma falta absoluta à qual se assimila a fundamentação que não permita descortinar as razões de decidir, o que se impõe face à razão de ser do dever de fundamentação.
Ora, o que a fundamentação visa, é assegurar a ponderação do juízo decisório e permitir às partes – no caso, o Recorrente – o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a opção reactiva (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos.
Conforme elucida J. J. Gomes Canotilho, a fundamentação que se impõe às decisões dos tribunais visa assegurar, essencialmente: “(1) o controlo da administração da justiça; (2) exclusão do carácter voluntarístico e subjectivo do exercício da actividade jurisdicional e a abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa dos juízes; (3) melhor estruturação dos eventuais recursos, permitindo às partes em juízo um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios das decisões judiciais recorridas”. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina Editora, 2003, pág. 667.
Revertendo ao caso dos autos, a falta de fundamentação evocada pelo Recorrente baseia-se no facto de, na sua perspectiva, a decisão não ter sido suficientemente convincente, dado que, tal como afirmado por ele, “a decisão recorrida não traz à luz do dia qualquer elemento de prova que sustente a tese de que o Recorrente agiu com dolo directo de matar a vítima, ignorando todas as circunstâncias motivadoras e conexas ao caso”.
Todavia, compulsados os autos, constata-se, a fls. 252-255, que o Tribunal a quo, na sua fundamentação de facto, extraiu o elemento subjectivo do tipo, qualificando a acção do Recorrente como dolosa, isto é, praticada com a intenção de matar.
Consignou-se no aresto recorrido que o Recorrente, ao ter efectuado o disparo que ceifou a vida da vítima, não quis apenas colocar termo à confusão que presenciara, porque “se o objectivo fosse apenas dispersar a confusão, teria ficado pelos dois primeiros disparos, aliás, os jovens já tinham fugido em debandada do local após os disparos efectuados pelo arguido. Não satisfeito, o arguido perseguiu os jovens, sem qualquer razão aparente, com a arma de fogo que detinha sem licença, e efectuou um terceiro disparo, à queima-roupa, que atingiu a vítima na região do tórax e, caído ao chão, esvaiu-se em sangue até conhecer a morte, sem que o arguido prestasse socorro, colocando-se em fuga”.
Desta fundamentação, embasada, concretamente, pela resposta aos quesitos n.ºs 6-10 e 12-15 (fls. 181 a 185), foi possível criar a convicção no julgador de que se verificava no caso dos autos o elemento volitivo da acção, isto é, o Recorrente praticou o homicídio com dolo.
Atente-se, no entanto, que, em virtude da confissão parcial do arguido, ora Recorrente (fls. 26, 27 e 161), a questão controvertida nos presentes autos cingia-se apenas em analisar se o Recorrente, ao efectuar os disparos, pretendia repelir uma eventual rixa desencadeada pelo grupo em que se encontrava a vítima e outro grupo rival, o que não ficou provado no caso dos autos.
Da resposta aos quesitos, deu-se por não provados a alegada rixa (quesito 6), o perigo iminente para a vida e integridade física do Recorrente e terceiros (quesito 7), o porte de arma de fogo pela vítima (quesito 17), o uso de cacos, garrafas e catanas pelos membros do grupo da vítima (quesito 8).
Por sua vez, deu-se por provado que o Réu agiu com intenção de tirar a vida da vítima (quesito 22), pois, na execução do tiro fatal, ele perseguia a vítima e os seus amigos (quesito 19), que corriam dispersos em função dos disparos previamente efectuados pelo Réu (quesito 14).
Deste modo, conclui-se que a decisão recorrida está devidamente fundamentada, conforme o disposto no artigo 417.º do CPPA, tendo-se extraído dos elementos de facto carreados aos autos e dados como provados o elemento volitivo que serviu de base à condenação do Recorrente pela prática do crime de homicídio simples, na medida em que não ficaram provados factos que justificassem a legítima defesa evocada pelo Recorrente.
O facto de considerar uma decisão injusta, não a torna, necessariamente, inconstitucional por violação do princípio do julgamento justo e conforme.
Assim, quanto a este ponto improcede o recurso.
2. Sobre o Princípio do In Dubio Pro Reo
Alega o Recorrente que a decisão revidenda ofendeu o princípio do in dubio pro reo, porque no Acórdão recorrido o Tribunal manifesta dúvidas, embarcando em suposições como se de uma peça de ficção se tratasse, sem, no entanto, avaliar a intensidade do dolo ou negligência do agente, bem como reconhecer que o referido comportamento se enquadra nas causas de justificação da ilicitude, pois, somente quis o arguido com aquele comportamento afastar um perigo real e iminente.
O princípio do in dubio pro reo é corolário do princípio constitucional da presunção da inocência, previsto no n.º 2 do artigo 67.º da CRA, que dispõe o seguinte: “presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”. A norma assegura que nenhum cidadão seja considerado e tratado como culpado de ter cometido qualquer infracção ou delito, até que se esgotem todos os meios para a sua defesa, ou seja, até ao trânsito em julgado da sentença.
Nestes termos, verificar-se-á a ofensa deste princípio quando há uma formação prévia ou prematura de um juízo de certeza, relativamente aos factos imputados ao arguido, antes mesmo de a decisão transitar em julgado (sobre o princípio, vide, entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 725/2022).
Por sua vez, o princípio do in dubio pro reo, no campo processual penal, significa que num non liquet (questão que não está clara) este seja valorado pro reo, isto é, o princípio demanda que o tribunal, caso não logre a prova dos factos que constituem o objecto do processo, dê a acusação como não provada e, consequentemente, decida a favor do arguido.
Afirma, pois, que, quando existam dúvidas sobre as circunstâncias de facto relevantes para a condenação ou absolvição do acusado, assevera Karl Engisch, “o juiz há-de “presumir” a situação de facto que conduza a uma decisão mais favorável. Portanto, se existem dúvidas sobre a autoria, deve presumir-se que o acusado não foi autor do facto delituoso”. In Introdução ao Pensamento Jurídico e Discurso Legitimador, trad. de João Baptista Machado, 10.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2008, pág. 103.
No entanto, para o que ao caso importa, não se percebe ao certo a que propósito vem evocada a violação deste princípio pelo Recorrente. Da decisão recorrida não é possível aferir que o juiz da causa tenha ficado com dúvidas, além do razoável, que justificasse o julgamento de inconstitucionalidade à decisão recorrida por violação do princípio do in dubio pro reo.
Os factos dados como provados e que sustentam a condenação no caso vertente, arredam qualquer suspeição sobre o juízo de convicção do Tribunal, relativamente às circunstâncias motivadoras do tipo de que vem imputado o Recorrente. Ademais, como se disse, o arguido confessou os factos, discordando apenas do elemento volitivo da acção extraído pelo Ministério Público e pelo Tribunal a quo.
Portanto, quanto a este ponto, improcede também o presente recurso.
3. Sobre o Princípio da Legalidade
O princípio da legalidade tem consagração constitucional no n.º 2 do artigo 6.º da CRA, onde se determina que “o Estado se subordina à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”.
O princípio tem como fundamento o Estado democrático de direito e garante a materialização plena da justiça, pela exigência de conformação constitucional e legal dos actos dos órgãos do poder público e todos os entes privados (vide, entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 740/2022).
No âmbito do direito processual penal, o princípio reduz-se às máximas “nullum crimen, nulla poena sine lege” e, nisto centra-se a insatisfação do Recorrente, por entender que para uma acção ser considerada como crime, devem estar todos os seus elementos preenchidos, concretamente, a acção, tipicidade, ilicitude, culpa e imputabilidade.
Embora não seja cristalino, parece que o que o Recorrente questiona é a possibilidade de condenar-se um arguido por um crime doloso, quando, na sua perspectiva, entende não haver, no caso em concreto, este elemento volitivo, por ter praticado o ilícito ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude. Ou seja, alega o Recorrente que o Acórdão recorrido não observou o princípio da legalidade, uma vez que, por ter efectuado o disparo em legítima defesa, a sua acção não pode ser considerada como crime.
Os tipos justificadores ou causas de justificação são uma via definitiva de exclusão da ilicitude prima facie indiciada pela subsunção da acção concreta a um tipo incriminador, que valem para uma generalidade de situações independentes da concreta conformação do tipo incriminador em análise. Deste modo, uma acção relativamente à qual se verifique uma causa de justificação, em todas as suas exigências objectivas e subjectivas, constitui um facto lícito, tornando não punível o facto do autor.
Porém, tal como sucede com os factos que se subsumem a um determinado tipo legal, os factos que evidenciem uma causa de exclusão da ilicitude devem ser demonstrados nos autos, e estão sujeitos ao princípio da livre apreciação das provas, ínsito no artigo 147.º do CPPA, segundo o qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente. Por formar, o julgador, o seu juízo de certeza com base nos factos submetidos à sua apreciação, a lei confere a este, em regra, uma livre apreciação e valoração das provas.
No caso vertente, não ficou demonstrada nos autos, a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro evocada pelo Recorrente, nem sequer que a conduta do agente constituía o meio necessário para repelir a agressão, sendo que a alegada rixa entre grupos rivais e o porte de arma de fogo pela vítima foram dados como não provados na resposta aos quesitos (fls. 182-184).
Assim sendo, não se vislumbra na decisão recorrida a inconstitucionalidade imputada por se ter postergado o princípio da legalidade, na medida em que se verificam na decisão recorrida, em relação ao agente, ora Recorrente, todos os elementos do tipo de homicídio simples.
4. Sobre o Princípio da Proporcionalidade
Alega o Recorrente que, com uma análise cuidada aos factos narrados pela defesa, o Tribunal teria concluído que a sanção penal aplicada é absolutamente desnecessária, haja em vista que outra responsabilidade penal cumpriria os fins visados, o que faz dela excessiva e desproporcional ante a gravidade dos factos. Isto é, entende o Recorrente que há violação ao aludido princípio, por, na sua óptica, puder ser sancionado com uma pena mais branda, não fosse o “erro” do Tribunal em condená-lo pelo cometimento de um crime doloso.
Veja-se, a decisão revidenda encontra-se devidamente fundamentada, de facto e de direito, tendo sido, o Recorrente, condenado pelo cometimento do crime de homicídio simples atento à prova carreada e produzida nos autos. A pena concretamente aplicada ao Recorrente encontra-se balizada pela moldura penal abstracta prevista para o tipo de ilícito que lhe foi imputado, que é, em termos gerais, punido com pena de prisão de 14-20 anos.
Na verdade, alega o Recorrente ser a pena desproporcional, por entender que a ele não se deveria ter imputado o cometimento do crime na forma dolosa. Mas, não resultam dos autos elementos fácticos que arredem a inserção deste elemento volitivo à acção perpetrada pelo Recorrente.
Como se sabe, não tem, o Tribunal Constitucional, competência para sindicar o mérito ou a bondade das decisões recorridas, por não se tratar de uma terceira instância da jurisdição comum, cujas competências estão escalpelizadas nas disposições conjugadas dos artigos 181.º da CRA e 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho (com a redacção dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 24/10, de 3 de Dezembro), que são estritamente as de administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional.
É jurisprudência assente nesta Corte (vide, entre outros, os Acórdãos n.ºs 613/2020, 777/2022 e 791/2022), que não é competência deste tribunal aferir se o juiz “a quo” procedeu a uma correcta apreciação da prova.
A este propósito afirma Carlos Blanco de Morais: “Esta não é uma instância suprema de mérito, ou um Tribunal de super-revisão, não lhe compete aferir a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo…”. In Justiça Constitucional, TOMO II, O Direito do Contencioso Constitucional, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Lisboa, 2011, pág. 619.
No mesmo diapasão, assevera José de Matos Correia: “Este recurso não pode ser usado para solicitar ao Tribunal Constitucional a reanálise do conteúdo material da decisão tomada pelo tribunal "a quo". Se este deu razão a uma das partes no processo, o Tribunal Constitucional não pode em circunstância alguma, alterar tal decisão. O recurso deve ater-se, apenas, à dimensão da inconstitucionalidade, porque se destina a permitir que a jurisdição constitucional confirme ou infirme a decisão do tribunal "a quo" quanto a esse particular ponto”. In Introdução ao Direito Processual Constitucional, Universidade Lusíada Editora, 2011, pág. 161.
A decisão recorrida em nada afecta o núcleo essencial do princípio da proporcionalidade, porquanto a pena concretamente aplicada traduz-se, na perspectiva do julgador, no meio necessário, por ser o mais eficaz na concretização da finalidade imediata das penas e que consiste na prevenção geral e especial; adequado, por ser o meio idóneo à satisfação do referido fim, e proporcional em sentido estrito, pois, encontra-se uma justa medida entre a pena face ao fim visado, nos termos do artigo 40.º do CPA.
Deste modo, conclui este Tribunal que não se verifica na decisão recorrida a violação aos princípios da legalidade, do processo equitativo, do in dubio pro reo e da proporcionalidade alegados pelo Recorrente.
Improcede, nestes termos, a pretensão do Recorrente.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO.
Com custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 07 de Junho de 2023.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Simão de Sousa Victor