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ACÓRDÃO N.º 825/2023

PROCESO N.º 1031-A/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:


I. RELATÓRIO
Carlos Manuel de São Vicente, Recorrente com os demais sinais de identificação nos autos, por não se conformar com o Acórdão proferido na 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, sob o Processo n.º 6182/22, veio, ao abrigo do artigo 41.º, aplicável ex vi do disposto no n.º 1 do artigo 52.º, ambos da Lei do Processo Constitucional (LPC), aprovada pela Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por entender que o referido Acórdão padece de inconstitucionalidades.
O Recorrente corrigiu as alegações, conforme consta de fls. 7557 v a 7608, tendo concluído nos termos abaixo transcritos:
a) O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é a verificação da (in)constitucionalidade, ao abrigo do artigo 49.º, alínea a), da LPC, da decisão vertida no Acórdão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferida no âmbito do Processo n.º 6182/22, que negou provimento ao recurso da decisão final formulado pelo ora Recorrente e que, consequentemente, manteve a decisão que condenou o Arguido pela prática, em concurso de crimes, de um crime de peculato, p. p. pelo artigo 362.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, de um crime de fraude fiscal, p.p. pelo artigo 172.º n.º 2, alíneas a) e b), do Código Geral Tributário, conjugado com os números 1 e 2 do artigo 47.º do Código Penal, e de um crime de branqueamento de capitais, na forma continuada, p.p. pelo artigo 82.º, n.º 1, da Lei n.º 5/20, de 27 de Janeiro, na pena única de 10 (dez) anos de prisão, e ainda confirmou 200 (duzentos) dias de multa à razão diária de 200 (duzentas) unidades de referência processual; no pagamento de USD 4.500.000.000, 00 (quatro mil e quinhentos milhões de dólares americanos), a título de indemnização ao Estado Angolano; finalmente, que declarou perdidos a favor do Estado Angolano todos os bens apreendidos no âmbito do identificado processo judicial e saldos bancários pertencentes a várias pessoas e sociedades;

b) Solicita-se a este Venerando Tribunal Constitucional que conheça os diversos vícios de inconstitucionalidade imputados ao Acórdão recorrido e que correspondem a:

c) Violação do princípio do contraditório e dos artigos 29.º, 67.º e 174.º da CRA, ao não reconhecer a nulidade da notificação ocorrida em 15 de Março de 2022 e consequentemente recusar ao Arguido o contraditório dos documentos remetidos pela entidade ARSEG aos autos;

d) Violação do princípio do acusatório, do princípio do direito à defesa e do princípio do contraditório e dos artigos 29.º, 57.º, n.º 1, 67.º, n.º 1, 72.º, 174.º, n.º s 1 e 2, 177.º, n.º 1, todos da CRA, ao não permitir que os seus mandatários examinassem o processo nas condições, pelo tempo e com a antecedência necessária para a preparação de requerimento de abertura de instrução contraditória;

e) Violação do princípio constitucional da legalidade e dos artigos 2.º, 6.º, 22.º, n.º 1, 23.º, 26.º, 28.º, 29.º, n.º s 1 e 4, 56.º, 57.º, 67.º, n.º 1, 72.º, 174.º, 175.º e 177.º, 185.º, n.º 2, 186.º, alíneas a) e c), todos da CRA, ao não ter conhecido do vício de se ter dado provimento ao recurso sobre a decisão final, apresentado sem conclusões, do Ministério Público;

f) Violação do princípio da Plenitude da Assistência dos Juízes e dos artigos 2.º, 6.º, 22.º, n.º 1, 23.º, 26.º, 28.º, 29.º, n.º s 1 e 4, 56.º, 57.º, 67.º, n.º 1, 72.º, 174.º, 175.º e 177.º, todos da CRA, ao não ter conhecido do vício de não ter verificado a nulidade de sessão da audiência de julgamento do dia 17 de Março de 2022 que não poderia ter prosseguido na ausência de um dos Juízes que compõem o Colectivo;

g) Violação dos princípios de garantias de defesa, do Estado de Direito, da justiça e da legalidade, do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, da igualdade, da independência dos Tribunais e da imparcialidade jurisdicional, da boa-fé, da protecção da confiança e da transparência decisória e dos artigos 2.º, n.º 2, 6.º, 23.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º, 56.º, 57.º, 58.º, 63.º alínea d), 67.º, n.º 3, 72.º, 174.º, n.º 2, 175.º, 177.º, n.º 1, todos da CRA, e artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, ao não ter conhecido do vício da inconstitucionalidade do afastamento de mandatário constituído de assistir à audiência contraditória, às sessões de audiência de discussão e julgamento e de praticar no processo quaisquer actos; e por não ter sido conhecido o vício de ter sido proferida decisão final sem que questões prévias prejudiciais estivessem decididas, designadamente, sobre o impedimento do Sr. Dr. José Fernando Faria de Bastos;

h) Violação do princípio do direito a um julgamento justo, dos princípios da imediação e da oralidade, do princípio do contraditório e do direito a um processo equitativo, dos artigos 26.º, n.º s 2 e 3, 28.º, 29.º, n.º 4, 57.º, n.º 1, 67.º, n.º 1, 72.º, 174.º, n.º s 1 e 2, 177.º, n. 1, todos da CRA, e do artigo 7.º, alínea d), da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, ao não ter conhecido do vício inerente à preterição de inquirição de testemunhas indicadas pelo arguido sem que das mesmas este tivesse prescindido;

i) Violação do princípio do acusatório, do princípio do direito à defesa e dos artigos 57.º, n.º 1, 67.º, n.º 1, 72.º, 174.º, n.º s 1 e 2, 177.º, n.º 1, todos da CRA, ao não ter conhecido do vício que manteve a matéria de facto provada sem concretização, com vaguidade, assente em considerações que não resultam de documentos para os quais foi feita remissão e sem prova documental ou testemunhal (ou outro meio de prova admissível) que a suporte;

j) Violação dos princípios do processo justo e equitativo e da proibição da indefesa, princípio do contraditório, do acusatório e da igualdade de armas e dos artigos 29.º n.º s 1 e 3, 67.º, n.º 1, ambos da CRA, ao não ter conhecido o vício que manteve na decisão final a alteração dos factos constantes da pronúncia, isto é, preterindo a imutabilidade do objecto do processo fixado na pronúncia e resultante dos quesitos;

k) Violação dos princípios constitucionais do acusatório, do contraditório, do direito a um julgamento justo e equitativo, princípio das garantias de defesa, princípios da livre apreciação da prova e da imediação e dos artigos 29.º, n.ºs 1 e 3, 67.º n.º 1, 174.º, n.º 2, 175.º e 177.º, n.º 1, todos da CRA, ao não ter verificado que se manteve a valoração de depoimentos indirectos sem a observância dos respectivos procedimentos;

l) Violação do princípio do contraditório e dos artigos 21.º, alínea b), 22.º, n.º 1, 27.º, 28.º, n.º 1, 29.º, n.ºs 1 e 4, 67, n.º 1, 72.º, 174.º, n.º 2, 175.º e 177.º, todos da CRA, em virtude de não ter sido apreciado o vício que manteve a utilização de escritos apócrifos como meio de prova;

m) Violação do princípio in dubio pro reo, ao não ter reconhecido o vício que manteve a condenação do Arguido sem sustentação probatória suficiente;

n) Violação dos princípios da legalidade e da presunção de inocência e dos artigos 7.º e 52.º, ambos da CRA, e do artigo 62.º da anterior CRA, ao não ter reconhecido o vício decorrente da manutenção da condenação apesar da insuficiente ou deficiente subsunção jurídico-penal dos factos aos elementos do tipo objectivo e subjectivo dos três crimes imputados, peculato, fraude fiscal e branqueamento de capitais, e bem assim resultante do desrespeito das figuras da prescrição, amnistia e da não retroactividade da lei penal mais desfavorável ao arguido;

o) Violação do princípio da defesa dos direitos humanos, do princípio in dubio pro reo e do princípio do direito à propriedade privada, ao não ter conhecido do vício na liquidação do património incongruente assente em factos não adequada e justificadamente concretos, vagos e sem que existisse prova documental ou testemunhal ou outro meio de prova legalmente admissível a suportar aquela liquidação, com perda de todo o património do arguido e de familiares e terceiros;

p) Em termos globais, tendo em conta tudo quanto, supra, é descrito e carreado, violação pelo Acórdão recorrido, pelo acórdão do Tribunal ad quem e pelo acórdão do Tribunal da Comarca de Luanda que o precederam, dos princípios do contraditório, da legalidade, da proibição da indefesa, do postulado do Estado de Direito e da justiça e das garantias de defesa dos arguidos, todos princípios com consagração constitucional nos artigos 2.º, 6.º, 22.º, n.º 1, 23.º, 26.º, 28.º, 29.º, n.º s 1, 2 e 4, 56.º, 57.º, 67.º, n.º 1, 72.º, 174.º, 175.º, 177.º, 185.º, n.º 2, e 186.º, alíneas a) e c), da CRA.

Termina pedindo que seja revogado o Acórdão recorrido com fundamento nas inconstitucionalidades que lhe imputa.
O processo foi à vista do Ministério Público que se pronunciou no sentido de negar provimento ao presente recurso, nos seguintes termos:
“(…) é-se do entendimento de que o Recorrente foi julgado e condenado mediante um processo justo e conforme a lei, no qual foram observadas todas as garantias de defesa e direitos processuais constitucional e legalmente previstos, devendo improceder, por isso, a alegação do Recorrente que invoca a preterição dos demais princípios e regras constitucionais e de direito internacional com a decisão que fez vencimento no acórdão condenatório recorrido.
Afigura-se, aliás, que o Acórdão impugnado se mostra exaustivo, suficiente e especificadamente fundamentado, sendo o percurso cognoscitivo e valorativo nele expendido esclarecido de forma detalhada, tomando posição, especificada e pormenorizadamente, quanto a todas as questões submetidas à apreciação e decisão do Venerando Tribunal.
Nestes termos, e salvo melhor apreciação, parece não se vislumbrarem no Acórdão recorrido as alegadas violações de princípios e direitos previstos na CRA”.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 Junho - Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que habilita a interposição de recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional das “…sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Sendo que, atento o disposto no artigo 53.º da LPC, é o Plenário do Tribunal Constitucional o órgão jurisdicional competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “…as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
Assim, atento o disposto na alínea b) n.º 1 do artigo 463.º do Código de Processo Penal Angolano (CPPA), é indubitável a legitimidade do Recorrente, porquanto recorre de decisão contra ele proferida.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é ajuizar se o Acórdão de 19 de Setembro de 2022, prolactado pela 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 6182/22, ofendeu princípios ou violou direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados na CRA.

V. APRECIANDO

V.I. Questão Prévia
Sem embargo de o Recorrente ter acedido ao convite no sentido de proceder ao aperfeiçoamento das suas alegações de recurso, há que sublinhar que o fez apenas em relação ao denominado ónus de formulação de conclusões da matéria alegada, delimitando, deste modo, os fundamentos em função dos quais pretende ver revogada a decisão recorrida para, dessa forma, se dar cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 690.º do Código do Processo Civil (CPC), regime aplicável subsidiariamente por força do conteúdo vertido no artigo 2.º da LPC.
Ademais, não pode este Tribunal Constitucional deixar de chamar à atenção, mais uma vez, para a exigência de um dever geral de cooperação ao qual estão adstritas as partes no processo, em ordem a dar concretização ao direito do arguido de obter uma decisão em prazo razoável, que é, justamente, um dos corolários do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 29.º da CRA.
Afigura-se, porém, que o Recorrente não adequa a sua conduta processual às exigências e aos corolários decorrentes da indispensabilidade de colaborar, no sentido da realização de uma justiça célere, na medida em que, em sede da exposição dos seus argumentos no âmbito das alegações, opta por um estilo prolixo de peça processual, isto é consideravelmente extenso, repetitivo e redundante na abordagem dos temas, tornando assim, desnecessariamente mais complexa a tarefa de analisar, ponderar e valorar a linha argumentativa em torno da qual entendeu estruturar as suas alegações.
A este propósito, remete-se para as considerações já expendidas por este augusto Tribunal no âmbito dos arestos n.ºs 729/2022 e 800/2023, prolatados, respectivamente, nos processos n.ºs 909-C/2021 e 913-C/2021, afigurando-se-nos o dever de destacar, em concreto, o seguinte excerto:
“Portanto no mesmo sentido se devem guiar as partes e seus mandatários judiciais, em relação a este princípio geral, transversal a todos os ramos do direito processual, isto é, primando pelo dever de colaborar com a justiça, incluindo no aspecto de proporcionar menor grau de complexidade das peças processuais, quer seja, observando mais cuidado na linguagem utilizada, como adoptando um estilo de peças mais simplificadas e concisas no modo de elaboração, sem que tal implique, como é óbvio, a ausência do rigor técnico necessário, em ordem a tornar a justiça mais pronta e eficiente.
Neste particular, além da elementar indicação de um pedido e uma causa de pedir exigidos por lei a toda demanda judicial, impõe-se, cada vez mais às partes no processo, um amplo dever de diligência e cooperação, em ordem ao cumprimento de uma nova visão do processo mais compatível com a ideia de Estado Constitucional”.
Ao que antecede, deve ainda aditar-se a constatação de que o Recorrente, ao longo da copiosa argumentação que expende, tem manifestamente a intenção de, por forma ínvia ou indirecta, forçar este Tribunal Constitucional a uma reapreciação ou um reexame da matéria de facto julgada, como se de mais uma instância de recurso comum ordinário se tratasse.
Ora, cumpre ter presente que, atento o disposto no artigo 39.º da LPC, aplicável ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade, ex vi do n.º 1 do artigo 52.º da mesma Lei, à tramitação deste recurso aplicam-se as disposições do CPC que disciplinam o recurso de apelação, contidas nos artigos 691.º e seguintes.
Destarte, do n.º 1 do artigo 712.º do CPC resulta que o tribunal de recurso, em regra, não pode alterar as respostas dadas à matéria de facto no tribunal que proferiu o acórdão recorrido, a não ser que se verifique qualquer das circunstâncias enumeradas nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 712.º do CPC, circunstâncias que se não afiguram verificar-se in casu.
De facto, o Recorrente aborda na sua exposição inúmeras questões atinentes ao mérito da causa criminal, que excedem manifestamente o âmbito das competências conferidas por lei ao Tribunal Constitucional em sede do presente recurso de inconstitucionalidade, cabendo recordar neste contexto, o que resulta da concatenação do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 181.º da CRA e na alínea a) do artigo 49.º da LPC.
Assim, em ordem a abordar e responder a cada um dos fundamentos de recurso aduzidos e de forma a lograr maior clareza e completude da fundamentação e simplicidade metodológica da exposição do raciocínio cognitivo e valorativo, em que este Tribunal irá assentar, passamos a responder às questões suscitadas pelo Recorrente, excepto aquelas cuja resposta seja prejudicada por força da resposta dada a outra ou outras e que, nessa estrita medida, dispensarão a pronúncia deste Tribunal Constitucional.

V.II. Da alegada ofensa aos princípios constitucionais que concretizam e concorrem para o exercício dos direitos de defesa em processo penal
Decorre dos autos que o ora Recorrente foi condenado na 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo (Tribunal ad quem), que confirmou a decisão antes proferida na instância da Relação de Luanda, pela prática, em concurso de crimes, de um crime de peculato, p.p. pela alínea c) do n.º 1 do artigo 362.º do Código Penal, de um crime de fraude fiscal, p.p. pelas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 172.º do Código Geral Tributário, conjugado com os n.ºs 1 e 2 do artigo 47.º do Código Penal, e de um crime de branqueamento de capitais, na forma continuada, p.p. pelo n.º 1 do artigo 82.º da Lei n.º 5/20, de 27 de Janeiro, na pena única de 10 (dez) anos de prisão, e ainda confirmou 200 (duzentos dias de multa à razão diária de 200 (duzentas) unidades de referência percentual, no pagamento de USD 4 500 000 000,00 (quatro mil e quinhentos milhões de dólares Americanos), a título de indemnização ao Estado Angolano e, finalmente, na perda a favor do Estado Angolano de todos os bens apreendidos no âmbito do aludido processo judicial, bem como dos saldos bancários pertencentes a várias pessoas e sociedades.
Inconformado com a decisão assim proferida, vem o ora Recorrente interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, arguindo vícios que, no seu entender, relevam para a censura de inconstitucionalidade que dirige ao acórdão recorrido.
Em súmula, na sua óptica, o Recorrente considera que foram ofendidos princípios, uns com expresso assento constitucional, relevando outros da lei reguladora do processo penal, como sejam os da legalidade; do contraditório; do acusatório; da plenitude da assistência dos juízes; do Estado de Direito; do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva; da igualdade; da independência dos Tribunais e da imparcialidade jurisdicional; da boa-fé; da protecção da confiança e da transparência decisória; do direito a um julgamento justo e equitativo; da imediação e da oralidade; da livre apreciação da prova; do in dubio pro reo, da presunção de inocência; da defesa dos direitos humanos e do direito à propriedade privada, conforme preceituado, no caso dos princípios constitucionalmente previstos nas disposições dos artigos 2.º, 6.º, alínea b) do 21.º, n.º 1 do 22.º, 23.º, 26.º, 28.º, n.ºs 1, 2 e 4 do 29.º, 56.º, 57.º, alínea d) do 63.º, 67.º, 72.º, 174.º, 175.º e 177.º, n.º 2 do 185.º, alíneas a) e c) do 186.º, todos da CRA e do artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
Aponta o Recorrente ao longo da sua exposição, como factos susceptíveis de contender com os princípios e direitos acima elencados, os seguintes: o impedimento oposto ao seu advogado de o representar; a exiguidade do prazo concedido ao seu mandatário para examinar o processo pela primeira vez; a falta de inquirição de duas das testemunhas por si arroladas sem que tivesse delas prescindido; o não reconhecer a nulidade da notificação ocorrida em 15 de Março de 2022, e consequentemente recusar ao arguido o contraditório dos documentos remetidos aos autos pela Agência Angolana de Regulação e Supervisão de Seguros (ARSEG); a introdução de factos novos não constantes da acusação e da pronúncia; a ausência de motivação sobre os factos tidos como não provados; o erro na apreciação da prova e a valoração de depoimentos indirectos sem observância dos procedimentos legais; a utilização de escritos apócrifos como meio de prova; a admissão do recurso interposto pelo Ministério Público sem que se mostrassem formuladas as conclusões das respectivas alegações; o prosseguimento da sessão de julgamento com a ausência de um dos juízes que compunha o tribunal colectivo; a insuficiência da matéria de facto para integrar os elementos típicos constitutivos dos crimes de peculato, de branqueamento de capitais e de fraude fiscal, resultante do desrespeito das figuras da prescrição, amnistia e da não retroactividade da lei penal mais desfavorável ao arguido; e, por fim, a alegada omissão de pronúncia quanto à impugnação da liquidação de património incongruente e indemnização.
Assim, em ordem a abordar a cada um dos fundamentos de recurso aduzidos passa-se a responder do modo que se segue:

a) Sobre o Princípio do Acesso ao Direito e Tutela Jurisdicional Efectiva
No que se releva da alegada ofensa ao princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, invoca o Recorrente que uma das inconstitucionalidades patenteadas no acórdão recorrido é a violação do direito de livre escolha de defensor que o acompanhe nas diligências policiais e/ou judiciais, assentando, para tanto, no impedimento oposto ao seu advogado no decurso do desempenho da representação forense.
Revertendo à decisão recorrida, constata-se que ela assentou no entendimento constante de fls. 7350 v. e 7352 do Acórdão recorrido, entendimento que, na parte relevante, se passa a transcrever: “Sempre se dirá que o recorrente não viu os seus direitos de defesa beliscados porque, como se refere já na decisão recorrida, foi sempre assistido por Mandatários que constam da procuração junta aos autos e por si escolhidos.
Quanto ao facto de o arguido não ter sido representado pelo advogado por si escolhido já conhecemos no recurso que foi anexado, pelo que, perde utilidade. Diremos, porém, que bem andou o Tribunal recorrido, na medida em que o arguido esteve sempre defendido por outro mandatário que constava da procuração e também por si escolhido”.
Para melhor compreensão da matéria em questão, passa-se a transcrever as constatações feitas pelos Juízes do Tribunal da Relação de Luanda (fls. 6992 e 6993):
“Compulsados os autos, verifica-se que esta questão do afastamento da testemunha José Fernando Faria de Bastos, da qualidade de mandatário do Arguido foi suscitada mediante promoção do Ministério Público em audiência de instrução contraditória por entender que se levantavam no processo questões que se prendem com a prática de certos actos por parte da referida testemunha, o qual, ao tempo dos factos, teria praticado, em representação do Arguido, determinados actos que comprometiam a descoberta da verdade material, caso interviesse nos autos na qualidade de mandatário.
Observado o contraditório e ponderada a questão, aquele Tribunal deferiu a promoção do Digno Magistrado do Ministério Público, tendo determinado o impedimento de a testemunha José Fernando Faria de Bastos intervir nos autos na qualidade de mandatário do arguido à luz do disposto no artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 8/17, de 13 de Março.
Inconformado, o arguido interpôs recurso desta decisão, que foi admitido com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo. Em sua instância, o Tribunal Supremo, alterou o regime de subida do referido recurso por entender tratar de recurso que, à face da lei, deva subir com o recurso interposto da decisão final, decisão que, segundo o alegado pelo Arguido, ainda está pendente de reclamação por si interposta”.
Constata-se, assim, no acórdão recorrido, o entendimento segundo o qual, não foi limitado, tolhido ou, de qualquer modo coarctado, no todo ou em parte, o direito de livre escolha de defensor e que, consequentemente, não foram postergados ou infringidos os princípios constitucionais conexos com o exercício do direito de defesa e, em especial, com o direito do cidadão se fazer representar por advogado por si escolhido.
Posto isto, a questão que se nos perfila é determinar se a matéria de facto dada como provada nas instâncias anteriores, colide ou não com o direito fundamental à defesa, imbricado na garantia constitucional de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, o impedimento que, nas circunstâncias aferidas, incidiu sobre a representação e assistência jurídica, bem como a defesa do aqui Recorrente perante o tribunal.
É insofismável que o n.º 1 do artigo 193.º da CRA configura o advogado como um agente indispensável à administração da Justiça, devendo a mencionada norma ser concatenada com o que, em sede da garantia constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, preceitua o n.º 2 do artigo 29.º da CRA, onde se investe todos os cidadãos no direito ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado.
Isso mesmo é sublinhado por Jorge Miranda e Rui Medeiros, em anotação ao artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa que, no que releva para a factualidade sob apreciação, dispõe em termos essencialmente homólogos ao decretado no artigo 29.º da CRA, segundo o qual, “Todavia, para que se não limite a uma simples afirmação proclamatória, o acesso ao direito é concretizado de acordo com o disposto no artigo 20.º, n.º 2, através do direito conferido a todos, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, bem como ao patrocínio judiciário”. Cfr. Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, 2ª Edição, Almedina, 2017, págs. 310 - 311.

Prosseguem os mencionados autores afirmando que, “(…) O direito ao patrocínio judiciário constitui, não apenas, como se lê no artigo 208.º, «elemento essencial à administração da justiça», mas também elemento essencial da própria garantia constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, já que confere aos particulares o direito de serem «técnico – juridicamente aconselhados com vista a realizarem a concreta defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos» e, nessa medida, permite-lhes uma defesa cabal das suas posições jurídicas subjectivas (…)”, acrescentando, ainda, os mesmos autores, dando sequência ao seu raciocínio, que “(…) sem prejuízo das limitações que venham a ser estabelecidas por lei, o direito ao patrocínio judiciário engloba ainda o direito de escolher o advogado ”.
Pois bem, é precisamente no âmbito temático que assim é delimitado pelos autores aos quais aludimos, que se deve enquadrar a questão de aferir se o impedimento que recaiu sobre um dos profissionais a quem foi conferido o mandato forense junto aos autos, consubstanciou ou não um desrespeito à garantia constitucional da livre escolha do patrocínio judiciário e, consequentemente, se tal redundou ou não numa lesão do direito de defesa do Recorrente.
No cerne da garantia constitucional que assegura a todos a faculdade de escolher o seu advogado está, como é consabido, a intenção do legislador constitucional salvaguardar o interesse dos constituintes, reconhecendo a necessidade de acautelar o carácter intuitu personae que decisivamente marca a relação entre mandante e mandatário, relação que é não apenas justificada, mas que, sobretudo, deve ser orientada por critérios de confiança, não apenas no plano pessoal, mas também e, principalmente, dependente da diligência, da aptidão, da idoneidade da representação que o mandatário deve assegurar, devendo este, para o efeito, pautar sempre a sua conduta pelo mais elevado rigor ético e qualidade técnico-jurídica, em ordem a acautelar, os bens, valores e interesses daquele que representa em juízo.
Ora, no caso em apreço, o Recorrente, como demonstram os autos, teve a oportunidade de conferir mandato forense a mais do que um causídico, como lhe é facultado pelo artigo 17.º da Lei n.º 8/17, de 13 Março – Lei da Advocacia, pelo que, não havendo elementos nos autos, mormente os que defluem da factualidade dada por assente, que nos conduzam ou façam propender para entender que os mandatários escolhidos pelo Recorrente lhe não mereçam igual medida de confiança, entende este Tribunal que o impedimento que determinou a impossibilidade de apenas um desses mandatários representar o ora Recorrente não precludiu ou impediu que a representação continuasse, como continuou, a ser não somente perfeitamente possível como, sobretudo, fosse concretamente assegurada. Por conseguinte, foi possível prosseguir a defesa do ora Recorrente mediante a intervenção dos restantes advogados por si mandatados por via da procuração forense junta aos autos.
Com efeito, não se vislumbra ter sido negado ao Recorrente o direito à escolha de defensor (advogado), considerando que a sua defesa foi efectivamente assegurada por advogados por si livremente constituídos.
Assim, tudo visto, contrariamente ao que é alegado pelo Recorrente, este Tribunal Constitucional considera que não foi afectada a representação capaz e efectiva do arguido em processo penal e, consequentemente, improcede a alegada inconstitucionalidade decorrente da invocada preterição do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, não se mostrando, pois, ter sido desrespeitado o estatuído nas disposições do n.º 2 do artigo 29.º, da alínea d) do artigo 63.º e do n.º 3 do artigo 67.º, todos da CRA. Outrossim, não se mostra preterido o disposto no artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

b) Sobre o Princípio do Contraditório
Ainda no âmbito da invocada ofensa dos direitos e garantias de defesa do Recorrente, alega este que o prazo que foi concedido ao seu mandatário, para consultar e examinar o processo pela primeira vez, foi demasiado curto, o que no seu entender, configurou uma infracção ao princípio do contraditório.
Como é consabido, o direito ao contraditório tem um conteúdo multifacetado, comportando, nomeadamente, o direito do cidadão a ter conhecimento de que contra ele foi proposta uma acção ou, como foi o caso dos autos, deduzida acusação que, subsequentemente, como já se observou, veio a redundar numa condenação, a ter o direito a conhecer todas as diligências e demais condutas processualmente relevantes que contra determinada pessoa são desencadeadas ou assumidas.
Expende o Recorrente, nas suas alegações, que não teve tempo e antecedência necessária para preparação de requerimento de abertura de instrução contraditória.
Importa realçar que o princípio do contraditório é expressamente assumido no n.º 2 do artigo 174.º da CRA, como um dos princípios estruturantes do exercício da função jurisdicional, devendo o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consignado no artigo 29.º da CRA, ser perspectivado à luz da indispensabilidade de ter em conta que esse acesso e essa tutela só serão plenos e efectivos se aos sujeitos processuais for facultado, não apenas conhecer as imputações que lhe são feitas como, sobretudo, lhe ser dada a possibilidade efectiva de delas se defender, sindicando-as e contraditando-as.
Como não poderia deixar de ser, o princípio do contraditório é também entendido como um dos princípios fundamentais do direito processual penal, competindo ao juiz acautelar que em todas as etapas ou fases processuais é sempre assegurado o direito do arguido a contraditar, assumindo tal poder-dever do juiz, uma especial relevância na fase de julgamento, estando o magistrado vinculado a ouvir a defesa e a acusação, antes de proferir qualquer decisão.
Confere-se a possibilidade de as partes se pronunciarem sobre as actuações ou condutas processuais adoptadas ou desenvolvidas, por qualquer delas, revestindo o princípio do contraditório, evidentemente, de uma especial relevância no âmbito da intervenção processual do arguido, na medida em que o princípio desempenha uma capital importância hermenêutica e epistemológica para a defesa do arguido enquanto sujeito processual ao ius puniendi.
O princípio do contraditório reveste-se de crucial importância na fase processual da produção de prova, estando a sua promoção e salvaguarda directamente relacionadas com a garantia da participação efectiva e activa das partes no decurso dessa fase como nas demais etapas processuais, antecedentes ou subsequentes.
Citando Germano Marques da Silva, o “(…) princípio do acusatório traduz-se na estruturação da audiência de julgamento e dos actos instrutórios que a lei determinar em termos de um debate ou discussão entre a acusação e a defesa”. In Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 531.
Numa outra obra, Germano Marques da Silva, abordando a mesma temática, caracterizou lapidarmente o princípio do contraditório como consubstanciando o “(…) direito que as partes processuais têm de oferecerem provas para sustentarem as suas teses processuais e se pronunciarem sobre as alegações ou iniciativas processuais ou actos tanto de uma como de outra parte”. Cfr. Direito Processual Penal Português 1, UC Editora, 2023, págs. 86 e 87.
Compulsados os autos, verifica-se que o Recorrente foi notificado para, querendo, no prazo estabelecido requerer a abertura da instrução contraditória (vide fls. 156), instância a que veio a corresponder positivamente requerendo o desencadear dessa fase processual, que foi admitida, sendo certo que, atento ao disposto no n.º 4 do artigo 102.º do CPPA, findos os prazos previstos na lei para a instrução preparatória, a consulta do processo passa a ser livre, ressalvados os casos previstos no n.º 5 do mesmo artigo.
Tudo visto e ponderado, nota-se que o argumento apresentado pelo Recorrente não colhe, porquanto, como se pode constatar nos autos, foi-lhe concedido tempo e oportunidade para apresentar o seu requerimento da abertura de instrução contraditória, fazendo assim o uso pleno da faculdade que a lei lhe conferia, no exercício do seu direito de defesa (vide fls. 158 a 196, frente e verso).
Ademais, do teor dos autos decorre, ainda, ser notório que o Recorrente teve uma intervenção efectiva e activa durante toda tramitação do processo, evidenciada ao longo do desenvolvimento da sua conduta processual, abundantemente documentada nos autos.
Por conseguinte, atento ao que se afirmou supra, considera esta Corte, que não foi ofendido o princípio do contraditório ou de qualquer outro a este respeito invocado, improcedendo, por isso, a alegação do Recorrente.

c) Sobre os Princípios do in dubio pro reo e da Presunção de Inocência
O Recorrente alega que foi ofendido o princípio do in dubio pro reo e, concomitantemente, o princípio da presunção de inocência, no julgamento dos factos referentes à alegada preterição de inquirição de testemunhas arroladas pela defesa, na introdução de factos novos não constantes da acusação e da pronúncia, no erro na apreciação da prova e valoração de depoimentos indirectos sem observância dos procedimentos legais e na utilização de escritos apócrifos como meio de prova.
Sublinhando que as instâncias anteriores, que são legalmente competentes, debruçaram-se exaustivamente sobre a matéria, importa, contudo, destacar-se o seguinte:
O princípio da presunção de inocência encontra consagração no artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, sendo um direito que assiste a todo o cidadão, acautelando-se que a presunção de inocência subsiste ao longo do processo até que, em homenagem à estrutura acusatória do processo penal, o Ministério Público, titular da acção penal, logre afastar a presunção, demonstrando os elementos do tipo de ilícito e de culpa e, nessa medida, logre convencer o tribunal da tese da acusação e, consequentemente, obter uma condenação. Vide Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Coimbra Editora, Reimpressão, 2004, págs. 213-214.
O mesmo sucede no ordenamento jurídico-constitucional angolano, no qual este princípio basilar do direito criminal encontra consagração expressa no n.º 2 do artigo 67.º da CRA, o qual dispõe que “Presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
Como se depreende da doutrina que sobre o tema se pronuncia, o princípio in dubio pro reo não se limita a ter uma relevância substantiva ou material, revestindo-se, igualmente, de capital importância no plano jurídico-processual, porquanto, como esclarece Vasco A. Grandão Ramos, “Sempre que a prova produzida seja insuficiente e não conduza à formação de um juízo de certeza sobre a existência da infracção ou de que foi o arguido que a cometeu, deve ser absolvido. Na dúvida, decide-se a favor do réu”. In Direito Processual Penal – Noções Fundamentais, Colecção Faculdade de Direito – U.A.N, 6ª edição, 2011, pág. 98.
Dito isto, verificamos que no douto Acórdão tirado na Câmara Criminal do Tribunal da Relação de Luanda, os Juízes Desembargadores conheceram do vício processual alegado pelo aqui Recorrente, tendo considerado que não obstante este não o ter expressamente assumido, aquela sua alegação consubstanciava a invocação da insuficiência da prova, na qual se suportou a condenação, circunstância que, nessa medida, teria, na perspectiva do arguido, inquinado o julgado com o vício de falta ou de insuficiência da prova, vide fls. 6993 e seguintes.
Tomando posição sobre a alegação, os Juízes Desembargadores consideraram, não somente, que as duas testemunhas em questão gozavam das prerrogativas de inquirição legalmente previstas, como sublinharam, pese embora o tribunal a quo ter adoptado todas as diligências tendentes a obter os testemunhos, tais diligências revelaram-se infrutíferas.
Diante disto, concluíram os Juízes Desembargadores que a fundamentação de facto carreada para os autos era suficiente para sustentar os crimes imputados, inexistindo qualquer défice de fundamento probatório da condenação, e que a incriminação se mostrava adequadamente sustentada por outros meios de prova, por conseguinte, entenderam não assistir razão ao Recorrente (fls. 6997).
O Acórdão recorrido também se debruçou a respeito da invocada preterição de testemunhas da defesa e, revendo-se naquela que foi a decisão do Tribunal de primeira instância, decidiu igualmente não assistir razão ao Recorrente (vide verso de fls. 7369).
Concluiu, pois, malgrado os esforços do Tribunal a quo, em proceder sem sucesso a audição de uma das testemunhas arroladas pela defesa, que uma delas chegou a ser ouvida na qualidade de declarante, designadamente a testemunha Manuel Vicente, pelo que, considerando que os factos provados estavam devidamente sustentados em outros meios probatórios, entendeu que uma e outra declaração era de todo prescindível para a descoberta da verdade.
Diante do expendido e à luz do princípio da livre apreciação da prova consideram-se respeitados, neste quesito, os aludidos princípios constitucionais, associados ao direito de defesa do Recorrente.
Sobre a introdução de factos novos não constantes da acusação e da pronúncia, argumenta o Recorrente que a decisão recorrida, uma vez mais, peca “ao não ter conhecido o vício que manteve na decisão final a alteração dos factos constantes da pronúncia, isto é, preterindo a imutabilidade do objecto do processo fixado na pronúncia e resultante dos quesitos”.
Quanto ao imputado desvio ou desrespeito ao princípio da vinculação temática do processo, decorrente da invocada alteração substancial dos factos descritos na pronúncia, vale referir que os princípios do contraditório e acusatório estão expressamente previstos no n.º 2 do artigo 174.º da CRA. Estes são princípios estruturantes do exercício da função jurisdicional, por força dos mesmos, aos sujeitos processuais deve ser facultada, não apenas conhecimento dos factos a si imputados como também, sobretudo, a possibilidade efectiva de deles se defenderem, razão pela qual o órgão que acusa não deve julgar e o julgador igualmente não deve acusar, porém havendo factos novos, deve o juiz devolver o processo à instrução a fim de possibilitar a defesa do arguido sobre os mesmos.
Portanto, o ónus de alegar um facto não se limita a simples invocação genérica, impende sobre o impetrante o dever de especificar qual é o facto que prejudica a sua qualidade processual, no caso vertente, não tendo o Recorrente identificado tais factos novos, que eventualmente o prejudicassem ou violassem o seu direito à presunção de inocência e o seu direito à defesa, esta Corte não vislumbra nos autos quaisquer violações aos aludidos princípios constitucionais.
Quanto ao cogitado erro na apreciação da prova e valoração de depoimentos indirectos sem observância dos procedimentos legais, julgamos conveniente, para melhor se compreender o alcance da decisão a que vimos aludir, proceder à transcrição, infra, de alguns excertos do Acórdão in examine:
“(…) o acórdão recorrido teceu, longuíssimas considerações acerca da apreciação e valoração da prova e modo de impugnação da mesma de acordo com as exigências legais, explicando de forma clara porque concluiu pela falta de razão do recorrente.
“E, porque a exaustão e exactidão do aresto impugnado é tão elucidativo, revemo-nos na sua fundamentação (…)”.
Constata-se, pois, tendo em conta o teor das transcrições que vimos fazendo, que o Tribunal ad quem, reportando-se à prova produzida na outra instância, a assumiu como sua, considerando-a suficientemente densa, concretizada e especificada tomando-a como base para estribar a sua valoração e o seu juízo quanto ao preenchimento dos tipos de ilícito penais sub judice, não advindo de tal conduta qualquer violação à Constituição.
Quanto à utilização de escritos apócrifos como meio de prova, o acórdão recorrido remete a sua fundamentação para o aresto prolactado pelo Tribunal da Relação, justificando-se com a sua convicção de que “(…) os fundamentos são em tudo similares e a decisão recorrida tratou de forma exaustiva todas as questões, não havendo necessidade de maiores considerandos dada a pouca complexidade das mesmas” (cfr., a fls. 7369, verso).
De quanto precede retira-se, pois, que o Tribunal ad quem em nenhum momento teve dúvidas sobre os elementos probatórios carreados aos autos, tendo corroborado com os fundamentos vertidos na decisão recorrida, tendo-os assumido como correspondendo à fundamentação da sua valoração, ponderação e, em última análise, da sua decisão, por via de remissão para os factos dados como provados pela instância.
Sem embargo, importa referir que a valoração da prova produzida, bem como o mérito ou demérito das provas constantes nos autos, é de cognição exclusiva da instância recorrida, tendo em consideração os princípios da livre apreciação da prova e da imediação. Pese embora, estes princípios comportem sempre como limite, o dever de fundamentação das decisões - o que no caso se verifica. Nesta esteira, vide o Acórdão n.º 803/2023, desta Corte Constitucional, a páginas 6 e 7.
Destarte, diante do juízo de certeza densificado no douto Acórdão do Tribunal ad quem, objecto da presente sindicância, não se vislumbra em que medida foi ofendido o princípio in dubio pro reo ou o princípio constitucional da presunção de inocência.
d) Sobre o direito a Julgamento Justo e Conforme
Como fundamento para a alegada violação ao seu direito a julgamento justo e conforme, alude o Recorrente que a falta de decisão quanto à questão da nulidade da notificação de 15/03/2022 lesa um conjunto de normas e princípios constitucionais conexos com o direito de defesa, mas não qualifica ou subsume a infracção que invoca a qualquer nulidade processual, nos termos e para os efeitos, mormente, do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 140.º do CPPA, nem caracteriza ou enquadra a alegada desconformidade no âmbito da nulidade de sentença prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 426.º do CPPA.
Ora, extrai-se dos autos, que na sequência da audição das testemunhas Aguinaldo Jaime e Silvano Adriano, então afectos à ARSEG, em audiência de julgamento, o juiz da causa ordenou a solicitação do acervo documental que serviu de base ao diagnóstico realizado pela ARSEG ao grupo AAA, por se afigurar essencial para a descoberta da verdade material.
Assim, foi junto aos autos o referido acervo documental e dele notificado o arguido, no dia 11 de Março de 2022. Entretanto, no dia 14 Março de 2022, veio o mesmo apresentar um requerimento, onde invocou a falta de entrega da referida documentação no acto de notificação, tendo, posteriormente, o Tribunal a quo, isto no dia 15 de Março de 2022, entregue ao seu mandatário cópias da aludida documentação.
Prosseguindo, o arguido, em sede de audiência de julgamento do dia 17 de Março de 2022, isto é, decorridos cerca de 6 dias desde a entrega da referida documentação ao seu mandatário, veio solicitar a repetição da notificação, alegando, uma vez mais, irregularidades, o que foi julgado extemporâneo pelo Tribunal a quo (fls. 5718 a 5724 e 6987-6989 dos autos).
Diante de tais factos, importa esclarecer que a garantia constitucional do julgamento justo e conforme a lei, plasmada no artigo 72.º, conexa à garantia do processo equitativo, consagrada no n.º 4 do artigo 29.º, ambos da CRA, é condizente com o entendimento genérico segundo o qual o Estado de Direito, fundado no primado da dignidade da pessoa humana, deve assegurar a todos os cidadãos uma justiça imparcial, tal como estabelecido no artigo 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
Alcance que, na linha da jurisprudência já firmada por esta Corte Constitucional, designadamente no Acórdão n.º 787/2022, o referido princípio “(…) tem como postulado o direito a ser julgado por um tribunal imparcial, independente e competente, a exigência de um Juiz natural; que o julgamento seja baseado na equidade e igualdade de armas, o direito de indicar testemunhas; o direito a interrogar ou fazer interrogar a testemunha indicada pela acusação; o direito a não auto-incriminação; o direito a não ser punido com medida mais gravosa do que a prevista por lei à data da infracção; o direito a que as garantias processuais das partes sejam asseguradas durante todo processo, que seja dado o direito a assistência e patrocínio judiciário às partes, para que estas possam exercer na plenitude o direito a ampla defesa; o direito a recurso e que a demanda tramite e seja decidida dentro dos parâmetros constitucionais e legais.
O primado do julgamento justo e conforme está compenetrado com a dimensão axiológica do processo penal de a todo tempo assegurar-se um equilíbrio entre a acusação e a defesa, impedindo que o arguido seja relegado a uma posição de desvantagem relativamente à acusação, por outro lado, impõe-se que o tribunal seja constituído e funcione regularmente segundo o direito”.
É entendimento desta Corte Constitucional, no que diz respeito a arguição da nulidade da notificação ocorrida em 15 de Março de 2022, e consequente recusa do contraditório dos documentos remetidos pela entidade ARSEG aos autos, que as nulidades processuais são típicas, isto é, só são nulos ou irregulares, os actos processuais para os quais a lei expressamente preveja essa forma de invalidade, nos termos do artigo 138.º do CPPA.
Ainda sobre esta temática, refere-se que o aresto recorrido não incorreu no vício de omissão de pronúncia, como paralelamente argumenta o Recorrente, porquanto, compulsados os autos, se constata que o Tribunal ad quem, suscitando e assumindo os factos dados como provados no Tribunal da Relação de Luanda (início do verso de fls. 7352), transcreveu excertos deste último acórdão, entre os quais se apontam os constantes do verso de fls. 7359 e de fls. 7360, onde os Juízes Desembargadores aludiram ao ofício da ARSEG.
Nessa medida, afigura-se que o Acórdão recorrido, tomando para si os factos dados como provados no Tribunal da Relação de Luanda, assume concludentemente a relevância probatória do referido documento da ARSEG.
Por conseguinte, este Tribunal considera haver coerência intrassistemática dos fundamentos que suportam o aresto recorrido, por este não estar eivado de qualquer nulidade processual.
Sobre a ausência de motivação dos factos tidos como não provados, o Tribunal recorrido, socorreu-se do dever de fundamentação das decisões judiciais, associado ao princípio da livre apreciação da prova, para concluir que “aqueles factos constam da matéria não provada por ausência de prova que permitisse ao Tribunal com certeza absoluta que exige qualquer condenação integrar os factos provados”.
A este conspecto cabe, sequencialmente, notar-se que, atento o que dispõe o n.º 3 do artigo 417.º do CPPA, a fundamentação da sentença deve conter a enunciação dos factos provados e não provados, de harmonia com as respostas dadas aos quesitos em que o julgador se irá sustentar para decidir sobre os factos penalmente relevantes, nos termos do n.º 1 do artigo 409.º do mesmo Código.
Como acabado de elucidar, a condenação apenas se pode sustentar em factos dados como provados, devidamente fundamentados fáctica e juridicamente. Deste modo, os factos não provados, sendo insusceptíveis de poder fundar uma condenação, não podem contender, desde logo, com o direito à liberdade previsto no n.º 2 do artigo 36.º da CRA.
Retira-se do verso de fls. 7368 do Acórdão recorrido, que a Câmara Criminal do Tribunal Supremo entendeu “(…) concluir que o acervo probatório é o bastante para subsumir a conduta do arguido nos crimes pelos quais foi condenado não lhe assistindo qualquer razão quando pugna pela sua absolvição”.
De tudo aqui expendido, resulta claro que, durante todas as fases do processo o Recorrente viu assegurado o seu direito a julgamento justo, na medida em que, em igualdade de circunstâncias pôde arrolar testemunhas e inquiri-las, juntou contestação e vários documentos ao processo e esteve a todo o tempo devidamente acompanhado pelos advogados por si constituídos.
Destarte, entende esta Corte não se verificar qualquer violação ao princípio do julgamento justo e conforme.
e) Sobre o Princípio da Legalidade
Concomitantemente, retira-se da peça processual de interposição do presente recurso de inconstitucionalidade, a alegação de que foi ilegal a admissão do recurso interposto pelo Ministério Público sem que se mostrassem formuladas as conclusões das respectivas alegações; o prosseguimento da sessão de julgamento com a ausência de um dos juízes que compunha o tribunal colectivo; a insuficiência da matéria de facto para integrar os elementos típicos constitutivos dos crimes de peculato, de branqueamento de capitais e de fraude fiscal, resultante do desrespeito das figuras da prescrição, amnistia, tal como a ofensa ao princípio da não retroactividade da lei penal mais desfavorável ao arguido; e, por fim, a alegada omissão de pronúncia quanto à impugnação da liquidação de património incongruente e indemnização.
Todavia, estabelecendo-se ligação directa entre os alegados fundamentos e uma pretensa ofensa ao princípio supra epigrafado, passa-se a responder do seguinte modo:


i. Sobre a ilegalidade da admissão do recurso interposto pelo Ministério Público
O Recorrente alega, de igual modo, que a admissão do recurso interposto pelo Ministério Público, destituído da formulação de conclusões, foi ilegal e inconstitucional, invocando terem sido desrespeitados os artigos 2.º, 6.º, n.º 1 do 22.º, 23.º, 26.º, 28.º, n.ºs 1 e 4 do 29.º, 56.º, 57.º, n.º 1 do 67.º, 72.º, 174.º, 175.º, e177.º, 185.º, n.º 2 e alíneas a) e c) do 186.º, todos da CRA.
Em resposta a tais alegações de ilegalidade do recurso formulado pelo Ministério Público, passa-se a dissecar, pela evidenciada pertinência, um fragmento do aresto recorrido, em face do fundamento exposto, neste aresto escreveu-se o seguinte: “Relativamente ao recurso interposto pelo M.P. o recorrente pugna pela sua nulidade na medida em que não obedece aos requisitos legais, mormente, a apresentação de alegações conforme preceituado na alínea b) do n.º 1 do artigo 476.º do CPPA.
Não temos dúvidas que deste dispositivo resulta essa imposição legal, porquanto, o objecto do recurso, como anteriormente referimos, decorre das conclusões que devem ser concisas e precisas, (…). Porém, a falta de conclusões não implica a rejeição, mas um despacho de aperfeiçoamento, sob pena de ser rejeitado no todo ou em parte como se refere no n.º 3. Do artigo 483.º do mesmo diploma legal. Apenas a falta de motivação «in totum» determina a rejeição do recurso. Ver também o artigo 479.º n.º 5 – «o juiz só pode rejeitar o recurso … quando o recurso não estiver fundamentado»
No caso em análise, não temos dúvidas de que o Tribunal deveria ter proferido o despacho de aperfeiçoamento não só quanto ao recurso do M.P., mas também do aqui recorrente, cujas conclusões, junto deste Tribunal Supremo, não obedecem igualmente aos requisitos, porque demasiado extensas, confusas e muitas das vezes incompreensíveis. Porém, sempre que o Tribunal não o faz, não pode posteriormente vir prejudicar os recorrentes, em violação ao direito ao recurso, devendo através da motivação perceber o que pretendem impugnar”.
De resto, a fundamentação expendida pelo Tribunal ad quem, vem sendo igualmente acolhida por esta Corte, ao defender que a falta de apresentação das alegações, não desencadeia a deserção do recurso, se do requerimento de interposição de recurso poder extrair-se a pretensão do Recorrente e as questões jurídico-constitucionais alegadamente violadas pela decisão posta em crise, tal entendimento visa a salvaguarda do direito à tutela jurisdicional e efectiva.
É jurisprudência desta Corte Constitucional, como se refere no Acórdão n.º 622/2020 que “(…) a sanção de deserção do recurso, prevista no n.º 1 do artigo 292.º do CPC, é manifestamente desproporcional no seu conteúdo e efeitos, quando confrontada a natureza de falta (não essencial) com a relevância constitucional de tutela do direito constitucional ao recurso (n.º 6 do artigo 67.º da CRA)”.
Pelo exposto, da ausência de conclusões em sede das alegações do Ministério Público não resulta a violação de direitos ou ofensas a princípios constitucionais.
ii. Sobre a ilegalidade fundada no desrespeito do princípio da plenitude da assistência dos juízes
Como já mencionado, o Recorrente invoca o desrespeito do princípio da plenitude da assistência dos juízes, pois, nem todos participaram da audiência de julgamento, o que daria lugar a nulidade da decisão, tendo em conta o disposto nos artigos 2.º, 6.º, n.º 1 do 22.º, 23.º, 26.º, 28.º, n.º 1 e 4 do 29, 56.º, 57.º, n.º 1 do 67.º, 72.º, 174.º e 177.º, todos da CRA.
O princípio da legalidade, amplamente salientado na presente arguição do Recorrente, convoca especialmente em termos jurídico-constitucionais o preceituado nos artigos 175.º, n.º 1 do 177.º e nº 1 do 179.º da CRA, estabelecendo-se como fundamento do Estado de Direito, a consagrada limitação da actuação do poder jurisdicional à Constituição e a lei.
Nesta perspetiva, o princípio constitucional em ênfase, reprime a arbitrariedade, condicionando a actividade do julgador à lei, enquadrando-se neste concreto a exigência da norma infraconstitucional do julgado em colectivo, conforme postulava, à altura dos factos, o n.º 2 do artigo 45.º da Lei n.º 2/15, de 12 de Fevereiro, culminando com o vício de nulidade insanável, a falta do número legal de juízes ou a violação das normas que regulam a constituição do tribunal, na senda do disposto na alínea a) do artigo 140.º do CPPA, conjugada com o estabelecido no artigo 654.º do CPC.
Contudo, em relação à referida arguição extrai-se do processo que um dos juízes que compunha o Tribunal, por razões de saúde, ausentou-se da sala da audiência de julgamento, e não foi, como determina a lei, por esse motivo interrompida a sessão, que continuou na referida data.
Precisamente, a aludida ausência não ocorreu durante a fase de discussão da matéria de facto, mas já no debate circunscrito às alegações finais dos advogados. Ora, não obstante, a circunstância em concreto, impor a interrupção dos trabalhos em face do regime legal aplicável, todavia, importa para presente análise estabelecer um paralelo entre a aludida inobservância das normas procedimentais em concurso, e a afectação na sua essencialidade do princípio convocado e consequentemente do princípio da legalidade, para efeito de fiscalização da constitucionalidade da decisão recorrida.
Ora, ponderando que o princípio da plenitude da assistência dos juízes, vem estabelecer um limite àquela que é a actuação discricionária do julgador, em sede da apreciação da prova, ou seja, impondo um freio aos seus poderes de actuação, o aludido princípio, tem, todavia, antes de mais, como pano de fundo, o ensejo de assegurar que toda a percepção que consistiu na recolha e tratamento da prova, esteja concentrada no juiz ou na maioria dos juízes do colectivo que proferirá a decisão da matéria de facto, portanto, sem influência negativa no princípio da imediação e da oralidade.
Outro especto a considerar, o julgamento prosseguiu o seu curso na sessão seguinte com a presença de todos os juízes, além de que, logo no início, não ter sido levantada pela defesa, nenhuma objecção quanto ao sucedido, a qual justificasse a suspensão da audiência ou a repetição do acto anterior.
Ademais, entende esta Corte Constitucional, que o Tribunal a quo, ao prosseguir com o julgamento, evitou que o processo se tornasse ainda mais moroso, tendo em conta a situação carcerária do arguido, aqui Recorrente, salvaguardando o princípio da celeridade processual.
Os Juízes decidem em conferência, sendo fundamental a posição que cada um toma em relação às questões controvertidas. No caso em pauta, verifica-se que mais de um juiz votou favoravelmente sobre as questões que levaram a condenação do arguido (a fls. 5869).
Assim sendo, alcançando que a essência do princípio da plenitude da assistência do julgador, corolário do princípio da imediação e da oralidade da apreciação da prova, se traduz na fidelidade última da coerência decisória do julgador, implicando que este tenha de facto contacto imediato com a prova produzida no processo, não é, por conseguinte, a circunstância de um dos juízes do colectivo se ter pontualmente ausentado da sala de audiência, na altura das alegações finais, que o acto do julgamento tenha ficado comprometido na sua essencialidade.
Neste segmento, só é posto em causa o princípio da legalidade ora convocado, se a desconformidade com a lei for suficiente de atingir o núcleo mínimo irredutível da referência principiológica. Logo, o requisito da finalidade do princípio em questão condiciona o grau de lesão do princípio da legalidade, que no caso, é inoperante para efeito de inconstitucionalidade da decisão recorrida.
iii. Sobre a insuficiência da matéria de facto para integrar os elementos típicos constitutivos dos crimes de peculato, de branqueamento de capitais e de fraude fiscal
Noutro aspecto, o Direito Penal, norteado pelo princípio da legalidade, constitui um dos mecanismos de controlo social, por via da determinação de condutas típicas, exercendo a função de ordenação da vida em sociedade ao prever penalizações, às quais preside a teleologia de salvaguardar bens e valores juridicamente relevantes e que por isso mesmo, são objecto de protecção deste ramo de direito.
Deste ponto de vista, partindo da ideia de Hobbes que dizia que “todo delito é um pecado, mas nem todo pecado é um delito”, facilmente se conclui que num Estado de Direito, tal como é o nosso, se é verdade que muitas condutas podem ser tidas como ética ou socialmente reprováveis a sua qualificação como crime e, consequentemente, a punibilidade do seu autor, por força de princípios como o do nullum crimen, nulla poena sine lege scripta ou do nullum crimen sine lege praevia, implicam que o exercício da acção penal dependa, necessária e impreterivelmente, da prévia existência de lei formal, que tipifique as condutas puníveis, explicitando densificadamente os elementos do tipo objectivo e subjectivo de cada incriminação e que estabeleça a correspondente sanção, sob a forma de pena ou multa.
O princípio da legalidade impõe que o ajuizamento de condutas típicas seja feito por um tribunal legalmente competente, ao qual são conferidos vários poderes, incluindo o de valorar as provas e de fazer a subsunção jurídico-penal dos factos à lei.
Na lide em apreço, o Recorrente alega a violação dos princípios da Legalidade e da presunção de inocência e dos artigos 7.º e 52.º, ambos da CRA, e o artigo 62.º da anterior Lei Constitucional, por considerar que, no seu entender, o facto de a decisão recorrida não ter reconhecido o vício na manutenção da condenação apesar da insuficiente ou deficiente subsunção jurídico-penal dos factos aos elementos do tipo objectivo e subjectivo dos três crimes de peculato, de fraude fiscal e de branqueamento de capitais.
Outrossim, resulta provado que o Recorrente sempre foi funcionário público e os factos de que foi acusado e pelos quais foi pronunciado, julgado e condenado, embora posteriormente se tenha desvinculado do funcionalismo público, é verdade que continuou a exercer funções que materialmente são tipicamente públicas e, deste ponto de vista, como afirma a jurisprudência deste tribunal, «o critério assumido pelo artigo 327.º do então Código Penal, é o da natureza das funções exercidas e não propriamente no estatuto jurídico-laboral do agente» (vide Acórdão 341/2015, in Jurisprudência do Tribunal Constitucional - Coletânea de Acórdãos 2013-2014 e Legislação Fundamental, IV, Editora Lex Data 2015, pág. 812).
Actualmente, por força do n.º 3 do artigo 67.º da Lei n.º 5/20, de 16 de Janeiro – Lei do Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo, conjugado com os artigos 362.º e 376.º, todos do Código Penal vigente, e tendo ainda em conta o princípio da comunicabilidade das infracções, o âmbito do crime de peculato já não se restringe aos funcionários públicos, antes constituindo, um tipo penal passível de abranger todos aqueles que tenham alguma relação com os agentes do crime específico e que tenham dele participado ou comparticipado.
No caso sub judice, nada obstava a imputação ao ora Recorrente do crime de peculato, em razão da qualidade do sujeito, tendo em conta as funções que exercia à data da prática dos factos, pelo que não lhe assiste razão alguma, porquanto a decisão recorrida não violou o princípio da legalidade, tão pouco o da aplicação da lei penal mais favorável, como almeja.
Soma-se ao disposto pelo Recorrente nas suas alegações, a ausência do preenchimento dos elementos constitutivos dos crimes de fraude fiscal, de branqueamento de capital, considerando-se por isso inocente.
Vale aqui referir, uma vez mais, que ao Tribunal Constitucional não foi conferida, nem pela lei nem tão-pouco pela Constituição, o poder de reexame do julgamento da matéria de facto e de direito feito nas instâncias, sendo tais funções, por força da lei, da competência da jurisdição comum, sob pena de investir-se numa instância daquela jurisdição como bastamente se vem referindo ao longo da presente apreciação.
Como refere Jorge Pereira da Silva, não se afigura fácil discernir, em concreto, o alcance dos “deveres do legislador de protecção de direitos fundamentais mediante normas de organização, procedimento e processo”. Cfr. Deveres do Estado de Protecção de Direitos Fundamentais (dissertação de doutoramento), Universidade Católica Editora, 2015, págs. 642.
Sem embargo, como sublinha, no mesmo passo, o citado autor, é por demais “evidente a proximidade do tema com o das garantias institucionais”, sendo que estas garantias, como muito bem explicita José Carlos Vieira de Andrade, tendo embora a “…função principal e a intenção de garantir, realizar, promover a dignidade da pessoa humana centrada em posições subjectivas, não investe os indivíduos em situações de poder ou de disponibilidade com esse objecto específico”. Cfr. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 5.ª Edição, 2012, pág. 134.
Pelas razões aqui expendidas, não pode este Tribunal pronunciar-se sobre a insuficiência ou não dos elementos probatórios, por ser uma tarefa legalmente reservada ao juiz da jurisdição comum, ao qual cabe apreciar e valorar a prova produzida em juízo e, em consequência daquele que for o seu prudente juízo, subsumir os factos ao direito aplicável.
O Recorrente também invoca a insuficiência da matéria de facto para integrar os elementos típicos constitutivos dos crimes a que foi condenado, em resultado do alegado desprezo aos regimes jurídicos da prescrição e da amnistia, tal como da ofensa ao princípio da não retroactividade da lei penal mais desfavorável ao arguido.
É indisputável que a prescrição é, efectivamente, uma das formas de extinção do procedimento criminal, tal como dispõe o artigo 129.º do CPA. No entanto, da leitura dos autos não se vislumbra a prescrição dos crimes pelos quais o Recorrente foi condenado, considerando que os mesmos foram perpetrados no tempo, até a abertura do referido procedimento criminal, embora se reconheça que, por força do disposto no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto – Lei da Amnistia, todos os crimes comuns puníveis com pena de prisão até 12 anos praticados por cidadãos nacionais ou por estrangeiros até 11 de Novembro 2015 foram amnistiados.
Porém, essa norma excludente da responsabilidade criminal não operou no caso em apreço, porquanto os factos imputados ao arguido demonstraram que os ilícitos criminais pelos quais foi acusado, pronunciado e condenado, se consubstanciaram numa execução continuada da conduta delituosa neles manifestada, nos termos já decididos nas instâncias da jurisdição comum.
O Tribunal Constitucional entende, pois, que os presentes autos não demonstram a violação dos princípios da legalidade e da presunção de inocência, porque os crimes imputados ao Recorrente não caíram na alçada da amnistia, tão-pouco se tendo verificado a prescrição do procedimento criminal, pelo que considera a decisão recorrida conforme a Constituição e, em consequência, são improcedentes os pedidos formulados, bem como os alegados vícios de inconstitucionalidade.
O Recorrente alegou ainda, ter sido violado o princípio da legalidade pelo facto de as instâncias jurisdicionais anteriores não terem observado o princípio da não retroactividade da lei penal e não terem aplicado a lei mais favorável ao arguido.
Com efeito, a dogmática do Direito Penal ensina que a Lei Penal só dispõe para o futuro, afigurando-se pertinente concitar a esse respeito a lição de Manuel Simas Santos, quando assevera que “o princípio da legalidade está associado a um princípio da não retroatividade, na medida em que exigindo a lei uma prévia definição de conteúdos com relevância criminal e das respectivas censuras, proclama necessariamente que a previsão legal apenas se volva para situações futuras e nunca para situações passadas” cfr. Direito Penal Angolano, Escolar Editora Angola, 2020, pág. 20.
O entendimento doutrinário é o mesmo do legislador penal angolano, que consagrou no artigo 2.º do Código Penal Angolano (CPA), que as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente, sem prejuízo da aplicação da lei mais favorável.
Assim, na senda da retroactividade da norma mais favorável, que alega o arguido ter sido violada, importa dizer que tais argumentos não colhem, na medida em que o Código Penal Angolano, aprovado pela Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro, diploma que foi aplicado aquando da condenação do aqui Recorrente, pune o crime de peculato, nos termos do artigo 362.º, com uma pena compreendida entre os 5 (cinco) aos 14 (catorze) anos de prisão, ou seja, com uma moldura penal abstractamente aplicável, menos severa do que aquela que estava prevista no artigo 313.º, conjugado com o artigo 437.º, ambos do Código Penal anteriormente vigente, que previa para o mesmo crime uma pena compreendida entre os 12 (doze) e 16 anos (dezasseis) de prisão maior, tal como referiu, e bem, o Tribunal ad quem no Acórdão hic et nunc sindicado.

iv. Sobre a alegada omissão de pronúncia por parte do tribunal recorrido referente a liquidação de património incongruente e indemnização
Vale referir que, na esteira do que foi o entendimento que fez vencimento no Tribunal Supremo (cfr. fls. 7368 e seguintes), não colhem os argumentos do Recorrente, na medida em que aquela instância se pronunciou de forma fundamentada com base na Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro – Lei Sobre o Repatriamento Coercivo e a Perda Alargada de Bens, (LRCPAB), sendo particularmente impressivo o excerto do Acórdão recorrido no qual sublinham “…que o arguido apresenta um património muito superior aos seus rendimentos, pelo que se procedeu a perda alargada, sem haver necessidade sequer de se averiguar se resultantes ou não da prática de um crime”.
Como se retira ainda a fls. 7369 e verso do douto Acórdão recorrido, expressando uma valoração cujo sentido e alcance epistemológico e implicações jurídicas, este Tribunal concorda, “no âmbito do Direito Penal cabe ao Estado fazer a prova dos crimes, tal como, ocorreu no caso em análise. Porém, a referida Lei vem estabelecer este regime especial apenas quanto ao património incongruente para garantir prejuízos menores e ao mesmo tempo dissuadir a prática de ilícitos desta gravidade com consequências nefastas até para valores maiores como a vida, integridade física e outros sem que se possa falar de qualquer violação de algum princípio constitucional ou ofensa ao Direito”.
Com efeito, está consagrado na legislação penal angolana, por força do disposto no artigo 122.º do CPA, o instituto jurídico da perda alargada de bens, que resulta já da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, sendo de concitar sobretudo, por um lado, o disposto no artigo 5.º da referida Lei, que estatui ter-se por património incongruente aquele correspondente à diferença entre o valor do património do agente e o que seria compatível com o seu rendimento lícito e, por outro lado, o disposto no n.º 1 do artigo 8.º do mesmo diploma legislativo, de onde decorre que, sem prejuízo da apreciação pelo tribunal da prova carreada para os autos, pode o agente provar a origem lícita dos bens a que alude o artigo 6.º da Lei.
Por força destes diplomas legais, entende a doutrina bastar uma “presunção de ilicitude baseada na incongruência entre o património reputado ilícito e aquele efectivamente titulado pelo arguido ou do qual é beneficiário efectivo” (Cfr., Hermínio Carlos Silva Rodrigues, in Recuperação de Activos e Perda Alargada de Bens em Angola, 2021, Almedina Pág. 29).
Tudo visto e ponderado, há dois aspectos estruturantes que cumpre ter presente e que decisivamente marcam o controlo da constitucionalidade, o único que incumbe a este Tribunal; por um lado, o facto de o objecto do controlo da constitucionalidade – in casu, o Acórdão recorrido – dever ser perspectivado apenas em função da respectiva compatibilidade ou conformidade com a CRA e, por outro lado, como sublinha Jorge Miranda, a inarredável constatação de que a questão de inconstitucionalidade é “uma questão de direito, e não de facto”. In Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 4.ª Edição, 2013, pág. 195.
Destarte, improcede o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade por não se provar que na decisão recorrida tenham sido violados quaisquer direitos fundamentais ou ofendido os princípios invocados pelo Recorrente.


Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, POR NÃO TEREM SIDO OFENDIDOS OS PRINCÍPIOS, DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS ALEGADOS PELO RECORRENTE.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 05 de Julho 2023.
OS JUIZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira 

Dr. Gilberto de Faria Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira

Dra. Maria de Fátima de Lima D’A. B. da Silva (Relatora)

Dr. Simão de Sousa Victor