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ACÓRDÃO N.º 826/2023

 

PROCESSO N.º 1007-A/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

VELOSI ANGOLA-Prestação de Serviços, Recorrente, com melhor identificação nos autos, veio junto do Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Despacho proferido pelo Juiz Conselheiro da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, que julgou deserto o recurso em virtude do não pagamento das custas judiciais devidas pelo recurso.

Discordando da decisão, a Recorrente, veio arguir, em síntese, as seguintes inconstitucionalidades:
1. O Tribunal recorrido julgou deserto o recurso por alegada falta de pagamento de custas judiciais devidas pela interposição do recurso, nos termos do n.º 1 do artigo 292.º do Código de Processo Civil;

2. Sucede que o n.º 1 do artigo 292.º do Código de Processo Civil viola ostensivamente normas e princípios fundamentais consagrados na Constituição da República de Angola, designadamente, os princípios do direito ao recurso e tutela jurisdicional efectiva e do direito ao julgamento justo e conforme, previstos nos artigos 29.º e 72.º da CRA, respectivamente;

3. A inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 292.º do CPC já foi declarada anteriormente por este Augusto Tribunal (Tribunal Constitucional), em sede dos autos de recurso extraordinário de inconstitucionalidade que correu sob o n.º 396-A/2013, o qual determinou a inconstitucionalidade do artigo na parte que sanciona com a deserção (…);

4. O atraso ou o não pagamento de custas judiciais não deve necessariamente sacrificar o direito fundamental ao recurso, nem violar o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva;

5. Ao referir-se no citado n.º 1 do artigo 292.º do CPC que a falta de pagamento de custas é causa de deserção dos recursos nos termos legais, a lei apenas impede que o recurso siga, não cominando com a deserção a falta de pagamento das custas, pelo que a deserção configura uma negação de acesso à justiça, pois o fundo da causa não chegou a ser analisado pelos tribunais em virtude de um formalismo processual, o que configura quebra de garantia constitucional da tutela jurisdicional efectiva, estabelecido no artigo 29.º da CRA;

6. A CRA, no seu artigo 67.º, considera o direito ao recurso como uma garantia constitucional, qualificado como direito fundamental de primeira geração integrado na categoria dos direitos, liberdades e garantias;

7. O condicionamento da garantia constitucional do direito ao recurso, como sucede no caso em apreço, é inconstitucional por restringir a universalidade de direito ao recurso e por limitar a sua essência, abrangência, muito para além da necessidade, proporcionalidade e razoabilidade, estabelecidas imperativamente no artigo 57.º da CRA.
Terminou pedindo provimento ao presente recurso, e, por conseguinte, a revogação do despacho recorrido, por força das invocadas inconstitucionalidades.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para, em seguida, decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º e do § único da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

Foi proferido um despacho que julgou deserto o recurso por falta de pagamento de custas judiciais, pelo que tem, o Plenário do Tribunal Constitucional, competência para apreciar o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
A impetrante é Recorrente no Processo n.º 327/2021, no qual foi prolactado o Despacho recorrido, pelo que, tem legitimidade para interpor o presente recurso.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto apreciar se o Despacho do Juiz Conselheiro da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, que julgou deserto o recurso extraordinário de inconstitucionalidade pelo não pagamento das custas do processo, violou ou não o direito ao recurso, tutelado pelo princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o direito a julgamento justo, nos termos dos artigos 29.º e 72.º, ambos da CRA.

V. APRECIANDO
O cerne do presente recurso reside em apreciar se a cominação da deserção do recurso pelo não pagamento das custas do processo, determinada pelo despacho recorrido, resvalou em violação dos princípios constitucionais do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, e do direito a julgamento justo e conforme.
Interposto o recurso extraordinário de inconstitucionalidade sobre o Acórdão do Tribunal Supremo, a Recorrente foi notificada aos 28 de Outubro de 2021, do Despacho de fls. 260, para examinar, impugnar ou pagar as custas, caso as reputasse conforme e dentro do prazo legal.
Vencido o prazo legal, a Recorrente não procedeu ao pagamento das custas do processo, ipso factum, o Tribunal ad quem fez recurso ao disposto no n.º 1 do artigo 292.º do Código de Processo Civil e aplicou o efeito da deserção do recurso interposto pelo não pagamento das custas.
Decisão contra a qual a Recorrente imputa, essencialmente, dois vícios de inconstitucionalidade: a violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o do julgamento justo e conforme, artigos 29.º e 72.º ambos da CRA.
Nesta esteira, cumpre-nos ajuizar se a decisão em equação violou os sobreditos princípios.

Sobre a violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva
O Princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva encontra-se consagrado no artigo 29.º da CRA, disposição que é imprescindível para protecção dos direitos fundamentais, componente nuclear de um Estado democrático de direito.
Este preceito constitucional assume uma abrangência expressivamente larga, abarcando um rol de subprincípios conexos, nomeadamente, o princípio do acesso ao direito e aos tribunais, princípio da celeridade da composição dos diferendos, princípio do patrocínio judiciário, princípio da adequação funcional das normas procedimentais ao direito substantivo, princípio do contraditório, o direito ao recurso das decisões judiciais (…).
A Recorrente, por seu turno, ao invocar a violação do princípio em pauta, fê-lo a pretexto de, no seu entender, ter a decisão recorrida violado o seu direito de recurso abarcado pelo direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.
Vejamos,
A Recorrente opõe-se ao Despacho que determinou a deserção do recurso, por fazer operar um efeito cominatório que, na sua óptica, é inconstitucional por contender com o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, artigo 29.º da CRA.
Ora,
Um dos postulados do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, traduz-se na proibição de imposição de pressupostos processuais que pela sua essência e modo de funcionamento configurem obstáculos excessivos e irrazoáveis para realização do direito substantivo.
Frise-se, no entanto, que é uma veleidade pensar-se que a consagração constitucional do direito de acesso aos tribunais e a tutela jurisdicional efectiva seja de per si repulsiva à imposição de pressupostos processuais instrumentais à obtenção do serviço da administração da justiça.
A justiça é, igualmente, um serviço público que é apenas tendencialmente gratuito e não absolutamente grátis, ipso factum a lei impõe aos interessados a obrigação de pagamento das custas do processo, que é comportável com a garantia constitucional do acesso aos tribunais e tutela jurisdicional.
Todavia, o juízo da não inconstitucionalidade da obrigatoriedade de pagamento de custas não é compatível com a imposição de cominações desproporcionais à garantia privilegiada do direito de acesso aos tribunais e tutela jurisdicional efectiva.
Ou seja, o Tribunal Constitucional assinala que, embora, em princípio, a obrigatoriedade do pagamento das custas não seja contrária à CRA, maxime ao direito à tutela jurisdicional efectiva, porém, a cominação da deserção do recurso pela mora ou não pagamento das custas é ofensiva à primazia da tutela jurisdicional efectiva, vide Acórdãos n.ºs 375/2015, 387/2016, 617/2020, 633/2020, 726/2022 e 780/2022.
A este propósito, vejamos, a título de exemplo, o Acórdão 393/16 do Tribunal Constitucional que apregoa o entendimento de que “o atraso ou o não pagamento de custas judiciais não deve necessariamente sacrificar o direito fundamental ao recurso.
Embora se venha entendendo que a falta de pagamento das custas contadas no processo em que se interpõe recurso tem como consequência a deserção deste, a verdade é que a lei não é unívoca a esse respeito, pois, como acima dito, o artigo 116.º do CCJ apenas impede que o recurso siga, não cominando com a deserção a falta de pagamento das custas.
A deserção configura mesmo negação do acesso a justiça, pois o fundo não chegou a ser analisado (…) em virtude de um formalismo processual (…).
Esta situação configura quebra da garantia constitucional de tutela jurisdicional efectiva, o que constitui desrespeito ao estabelecido no artigo 29.º da CRA”.
Ademais, constata-se dos autos, a fls. 437, que a Recorrente efectuou o pagamento das custas finais, a 16 de Junho de 2022.
Nesta conformidade, o Tribunal Constitucional entende que o Despacho recorrido, que determinou a deserção do recurso, por falta de pagamento das custas, sacrifica o direito ao recurso da Recorrente, coberto pelo princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, conforme o artigo 29.º da CRA.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em: DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 05 de Julho de 2023.
OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira 

Dr. Gilberto de Faria Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)

Dra. Maria de Fátima de Lima D’A. B. da Silva 

Dr. Simão de Sousa Victor