ACÓRDÃO N.º 838/2023
PROCESSO N.º 959-A/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Administração Geral Tributária, Recorrente, com os demais sinais de identificação nos autos, foi Agravada no Processo n.º 154/15, que correu os seus termos na 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, cuja decisão julgou procedente o recurso, considerando prescrita a dívida exequenda (fls. 152-175).
Inconformada, interpôs recurso extraordinário de inconstitucionalidade, ao abrigo da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, ambos da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), bem como da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), por considerar violados os princípios constitucionais da legalidade e igualdade jurídica e tributária, previstos nos artigos 23.º e 175.º da CRA (fls. 181 e 182).
Neste Tribunal, admitido o recurso (fls. 224), e após ter sido notificada para apresentar as suas alegações de recurso (fls. 225-227), veio a Recorrente, a fls. 228 dos autos, desistir do recurso por falta de interesse processual, e requerer a respectiva homologação.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, ambos da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
Nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC, e do artigo 108.º do Código do Processo Tributário, aprovado pela Lei n.º 22/14, de 5 de Dezembro, dispõe, a Recorrente, de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto apreciar se o Acórdão prolactado pela 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 154/15, ofendeu ou não os princípios constitucionais da legalidade e igualdade jurídica e tributária, previstos nos artigos 23.º e 175.º da CRA.
V. APRECIANDO
A Recorrente, devidamente notificada para apresentar as suas alegações, manifestou expressamente a sua vontade de desistir do recurso (fls. 228).
Assim, a única questão a decidir nos presentes autos, em função da qual se fixa o “thema decidendum”, consiste em saber se é válida e operante a desistência do recurso impetrada pela Recorrente antes de ter oferecido as suas alegações.
A desistência de recurso vem aludida nos artigos 682.º e 683.º do CPC, aplicáveis ao processo por força das disposições combinadas dos artigos 52.º e 39.º da LPC, mas não fixam, estas normas ou quaisquer outras, o seu regime legal.
Relativamente aos referidos preceitos, afirmava Alberto dos Reis que “o recorrente pode exercer livremente o direito de desistir do recurso; não carece da anuência nem da parte contrária, nem do recorrente subordinado ou adesivo que porventura haja”. In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1952, pág. 284.
Isto porque, entendia o Autor, o regime previsto no presente Código é diverso do que se previa durante a vigência do “Código Velho”, no seu artigo 986.º, segundo o qual o recurso interposto por uma das partes aproveitava à parte contrária. “Hoje o regime é outro. Pelo artigo 682.º, se ambas as partes ficarem vencidas, cada uma delas terá de recorrer se quiser obter a reforma da decisão na parte que lhe foi desfavorável; quer dizer, o recurso interposto por uma das partes não aproveita à parte contrária”.
Quanto à forma de manifestação de vontade exigida para o efeito, conclui o citado Autor que a lei não estabelece qualquer exigência, e, por isso, pode a desistência exprimir-se por simples requerimento ou por qualquer outro modo admissível no processo.
Sobre esta matéria, José Lebre de Freitas assevera que a “desistência de recurso é um acto unilateral da parte, de natureza superveniente, visto que só se pode desistir dum recurso anteriormente interposto”. In Código de Processo Civil Anotado, Tomo I, Volume III, Coimbra Editora, 2008, pág. 31.
Por sua vez, Hermenegildo Cachimbombo entende dever submeter-se a desistência do recurso, com as necessárias adaptações, ao regime geral consagrado no artigo 293.º e seguintes do CPC, que definem o regime para desistência do pedido e da instância. In Manual dos Recursos no Processo Civil Angolano, 2.ª Edição, Versão Actualizada, Casa das Ideias Editora, Luanda, pág. 71.
Embora estes regimes coincidam quanto à liberdade de desistir, enquanto manifestação do princípio do dispositivo, a verdade é que, das normas do n.º 3 do artigo 682.º e do n.º 4 do artigo 683.º do CPC infere-se que, ao contrário do que dispõe o n.º 1 do artigo 296.º do mesmo diploma, a desistência do recurso independe de consentimento da parte adversária, ainda que esta seja recorrente subordinado ou recorrente adesivo.
No entanto, não se deve confundir a desistência do pedido ou da instância, a que aludem os artigos 293.º e seguintes, com a desistência do recurso, porquanto aquela é um acto do autor e esta um acto do recorrente, que tanto pode ter sido o autor como o réu, posições processuais que têm substancial implicância sobre o regime de desistência concretamente aplicável.
Ora, como é consabido, a desistência da instância é um acto unilateral que consiste na declaração expressa da parte de querer renunciar à acção proposta, mas sem renunciar ao direito que através dela pretendeu fazer valer. A desistência da instância faz por isso cessar o processo, sem, contudo, extinguir o direito existente, que dependerá da aceitação do réu, se este já tiver tido intervenção no processo, com oferecimento da contestação.
A desistência do pedido, segundo Miguel Teixeira de Sousa, é o negócio unilateral através do qual o autor reconhece a falta de fundamento do pedido formulado.
Com efeito, a desistência do pedido representa o reconhecimento pelo autor de que a situação jurídica alegada não existe ou se extinguiu, arrastando consigo a extinção da situação jurídica que pretendia tutelar (n.º 1 do artigo 295.º do CPC). A mesma pode ser total ou parcial (n.º 1 do artigo 293º do CPC), e não prejudica a reconvenção, se esta não depender do pedido formulado pelo autor. In Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex Editora, 1997, págs. 205 e 206.
A desistência do pedido faz extinguir o direito que o autor pretendia fazer valer através da acção, tornando inútil o prosseguimento da causa; e a desistência da instância faz extinguir a causa, pura e simplesmente sem que haja decisão de mérito.
Por seu turno, a desistência do recurso é o acto pelo qual o recorrente manifesta ao órgão judicial a vontade de que não seja processado e julgado o recurso que interpusera. Isto é, pela desistência, a parte que interpõe o recurso, revoga apenas a sua pretensão de ver reapreciada a causa, impedindo o seu conhecimento (vide, entre outros, MOREIRA, José Carlos Barbosa, Comentários ao Código de Processo Civil, Lei n.º 5.869, de 11 de Janeiro de 1973, Vol. V: artigos 476.º a 565.º, 15.ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 2010, pág. 331; MIRANDA, Gilson Delgado, Código de Processo Civil Interpretado, 3.ª Edição, São Paulo: Atlas, 2008, pág. 1732).
No caso dos recursos, a situação material controvertida já foi dirimida jurisdicionalmente, e a parte que desiste do recurso apenas renuncia a um determinado acto do processo, que consiste na impugnação da decisão proferida pelo tribunal a quo, e não à acção ou à instância, propriamente dita, porquanto, tal como asseveram Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, a interposição do recurso não importa a constituição de uma nova instância, ou mesmo a sua renovação. In Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1946, pág. 510; Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, pág. 271.
O direito de recorrer como faculdade de submeter as decisões judiciais a uma nova apreciação, por um outro tribunal, que, eventualmente, as revogue ou altere, não se esgota no acto de interposição e de apresentação de alegações, mas, igualmente, no de abdicar a essa pretensão de uma nova reapreciação judicial, já que, entretanto, se conformou com o decidido, ou porque veio a obter, por outra via, o efeito que pretendia alcançar com o recurso, conforme afirma, no seu requerimento, a Recorrente.
Isto porque, ressalvados os casos de recurso legalmente obrigatório para o Ministério Público, o recurso é sempre facultativo para a parte vencida, ainda que a acção tenha por objecto direitos indisponíveis. A parte vencida pode conformar-se com a decisão, nomeadamente por a considerar justa ou por entender que as possibilidades de êxito no recurso seriam escassas, pelo que, afirma Lebre de Freitas, “constituiria violência inaceitável do legislador a imposição de um recurso obrigatório ou a proibição de desistência do recurso” (Ob. Cit. Pág. 31).
De acordo com o disposto pelo n.º 1 do artigo 666.º do CPC, proferida a sentença, fica, em princípio, imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, que já não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu, ainda que adquira a convicção de que errou, isto é, já se extinguiu o “tempo do tribunal”. Diversamente, o mesmo não acontece com o “tempo das partes”, porquanto, para estas, a sentença ou acórdão só adquire força obrigatória, dentro e fora do processo, com o respectivo trânsito em julgado, nos termos das disposições combinadas dos artigos 671.º e 677.º do CPC, nada impedindo que, até a prolacção da decisão em recurso, o recorrente possa, por via de regra, exercer o seu direito de desistir do recurso que interpôs.
Deste modo, conclui-se, entretanto, que a desistência do recurso é livre e independe da anuência da parte contrária, podendo ocorrer a qualquer momento, ou seja, desde a interposição do recurso até o instante imediatamente anterior ao julgamento da decisão. E, contrariamente ao que requere a Recorrente, a desistência do recurso independe também de homologação para produzir os seus efeitos, que são imediatos e desfavoráveis a quem a pratica, devendo o tribunal “conhecer do acto e exercer sobre ele o normal controlo sobre os actos processuais em geral e apurar se a manifestação de vontade foi regular”. MOREIRA, José Carlos Barbosa, In Comentário ao Código de Processo Civil, 12.ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 2005, Vol. V, pág. 331.
Isto assente, e compulsados os autos, verifica-se, a fls. 228 e 229, que o requerimento de desistência, apresentado por escrito, está redigido de forma suficientemente clara a que o Tribunal conheça da pretensão da Recorrente, de acordo com o sentido que dele possa deduzir um declaratário normal (cfr. n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil), tendo o mandatário poderes forenses para desistir do presente recurso (fls. 250 e 251).
A desistência do recurso tem como consequência a consolidação da decisão recorrida, ou seja, o seu trânsito em julgado, equivalendo à aceitação da decisão proferida, com a única diferença quanto ao momento da prática do acto pela parte que, no caso de aceitação, tem lugar antes da interposição do recurso e, na hipótese de desistência, depois dela.
Assim sendo, extingue-se a instância, por desistência do recurso, termos da alínea f) do artigo 287.º e do n.º 1 do artigo 295.º, ambos do CPC.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DECLARAR EXTINTA A INSTÂNCIA POR DESISTÊNCIA DO RECURSO.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 22 de Agosto de 2023.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva