ACÓRDÃO N.º 839/2023
PROCESSO N.º 1045-A/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Pedro António Lourenço, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional impetrar recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que confirmou a decisão condenatória proferida no âmbito do Processo de Querela n.º 125/17-A, que correu trâmites na 10.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda.
Nos termos do Acórdão condenatório, o aqui Recorrente foi sancionado na pena de 16 anos de prisão maior pela prática do crime de homicídio voluntário simples, previsto e punível pelo artigo 349.º do Código Penal, vigente à data dos factos.
Nas alegações submetidas a esta Corte Constitucional, o Recorrente considera que o Tribunal recorrido, ao confirmar a condenação do Tribunal de primeira instância, prolactou uma decisão que atenta contra o direito ao julgamento justo e conforme pelo facto de ter sido julgado sem prova bastante que sustentasse a referida incriminação e por, em consequência, não ter sido aplicado o princípio in dubio pro reo.
Nesta perspectiva, alegou, em síntese, o seguinte:
1. O processo penal é baseado em provas e na materialização dos factos, sendo que, as suas sequências lógicas e coerentes, devem conduzir à absolvição ou à condenação, mas sempre com a querela do princípio de presunção de inocência.
2. O direito a um julgamento justo e conforme a lei não assenta na ideia de existir um culpado logo ab initio da instrução processual e, muito mais ainda, quando as provas ao processo falham ou não existem.
3. A doutrina penal ensinou-nos que o crime de homicídio voluntário é um crime material em que, para a devida aplicação da dosimetria penal, devem estar reunidos cumulativamente todos os seus elementos, sendo: o facto, a tipicidade, a ilicitude e a culpa.
4. Ao folhear o processo, vimos a ausência do primeiro e do quarto elementos, que deveriam necessariamente compor a orquestra para a penalidade adequada, mas os Magistrados do processo limitaram-se a encontrar um culpado para mais um processo que caiu nas suas mãos.
5. As provas materiais nunca apareceram e o exame de balística mostrou-se inconclusivo, o que, por seu turno e em abono da verdade, deveria dar lugar ao in dubio pro reo, mas isso não interessava ao Tribunal.
6. O Tribunal baseou-se única e simplesmente nos articulados da acusação para dar como provados os quesitos por ele criado, conforme se pode aferir na 4ª página do Acórdão condenatório do Tribunal a quo, no capítulo da “apreciação dos factos”, que diz: “os factos acima descritos reproduzem no essencial a prova vertida nos autos, suficiente para a responsabilização do réu”.
7. Porém, o réu não cometeu o crime de que foi acusado e condenado, nem mesmo a perícia e a balística conseguiram provar (conforme fls. 85, 87, 106 e 107 dos autos), na comparação efectuada, não se tendo verificado qualquer relacionamento com a matéria probatória.
Destarte, o Recorrente termina pedindo ao Tribunal Constitucional que declare a inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo.
O processo foi à vista do Ministério Público que pugnou pelo não provimento do presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, considerando, no essencial, na sua promoção, o seguinte: “(…) dos autos constata-se que o Acórdão recorrido procedeu a uma descrição sumária, mas concisa, dos factos que determinaram a morte do infeliz, apontando o arguido, aqui Recorrente, como seu autor, fls. 264 v e 265.
Verifica-se igualmente que a prova que sustentou a responsabilidade do arguido foi produzida em obediência aos princípios do direito probatório.
Por isso, não parece ter o Acórdão em crise violado as garantias alegadas pelo Recorrente (…)”.
Colhidos os vistos cumpre, agora, apreciar e decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que violem princípios, direitos, garantias e liberdades, previstos na Constituição, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente cabíveis.
A decisão ora impugnada esgota, assim, a cadeia recursória em sede da jurisdição comum.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, conjugado com a alínea b) do artigo 463.º do Código do Processo Penal Angolano, dispõe de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, enquanto parte vencida no processo que tramitou na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, com o n.º 3642/19.
IV. OBJECTO
Constitui objecto deste recurso verificar a alegada inconstitucionalidade do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, por violar o direito ao julgamento justo e conforme e, em consequência, o princípio in dubio pro reo.
V. APRECIANDO
A questão central trazida à apreciação desta Corte Constitucional radica no facto de, como sabido, a actividade processual penal estar juridicamente vinculada, em todas as suas fases, ao disposto na Constituição e na lei, cujos princípios e normas traduzem, em simultâneo, limites ao exercício do ius puniendi do Estado e garantias para quem se encontra na posição de infractor (arguido ou réu).
Em face disso e configurando o julgamento justo e conforme um direito associado ao procedimento criminal, que incorpora, assim, uma dimensão impositiva de protecção jurídica, o aqui Recorrente vem arguir a violação do presente direito, colocando em causa, grosso modo e como já antes referido, a actividade probatória que determinou a sua condenação como autor do crime de homicídio voluntário simples, situação que, como alega, resultou na concomitante violação do principio in dubio pro reo.
Sendo que a matéria relativa à produção e à valoração da prova podem, efectivamente, configurar dimensões concretizadoras do direito ao julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA, caberá agora aferir se, em face dos fundamentos de direito trazidos ao processo e de todo o processado, a sindicância requerida a este Tribunal Constitucional é ou não atendível.
a) Da alegada violação do julgamento justo e conforme
É consabido que a actividade probatória é determinante para o processo de demonstração da verdade dos factos que entram na constituição do crime e que são imputados ao infractor. É a partir da prova que se torna possível aferir se foi cometido ou não um delito, se quem o praticou deve ou não ser punido e em que medida, se for caso disso. A prova constitui, assim, o elo essencial entre um acontecimento jurídico e a realização da justiça, o escopo fundamental do direito, conforme se lê em Curso de Direito Processual Penal: Teoria (Constitucional) do Processo Penal, Walter Nunes da Silva Júnior, Renovar, 2008, págs. 472 a 473, em citação.
Deste modo, a prova, enquanto pressuposto de realização da justiça, por aplicação do direito ao caso concreto, integra a fundamentação de facto da decisão judicial, seja ela no sentido da condenação ou da absolvição, servindo, nesta medida, de garantia de concretização do processo justo e de eliminação do arbítrio, no respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Aliás, todo o processo judicial está subordinado ao concreto exercício pelas partes do direito de provar, por confrontação ou verificação da verdade dos factos, ao abrigo de um processo destinado a demonstrar, no plano subjectivo e objectivo, a prática de conduta objecto de tutela penal. E este é um direito exercido em todas as fases do processo, desde a fase da instrução, à fase de julgamento em que é produzida e valorada a prova decisiva para absolver ou condenar o infractor.
No caso sub judice, a Câmara Criminal do Tribunal Supremo, na sua releitura de todo o processo, não colocou em causa nem a determinação dos factos, nem a sua tipicidade e nem a medida da pena aplicada.
Ao confirmar o juízo decisório do Tribunal a quo, esta Câmara considerou, assim, ser suficiente para a responsabilização do aqui Recorrente a prova vertida dos autos. A este respeito pode ler-se no Acórdão condenatório proferido pela 10.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, o seguinte: O Tribunal funda a sua convicção tendo em conta as provas produzidas na fase da instrução, mormente relatório médico, autos de exame e depoimentos, assim como a matéria produzida em fase de discussão e julgamento, que foram dados como esclarecedores para a matéria em questão, (fls. 241 dos autos).
No aresto aqui em referência o Tribunal dá, por conseguinte, como provado o facto de o agora Recorrente ter disparado a sua arma e ter atingido mortalmente a vítima que em vida se chamou Henriques Edvaldo de Melo, sendo aquele disparo a causa da morte, conforme relatório médico-legal, que concluiu que a vítima teve morte violenta, causada por choque hipovolémico, ferimento perfurante incompleto no tórax, resultante de disparo de projéctil de arma de fogo (fls. 241 dos autos).
Na óptica do Recorrente, o Tribunal não conseguiu, porém, provar ter sido ele o autor do disparo, residindo aí a razão fundante para a impugnação da decisão recorrida, ainda que esta se sustente na prova carreada aos autos.
Ora, como espelhado na sua jurisprudência, nos poderes de cognição desta Corte Constitucional não cabe proceder a um juízo de valoração fáctico concreto da controvérsia judicial nos termos em que se processa no plano da jurisdição comum. E isto na medida em que o Juiz, no processo de descoberta da verdade, tanto formal, como material, forma a sua convicção ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, ainda que tal não pressuponha, acentue-se, uma valoração arbitrária, infundada ou ilógica da matéria probatória. Nas palavras de Vasco Grandão Ramos, o Juiz tem a faculdade de decidir, dando ou não os factos como provados, de acordo com a sua livre convicção, mas a convicção pessoal do juiz terá de obrigatoriamente formar-se a partir da prova produzida no processo e na condição, naturalmente de, na produção da prova, se terem respeitado as regras aplicáveis de direito probatório. In Direito Processual Penal – Noções Fundamentais, Colecção da FDUAN, 6ª edição, 2009, págs. 96 a 97.
De acrescer, ainda, que no processo de formação da convicção do julgador, que vai fundamentar o juízo de decisão penal, releva, igualmente, o contacto mediato que, em sede de audiência de julgamento, este estabelece com a prova, tendo em conta a matéria probatória que, oralmente, é produzida, discutida e valorada, bem como a relação de proximidade que se estabelece, nessa instância, entre o Juiz e os demais intervenientes processuais.
Assim compreendendo, este Tribunal Constitucional tem entendido que, em face dos seus poderes de cognição, limitados que estão aos aspectos jurídicos constitucionais da decisão impugnada, não lhe compete sindicar o processo de formação da livre convicção do Tribunal, em face dos factos tidos como provados e não provados, desde que o conteúdo da decisão judicial reflicta, lógica e racionalmente, dentro das balizas legais e do direito, a opção por um dado juízo decisório, validamente controlável e justificável, (vide, a exemplo, o Acórdão nº 821/2023).
Ante o expendido, e tendo como referência o Código do Processo Penal de 1929, vigente à data dos factos, não se retira dos autos que, quer na fase de instrução, quer na de julgamento, as diferentes normas e critérios legais associados ao direito probatório, como, a exemplo, os vertidos nos artigos 173.º, 261.º ou 437.º, tenham sido violados, pressupostos que poderiam colocar em causa a validade jurídico legal da decisão condenatória ora impugnada.
Nesta medida, não resulta violado o direito ao julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA, um direito ínsito ao Estado Democrático de Direito e pressuposto de segurança jurídica, que pode ser aferido a partir dos seus múltiplos desdobramentos que concretizam garantias de defesa e protecção de direitos perante as instâncias judiciais.
Este é, como de conhecimento, um direito que integra uma dimensão formal, vinculada às garantias do processo equitativo, e uma dimensão material ou substancial, directamente relacionada com a resolução do caso concreto, a que se associa a matéria relativa à produção e valoração da prova, elemento determinante da decisão judicial, visto que essencial para a formação da livre convicção do Julgador, no que toca à verificação da verdade dos factos que fundamentam a responsabilidade criminal do infractor.
O direito ao julgamento justo e conforme está, como se vislumbra e já antes aflorado, intrinsecamente conexionado com a noção de justiça, que se deve reflectir na resolução do litígio e na formação do consequente juízo decisório, por aplicação do direito e das soluções normativas que mais se adequem à justa resolução do caso concreto.
Ora, o aresto posto em crise é suficientemente elucidativo, em face da prova carreada ao processo, quanto à culpabilidade do Recorrente e das circunstâncias de facto que ditaram a sua condenação na pena de 16 anos de prisão maior, pelo cometimento do crime de homicídio voluntário simples, previsto e punível pelo artigo 349.º do Código Penal, vigente à data dos factos.
b) Da alegada ofensa ao princípio do in dubio pro reo
Do direito penal substantivo resulta que ninguém pode ser condenado sem culpa, sendo esta a medida da pena. Consequentemente, não há pena sem culpa, o que significa que o juízo de censurabilidade sobre prática de conduta penalmente relevante só pode ser formulado a partir da prova produzida e valorada nesse sentido.
Se tal não for possível, se não houver certeza quanto à existência dos factos que merecem tutela penal, porque subsumíveis a um determinado tipo legal de crime, quanto à forma e circunstâncias em que foram cometidos e por quem os praticou, é porque está instalada a dúvida, o que obriga o Julgador a decidir a favor do arguido.
É neste sentido que se afirma o princípio in dubio pro reo, princípio fundamentalmente ligado ao direito probatório e cuja concretização se traduz em não permitir que o Juiz decida contra o acusado quando subsistirem dúvidas com relação à prova da questão de facto, cuja valoração deve, por consequência, ser feita a favor do arguido.
E, como bem se sabe, a dúvida aqui em causa deve ser aquela que impeça racional, compreensível e logicamente a condenação do acusado, já que parametrizada por critérios de razoabilidade. É, assim, a designada dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given, como referida no direito anglo-saxónico).
No demais, o princípio do in dubio pro reo pode também ser compreendido como corolário do princípio da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 67.º da CRA e, igualmente, no n.º 1 do artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que dispõe que, “toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”. Esta formulação é também retomada, mutatis mutandis, em diferentes instrumentos de direito internacional, como a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, (vide alínea b) do n.º 1 do seu artigo 7.º).
Assim, considerando-se que a decisão objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade está alicerçada, ante a prova trazida aos autos, em fundamentos de facto e de direito que não atentam contra o direito ao julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA, tal implica concluir que a condenação do Recorrente traduz a firmação de um juízo de certeza com relação à sua culpabilidade. Consequentemente, não resulta ofendido o princípio do in dubio pro reo, nem se estabelece qualquer conflito entre o ius puniendi e o ius libertatis do Recorrente.
Em decorrência, o Acórdão recorrido não merece qualquer censura em face dos critérios constitucionais e jurídico-legais que balizam o juízo de constitucionalidade que é requerido a este Tribunal Constitucional.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ACÓRDÃO PROFERIDO PELA 1.º SECÇÃO DA CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL SUPREMO, TENDO EM ATENÇÃO QUE NÃO SE VERIFICOU A ALEGADA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ENUNCIADOS PELO RECORRENTE.
Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 22 de Agosto de 2023.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva