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Jurisprudência

ACÓRDÃO N.º 845/2023

 

Processo n.º 1090-B/2023
Processo de Fiscalização Abstracta Sucessiva
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO


A Ordem dos Advogados de Angola (OAA) requereu, nos termos das disposições conjugadas da alínea f) do n.º 2 do artigo 230.º da Constituição da República de Angola (CRA), do artigo 18.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho - Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 24/10, de 03 de Dezembro, da alínea f) do artigo 27.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional (LPC), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 25/10, de 3 de Dezembro, a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, que estabelece o Regime de Comparticipação Atribuída aos Órgãos de Administração da Justiça pelos Activos, Financeiros e Não Financeiros por si Recuperados.
Para lograr a sua pretensão, a Requerente invoca a inconstitucionalidade orgânica, formal e material das normas do aludido diploma, por violarem os artigos 29.º, 72.º, 174.º, 175.º, 177.º, 179.º, 185.º e 186.º, todos da CRA, bem como o princípio da não afectação de receitas, que determina que todas as receitas orçamentais devem ser recolhidas pela Conta Única do Tesouro, sem qualquer vinculação em termos de destinação.
Os fundamentos do pedido são, em síntese, os seguintes:

1. A CRA, nos seus artigos 120.º, alínea i), 125.º, n.º 3, e 126.º, n.ºs 1 e 3, alínea b), define as circunstâncias em que o Presidente da República deve exarar actos legislativos autorizados pela Assembleia Nacional. O diploma legal em pauta não se enquadra no preceito da alínea l) do artigo 120.º da CRA, como reza o seu preâmbulo.

2. Ainda que por lapso tal matéria se enquadre no preceito da alínea i) do mesmo artigo e diploma, estamos perante um Decreto Legislativo Presidencial Provisório e não de um Decreto Presidencial, como reza o diploma em sindicância, que também não obedece os comandos dos artigos 126.º, n.ºs 1, 3, al. b), 5 e 6, em conjugação com o preceito do artigo 161.º, alíneas d) e e) da CRA, traduzindo-se, assim, num vício de forma, para além da inconstitucionalidade orgânica, que não deixam margens para dúvidas.

3. De igual modo, a matéria objecto do diploma em referência não se enquadra no preceito da alínea l), nem nos artigos 125.º, n.º 3 e 126.º, n.º 1, por não ser de carácter urgente.

4. Finalmente, por se tratar, pelos fundamentos legais evocados no seu texto preambular, de um Decreto Legislativo Presidencial Provisório, aprovado aos 16 de Março de 2021, segundo o preceito do artigo 126.º, n.º 5, revisitado por remissão do artigo 125.º, n.º 3, ambos da CRA, a duração da sua vigência é de sessenta dias, salvo se tivesse sido submetido à Assembleia Nacional para converter em lei, o que também não foi observado.

5. O Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, em geral e todas as suas normas, exarado nos termos da alínea l), do n.º 3 do artigo 120.º e do artigo 125.º, ambos da CRA, não está em conformidade com os princípios fundamentais e normas da CRA.

6. Ora, ao atribuir aos tribunais o direito à comparticipação pelos activos financeiros e não financeiros, por si recuperados, ficam, desde logo, maculados os princípios da isenção e da independência dos juízes e dos tribunais, bem como o direito fundamental a julgamento justo e conforme à lei, ex vi artigos 72.º, 175.º e 179.º, n.º 1, todos da CRA, porque estes órgãos acabam sendo os beneficiários directos dos bens recuperados a favor do Estado.

7. Em circunstância alguma os tribunais podem beneficiar dos bens materiais ou financeiros que resultam das suas decisões, tomadas em sentença ou acórdão. Ao ser assim, deixa de haver o distanciamento e a isenção do juiz e do tribunal ao apreciar o processo e tomar a decisão pertinente, mesmo em fase de recurso.

8. Em relação à Procuradoria-Geral da República (PGR) a situação é idêntica. A partir do momento em que este órgão passa a beneficiar de forma directa dos bens por si recuperados, deixa de haver a necessária independência e isenção das suas decisões porque passa a agir como parte do processo, já não apenas em sentido formal, mas, agora, no sentido material, devido ao interesse directo na causa.

9. Por esta razão, o Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, ao atribuir aos Tribunais e à Procuradoria-Geral da República o direito de “comparticipação pelos activos, financeiros e não financeiros, por si recuperados”, viola o princípio geral do Estado de Direito, porque põe em causa os princípios da independência e imparcialidade dos magistrados judiciais e do Ministério Público, vide n.º 4 do artigo 29.º (direito a um processo equitativo), artigo 72.º (direito a julgamento justo); artigo 174.º (dirimir conflitos), artigo 175.º (independência dos Tribunais), artigo 177.º (decisões dos tribunais), n.º 1 do artigo 179.º (independência dos juízes), n.º 2 do artigo 185.º (autonomia do Ministério Público e vinculação a critérios da legalidade e objectividade), e alínea f) do artigo 186.º, todos da CRA.

10. Para além da violação das normas constitucionais, atrás referidas, o Decreto Presidencial n.º 69/2021, de 16 de Março, também põe em causa o princípio da não afectação de receitas, que determina que todas as receitas orçamentárias devem ser recolhidas pela Caixa Única do Tesouro, sem qualquer vinculação em termos de destinação.

11. Outrossim, nos termos do que se estabelece na legislação financeira e, particularmente, na Lei n.º 15/10, de 14 de Julho (Lei Quadro do Orçamento Geral do Estado), entendemos que os bens apreendidos, sejam eles activos financeiros ou não financeiros, devem ser enquadrados no Orçamento Geral do Estado para posterior afectação conforme o determinado pelas instâncias competentes.
Termina a Requerente pedindo, pelas razões acima descritas, que sejam declaradas inconstitucionais, com força obrigatória geral, as normas constantes do Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março.
Notificado o Presidente da República para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, enquanto órgão autor da norma, nos termos e prazo previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 16.º e na alínea c) do n.º 2 do artigo 29.º, ambos da LPC, veio o Ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do Presidente da República, em Sua representação, com base na delegação de poderes operada pelo Despacho Presidencial n.º 182-A/20, de 18 de Dezembro, oferecer o seu pronunciamento, que abaixo se transcreve, em síntese:
a) Dos Fundamentos para a Atribuição dos 10% de Comparticipação aos Órgãos de Administração da Justiça:

1. A atribuição de uma percentagem, sobre os valores recuperados, aos Órgãos da Administração da Justiça tem origem no direito internacional, porquanto, para capacitação dos quadros que trabalham no combate à corrupção e na consequente recuperação de activos, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, a que Angola aderiu através da Resolução n.º 20/06 de 23 de Junho, refere, no n.º 2, alínea c) do artigo 62.º, in fine, que, “de acordo com a sua legislação interna e com as disposições da referida Convenção, os Estados Partes poderão também considerar a possibilidade de ingressar numa conta especificamente designada uma percentagem do dinheiro confiscado ou da soma equivalente dos bens ou ao produto de delito confiscados”.

2. Com base nessa norma, as Nações Unidas e outras organizações internacionais têm recomendado que parte dos valores recuperados seja alocado à criação de um fundo para os órgãos que combatem a corrupção, com vista a capacitá-los e ajudá-los a satisfazer as necessidades relacionadas com aplicação da referida Convenção.

3. Nestes termos, a Rede de Agências de Recuperação de Activos na África Austral, ARINSA, de que Angola é parte, na sua Declaração de Dar Es Salaam sobre o Confisco de Bens, de 12 de Junho de 2019, recomendou aos Estados Membros que uma percentagem dos valores recuperados deva ser atribuída aos órgãos e especialistas de recuperação de activos para o desempenho eficaz das suas funções e melhoria das condições de trabalho.

4. Neste esteio, em Angola, o Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, veio estatuir que 10% de todos os valores recuperados deveriam ser atribuídos aos Órgãos de Administração da Justiça, designadamente, à Procuradoria-Geral da República e aos Tribunais para capacitar e apoiar os Magistrados no combate à criminalidade transnacional.

5. Acresce a isso, o facto de que os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), na sequência das Convenções e acordos internacionais, adoptaram soluções semelhantes, como são exemplo os seguintes: a) Portugal, que estabeleceu no artigo 17.º, n.º 1 al. a) da Lei n.º 45/2011, de 24 de Junho, que 50% das receitas geradas pela administração de bens recuperados ou declarados perdidos a favor do Estado revertem para os Órgãos da Administração da Justiça; b) Cabo Verde, que determinou, no art. 17.º, al. c), da Lei n.º 18/VIII/2012, de 13 de Setembro, que 45% das receitas geradas pela administração de bens móveis apreendidos ou declarados perdidos a favor do Estado revertem para os Órgãos da Administração da Justiça, inclusive, a Procuradoria-Geral de Cabo Verde tem a sua sede num edifício recuperado; c) São Tomé e Príncipe, que no art. 32.º, n.º 2, al. b), da Lei n.º 8/13, de 15 de Outubro, estatuiu que 50% dos bens ou valores obtidos com a venda de bens recuperados são distribuídos equitativamente pelas instituições intervenientes no processo, ou seja, revertem a favor dos intervenientes directos no combate ao branqueamento de capitais, ao financiamento do terrorismo e crimes subjacentes.

6. Igualmente, dispõem do mesmo regime, a maioria dos países da União Europeia e o Peru, sendo que, nestes países, as instituições que combatem a criminalidade transnacional organizada são fortes e têm maiores resultados.

7. Acresce a isso o facto de se recomendar que se celebrem acordos de partilha entre os Estados para a recuperação de activos no estrangeiro. Neste sentido, em 2020, foi celebrado um acordo tripartido entre a Suíça, Luxemburgo e Peru para a restituição de activos adquiridos ilicitamente, com a condição de que os mesmos se destinassem à realização de projectos sociais na área da justiça, para o fortalecimento do Ministério Público e dos Tribunais peruanos no combate à criminalidade.

8. Refira-se ainda que, conforme estatuído no artigo 5.º do Decreto Presidencial subjudice, a comparticipação serve sempre para melhorias das condições de trabalho e nunca para distribuição a título de subsídio para os Magistrados. Mais, a prática de atribuição de comparticipação em receitas é muito comum entre nós, sem que fosse alguma vez levantada questão sobre a sua constitucionalidade. Veja-se a comparticipação de 40% para os funcionários dos Tribunais, nos termos da al. c) do n.º 2 do artigo 19.º da Lei n.º 5-A/21, de 5 de Março.

9. No mesmo diapasão, os tribunais recebem uma comparticipação em função de todos os processos que tramitam e nem por isso é colocada em causa a sua imparcialidade ou objectividade nas decisões que proferem.

10. Em resumo, pode-se aduzir que a origem da atribuição da comparticipação de 10% atribuído aos Órgãos da Administração da Justiça está em linha com o objectivo tripartido da recuperação de activos, designadamente: a) Acentuar os intuitos de prevenção geral e especial (através da demonstração de que crime não rende benefícios); b) Evitar o investimento de ganhos ilegais no cometimento de novos crimes (propiciando, pelo contrário, a sua aplicação na indemnização das vítimas e no apetrechamento das instituições do combate ao crime; e c) Reduzir os riscos de concorrência desleal no mercado (resultante de investimentos de lucros ilícitos).

b) Da Impugnação da Constitucionalidade Orgânica do Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março:

11. A OAA argumenta, sem indicar que normas foram expressamente violadas, que o Decreto Presidencial, sob análise, é organicamente inconstitucional, pois a comparticipação deveria ter sido atribuída por lei, ou decreto legislativo presidencial provisório, e não por regulamento "Decreto Presidencial". O argumento, não pode ser aceite. Veja-se,

12. A inconstitucionalidade orgânica ocorre sempre que exista violação de regra constitucional de competência, significando, neste caso, uma intromissão de um órgão constitucional na esfera reservada de outro.

13. O Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, tem por base de competência a alínea m) do artigo 120.º da CRA, ou seja tem natureza regulamentar. Como resulta do primeiro parágrafo do diploma ora impugnado, o Decreto visa regulamentar a Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, mais especificamente pormenorizar a disposição geral e abstracta contida no artigo 11.º da Lei n.º 15/18, sobre a perda de bens a favor do Estado, permitindo assim a gestão dos bens perdidos a favor do Estado.

14. Com efeito, visando viabilizar a aplicação da referida Lei, ele cumpre a tarefa clássica dos regulamentos que é a complementação de aspectos que não podiam, ou decidiu-se não ser, estabelecidos legislativamente. Mais, como consta do preâmbulo do referido Decreto Presidencial, a comparticipação atribuída aos Órgãos da Administração da Justiça é feita sem onerar o Orçamento Geral do Estado, isto é, fixando-se a partir de uma percentagem sobre os activos recuperados, conforme o próprio diploma define.

15. Pelo que, como não provém do Orçamento Geral do Estado, não tem natureza de imposto, taxa ou quaisquer contribuições financeiras a favor de entidades públicas, conforme a alínea o) do n.º1 do artigo 165.º da CRA, não constituindo, por isso, reserva relativa de competência legislativa da Assembleia Nacional, ele cabe na competência própria do Titular do Poder Executivo, nos termos da alínea m) do artigo 120.º da CRA, uma vez que se trata, reitera-se, de concretização da Lei n.º 15/18.

16. Na verdade, do que se trata aqui, é do problema jurídico constitucional da distribuição orgânico-funcional do Poder normativo em determinada Constituição, sendo que, no nosso caso, duma leitura de conjunto da Constituição, resulta claro que a competência regulamentar foi atribuída ao Titular do Poder Executivo.

17. Depois de a Assembleia ter determinado as regras de recuperação de activos, com a necessária garantia dos direitos fundamentais dos arguidos, deixou ao espaço de conformação do Executivo a decisão abstracta de definir o destino a dar aos bens - que, uma vez definitivamente recuperados fazem parte do património do Estado que é gerido pelo Poder Executivo.

18. Fica assim claro que o Decreto Presidencial que se visa impugnar é um mero regulamento executivo que visa concretizar algumas disposições da Lei n.º 15/18, sendo por isso da competência do Titular do Poder Executivo não existindo qualquer inconstitucionalidade orgânica.

c) Da Suposta Violação ao Princípio da Isenção e da Independência dos Juízes e dos Tribunais, e do Direito Fundamental a um Julgamento Justo:

19. O princípio da independência dos tribunais (artigo 175.º da CRA) possui dimensões diferentes de análise. Em primeiro lugar, a sua dimensão de independência subjectiva visa defender os tribunais dos demais poderes do Estado (Legislativo e Executivo), garantido assim a defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos perante o Estado. Por outro lado, na dimensão de independência objectiva garante a independência dos juízes, impondo a sua inamovibilidade, irresponsabilidade e autonomia na interpretação do direito.

20. A independência é violada quando alguma destas dimensões é colocada em causa, por exemplo, nos casos de pressão ou coacção ilícita dos juízes. Não sendo caso de coacção ou de qualquer outra medida similar, revela-se falho o argumento de que os 10% garantidos em favor da “melhoria das condições do sistema de justiça” sejam intimidadores ou violem a “independência dos juízes”.

21. Tudo o que se determina, reitera-se, é que certa parte dos proventos da recuperação de activos sejam utilizados em prol da melhoria das condições dos órgãos de justiça e não a sua distribuição, a título de subsídio, a magistrados judiciais ou do Ministério Público. Ora, não havendo atribuição directa de subsídio nem ao juiz da causa nem a qualquer outro interveniente indirecto no sistema de justiça, não se concebe como pode ser maculada a isenção do juiz ou magistrado do ministério público.

22. O direito a um julgamento justo corresponde a uma cláusula geral que engloba todas as garantias do processo, incluindo uma protecção completa dos direitos de defesa do arguido. Ora se assim é, o modo de violar esta cláusula constitucional é através da vulneração dos direitos em processo, ou procedimento.

23. Traduzido isto no caso subjudice, não se vê como uma norma cujo objectivo é a melhoria geral e abstracta das condições do serviço - sem fazer menção a juiz algum, muito menos ao juiz do processo - possa colocar em causa o direito a um julgamento justo.

24. Não existe, in casu, entre a norma constitucional do direito a julgamento justo e as normas do Decreto Presidencial n.º 69/21, incompatibilidade ou contradição alguma que justifique a sua inconstitucionalidade. Assim, pelos factos acima argumentados, o regime jurídico angolano sobre a atribuição de uma percentagem para apoiar nas investigações dos Órgãos da Administração da Justiça no combate à corrupção para além de não constituir caso isolado no universo do Direito Nacional e Internacional, não vulnera nenhuma disposição constitucional.

Termina, assim, pedindo que seja julgada improcedente a presente acção, por estarem, as normas do Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, em conformidade com a Constituição.

Prescindiu-se dos vistos legais, nos termos e fundamentos do artigo 29.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer do pedido ora formulado, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 181.º da Constituição, bem como na alínea a) do artigo 16.º da LOTC, e ainda na alínea b) do artigo 3.º, conjugado com o artigo 19.º da LPC.

III. LEGITIMIDADE

A Ordem dos Advogados de Angola tem legitimidade para requerer a fiscalização abstracta sucessiva de normas, nos termos da alínea f) do n.º 2 do artigo 230.º da Constituição, do artigo 18.º da LOTC e da alínea f) do artigo 27.º da LPC.

IV. OBJECTO

Emerge como questão decidenda na presente acção de fiscalização abstracta sucessiva a apreciação da constitucionalidade orgânica, formal e material das normas contidas nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º e 5.º do Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, que estabelece o Regime de Comparticipação Atribuída aos Órgãos de Administração da Justiça pelos Activos, Financeiros e Não Financeiros por si Recuperados.

V. APRECIANDO

I) Questão Prévia

Na presente acção de fiscalização abstracta sucessiva, pretende a Requerente que se declare a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, que estabelece o Regime de Comparticipação Atribuída aos Órgãos de Administração da Justiça pelos Activos, Financeiros e Não Financeiros, por si Recuperados, publicado em Diário da República n.º 47, I série, de 16 de Março de 2021.
Para sindicar a constitucionalidade material das normas do aludido Decreto Presidencial, a Requerente aponta, além da violação dos princípios da independência e imparcialidade dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público, bem como do direito a julgamento justo e conforme, a ofensa ao “princípio da não afectação de receitas, que determina que todas as receitas orçamentárias devem ser recolhidas pela Caixa Única do Tesouro, sem qualquer vinculação em termos de destinação”. (Itálico nosso).
Se bem se compreende, o princípio evocado pela Requerente prende-se com o princípio orçamental da não consignação das receitas, a que aludem a alínea b) do n.º 1 do artigo 21.º e o artigo 34.º da Lei n.º 15/10, de 14 de Julho, Lei do Orçamento Geral do Estado.
Segundo esta regra financeira, não pode afectar-se o produto de quaisquer receitas à cobertura de uma finalidade particular, com fundamento na ideia de que, em princípio, todas as receitas arrecadadas devem servir para cobrir todas as despesas do Estado, pretendendo-se, com isto, prover a Administração Pública de uma gestão financeira global.
Embora se reconheça a sua importância e bondade, no âmbito da fiscalização abstracta sucessiva efectua-se um controlo abstracto de validade de normas já publicadas face a um determinado preceito constitucional, com o desiderato de remover-se definitivamente da ordem jurídica normas feridas de inconstitucionalidade, reparar os efeitos das suas metástases e restabelecer o tecido do ordenamento jurídico afectado pelas consequências geradas pelo acto inválido.
Neste processo, tal como assevera Jorge Rodríguez-Zapata, ocorre um confronto entre a norma objecto de controlo e algum preceito da Constituição, mediante o denominado silogismo de constitucionalidade, em que o Tribunal Constitucional deve apreciar se a norma indicada como inconstitucional é ou não conforme à Norma Fundamental, processando-se nos seguintes termos: “A Constituição é a premissa maior; a norma impugnada, sua premissa menor; e a decisão – de “provimento ou não provimento do recurso” –, sua conclusão”. In Teoría y Práctica Del Derecho Constitucional, 4.ª Edição, Tecnos, 2018, pág. 323.
Com efeito, circunscrevendo-se apenas ao controlo de constitucionalidade, a apreciação, neste processo, tem um perímetro mais restrito, que não abrange o controlo de ilegalidade, em que se visa detectar e declarar a existência de desconformidade entre actos legislativos colocados em patamares normativos hierarquicamente distintos.
Deste modo, face ao expendido, a presente acção de fiscalização cingir-se-á à apreciação das normas sindicadas, confrontando-as apenas com os preceitos constitucionais evocados pela Requerente, ou, se for o caso, com outras normas ou princípios constitucionais, de harmonia com o preceituado no artigo 11.º da LPC.

II) Sobre a Inconstitucionalidade Orgânica e Formal

A Requerente suscitou a declaração de inconstitucionalidade orgânica e formal das normas constantes do Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, por entender que a matéria aí prevista não é da competência do órgão que o emanou, e que os preceitos indicados como fundamento para a aprovação do aludido diploma determinam, em vez, a aprovação de um Decreto Legislativo Presidencial Provisório, que, in casu, não reuniu os requisitos necessários para a sua aprovação, constantes dos n.ºs 1, 3, alínea b), 5 e 6 do artigo 126.º, conjugado com as alíneas d) e e) do artigo 161.º, ambos da CRA, por não ser de carácter urgente e não ter definido um prazo de vigência.
Assevera, no entanto, que os preceitos constantes do supracitado Decreto Presidencial originam irremediáveis dúvidas de constitucionalidade, quanto à competência constitucional do órgão que o emanou e quanto ao procedimento para o seu ingresso no ordenamento jurídico, na medida em que, no seu preâmbulo indicam-se como fundamento para a respectiva aprovação as normas constitucionais contidas na alínea l) do artigo 120.º, que se refere à direcção e orientação, pelo Presidente da República, da acção do Vice-Presidente da República, dos Ministros de Estado e Ministros, e dos Governadores Provinciais, e o n.º 3 do artigo 125.º, que determina que os actos previstos no artigo 126.º da CRA revestem a forma de Decreto Legislativo Presidencial Provisório.

Todavia, contrariamente ao propugnado pela Requerente, e atento ao diploma sob censura, verifica-se que este foi emanado tendo como fundamento a alínea l) do artigo 120.º e o n.º 3 do artigo 125.º, ambos da CRA, porque, à data da sua aprovação, estes preceitos não continham a redacção actual que lhes foi atribuída pela Revisão Constitucional de 2021, aprovada pela Lei n.º 18/21, de 16 de Agosto, publicada em Diário da República n.º 154, I Série, que alterou, entre outros, o conteúdo dos artigos 120.º e 125.º da Constituição.

A alínea l) do artigo 120.º atribuía competências ao Presidente da República para elaborar os regulamentos necessários à boa execução das leis, e o n.º 3 do artigo 125.º, determinava que o acto previsto na referida alínea devesse revestir a forma de Decreto Presidencial, disposições estas actualmente previstas na alínea m) do artigo 120.º e no n.º 4 do artigo 125.º, ambos da CRA.

Posto isto, resulta evidente que a Requerente ao sindicar a constitucionalidade orgânica e formal do referido Decreto, partiu de uma premissa equivocada, facilmente verificável atento às datas de aprovação quer do diploma sob censura, quer da Lei de Revisão Constitucional de 2021.

No entanto, não obstante o acima referido, e de harmonia com a faculdade prevista no artigo 11.º da LPC, importa prosseguir com a apreciação de conformidade constitucional, orgânico-formal, do Decreto Presidencial sob escrutínio, analisando não mais os fundamentos evocados pela Requerente, mas sim o disposto no artigo 164.º da Constituição, que reserva à Assembleia Nacional a competência absoluta para legislar sobre determinadas matérias.
Para melhor compreensão da questão de constitucionalidade aqui identificada, interessa, antes de mais, proceder a uma análise do regime previsto no Decreto Presidencial sob escrutínio.

O regime jurídico instituído pelo Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, determina a atribuição de uma comparticipação, pelos activos financeiros e não financeiros por si recuperados, aos Órgãos de Administração da Justiça, entendidos como sendo a Procuradoria-Geral da República e os Tribunais.

A aludida comparticipação atribuída é de 10% do valor líquido do activo recuperado, determinado pela sua natureza e respectivo preço de mercado, repartida pelas duas instituições, quando o activo recuperado for declarado perdido a favor do Estado, mediante decisão condenatória, e, nos casos em que o activo for recuperado apenas pela Procuradoria-Geral da República, a percentagem da comparticipação é-lhe atribuída na sua totalidade, conforme estabelece o artigo 3.º do diploma.
O Decreto Presidencial erige-se como um sucedâneo legislativo complementar da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro – Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens (LRCPAB), que estabelece as condições para o repatriamento coercivo de activos financeiros e a perda de bens a favor do Estado, decorrentes de condenação em processo penal, independentemente de estarem domiciliados ou sedeados em território estrangeiro ou nacional.

O regime normativo previsto na mencionada Lei, enquadra-se na clássica problemática sobre a perda de bens e direitos, relacionados com a prática de um ilícito criminal, previsto, em termos gerais, no Capítulo IX do Código Penal Angolano (CPA), intitulado “Perda de instrumentos, produtos e vantagens”, onde se regula a perda de instrumentos e produtos (artigos 120.º e 121.º), bem como a perda de vantagens (122.º).

Neste regime legal prevê-se que os objectos que tenham servido ou que se destinassem a servir para a prática de factos ilícitos (instrumentos do crime), bem como os que forem produzidos em resultado de tais factos (produtos do crime), sejam declarados perdidos a favor do Estado, uma vez verificados determinados pressupostos. Esta medida tem como fundamento razões de índole preventiva, visando impedir que tais instrumentos ou produtos possam ser utilizados para a prática de novos ilícitos ou que, atenta à sua perigosidade, possam colocar em causa a segurança das pessoas ou da ordem pública.

O Código prevê também a perda das vantagens decorrentes da prática de factos ilícitos, medida esta que tem como finalidade subtrair ao arguido (ou a terceiros) os proventos obtidos em resultado da prática de factos ilícito-típicos.
Apontam-se como fundamento político-criminal deste regime de perda de vantagens, finalidades preventivas, quer de prevenção geral, quer de prevenção especial, considerando que, ao procurar colocar o arguido na situação patrimonial em que estaria se não tivesse praticado determinado ilícito, subtraindo as vantagens resultantes do mesmo, se visa demonstrar que o crime não compensa, ideia que é reafirmada tanto sobre o concreto agente do ilícito-típico (prevenção especial ou individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral).

Entretanto, face às prementes exigências colocadas pelo combate à criminalidade económico-financeira, cada vez mais sofisticada e geradora, não só de avultados proventos aos criminosos, mas também de imensuráveis prejuízos ao Estado, a Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, introduziu no ordenamento jurídico nacional um regime especial de perda de bens resultantes da prática de ilícitos patrimoniais que tenham lesado o Estado, designado “perda alargada de bens”.

Nos termos deste diploma, os agentes incorrem na perda a favor do Estado, não dos produtos, vantagens ou quaisquer bens e direitos adquiridos ilicitamente através da prática do crime pelo qual são condenados, mas sim na perda do seu património incongruente (Hermínio Rodrigues, Recuperação de Activos e Perda Alargada de Bens em Angola: A (In)Constitucionalidade da Lei n.º 15/18 de 26/12 e Legislação Conexa em Cinco Questões Fundamentais, Almedina Editora, pág. 59).
A noção de perda alargada ou confisco alargado, como é também denominada, está convencionalmente definida em termos amplos, e traduz-se numa medida de cariz político-criminal que conduz à privação definitiva de bens originados, directa ou indirectamente, da actividade criminosa, decretada por um tribunal, em consequência de um processo relativo a uma ou várias infracções penais, nos termos do disposto na alínea g) do artigo 2.º, da Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) Contra a Corrupção, concluída em Mérida, em 9 de Dezembro de 2003, vigente na ordem jurídica angolana através da Resolução n.º 20/06, de 23 de Junho, publicada em Diário da República n.º 76, I Série, de 23 de Junho de 2006.

Como bem salienta Damião da Cunha, “a perda de bens a favor do Estado é uma verdadeira sanção que visa anular as vantagens presumidas de uma actividade criminosa que implica uma regra de inversão do ónus da prova, a menos que o criminoso prove que os recebeu de qualquer fonte não criminosa” (Perda de Bens a Favor do Estado, In Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira, Centro de Estudos Judiciários [Portugal], Coimbra Editora, 2004, pág. 126).
Esta medida funda-se, assim, na presunção iuris tantum de origem ilícita de bens pertencentes ao indivíduo condenado por um crime, previamente arrolado num catálogo, delimitado pela formulação vaga e abstracta prevista no aludido diploma de “crimes de natureza patrimonial em que o Estado tenha sido lesado”.

O regime visa, assevera Hermínio Rodrigues, “dotar o Estado de um mecanismo de recuperação coerciva de bens e outros activos sobre os quais incida a suspeita de resultarem de actividade criminosa contra o erário público, permitindo a declaração de perda de bens a favor do Estado sem prova de que os mesmos são instrumento, produto, vantagem, recompensa (ou seu sucedâneo) de um crime, antes se baseando a legitimidade de tal confisco numa presunção de ilicitude, cuja ilisão é ónus do arguido ou do titular do património”. Ob. Cit., Págs. 16 e 17.

Neste âmbito, em caso de condenação por crime de natureza patrimonial que tenha lesado o Estado, os seus agentes perdem, a favor do Estado, o seu património incongruente. Diferentemente do que sucede no âmbito da perda de vantagens prevista no CPA, em que se exige a prova, no processo, da existência de uma relação de conexão entre o facto ilícito criminal concreto e o correspondente proveito patrimonial obtido, com este regime, aprecia-se a congruência entre o património do arguido e os seus rendimentos lícitos, sendo declarado perdido a favor do Estado o valor do património do arguido que seja excessivo em relação aos seus rendimentos lícitos, se o arguido não ilidir a presunção de que esse património excessivo resultou da actividade criminosa.

Consequentemente, declarada a perda de bens, nos termos da LRCPAB, o Decreto Presidencial sob censura define o modo de repartição de parte do património declarado perdido aos tribunais e à Procuradoria-Geral da República.
Ora, feito este excurso sobre a perda alargada de bens, facilmente conclui-se que a disciplina à ela atinente, prevista na LRCPAB, constitui parte do espectro de competência legislativa atribuída, a título exclusivo, à Assembleia Nacional, que encontra o seu respaldo nas alíneas c) e d) do artigo 164.º da Constituição, em que o legislador constituinte atribui competência irrenunciável e inderrogável ao Parlamento para legislar sobre as restrições e limitações aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, bem como sobre a definição dos crimes, penas e medidas de segurança.
Assim, a questão de inconstitucionalidade, na presente acção de fiscalização, reside em saber se a disciplina prevista no Decreto Presidencial n.º 69/21, poderia ter sido aprovada através de regulamento administrativo. Isto é, o problema situa-se no domínio mais estrito da reserva de lei formal: a competência legislativa reservada ao Parlamento, em termos absolutos.
Em rigor, a reserva absoluta de lei parlamentar significa que, por imposição constitucional, determinadas matérias, atendendo à sua natureza, devem ser reguladas exclusivamente por lei formal da Assembleia Nacional. Só o Parlamento pode emitir as leis, interpretá-las, suspendê-las, modificá-las, revogá-las, renová-las ou codificá-las, estando o Executivo absolutamente impedido de emitir actos normativos nestas áreas (Jónatas Machado, Paulo da Costa, Esteves Hilário, Direito Constitucional Angolano, 4.ª ed., Petrony, 2017, pág. 267; Adlezio Agostinho, Curso de Direito Constitucional, AAFDL, 2019, pág. 246).

O princípio tem o desígnio de guardar para um órgão com uma legitimidade política especial a determinação do nível de regulação legal, em que se exprime um juízo constitucional sobre a respectiva essencialidade. Neste domínio, incumbe-se a um determinado órgão o estabelecimento das bases de todos os regimes jurídicos, cujos preceitos possam afectar interesses da generalidade dos cidadãos, bem como a sua fixação na integralidade, quando respeitem a assuntos que mais sensibilizem uma comunidade (Renato Balduzzi e Federico Sorrentino, Riserva Di Legge, in Enc. Dir., XL, Milano, 1989, págs. 1207 e ss.; entre muitos, os Acórdãos do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha; BVerfGE 78, 249, 1988, e BVerfGE 98, 218 1998).

À propósito, Gomes Canotilho sufraga o entendimento de que “a reserva de lei comporta duas dimensões: uma negativa e outra positiva. A dimensão negativa significa que nas matérias reservadas à lei está proibida a intervenção de outra fonte de direito que não seja a lei (a não ser que se trate de normas meramente executivas da administração). Em termos positivos, a reserva de lei significa que, nessas matérias a lei deve estabelecer ela mesma o respectivo regime jurídico, não podendo declinar a sua competência normativa a favor de outras fontes (proibição da incompetência negativa do legislador)”. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, 2003, pág. 726.

Nestes termos, a reserva absoluta de lei obriga a que a lei regule directamente a matéria, sob a égide de uma reserva de densificação total, em que o acto normativo deve disciplinar as matérias na sua totalidade, postulando também uma restrição radical da intervenção normativa de outras entidades e/ou outras fontes.

Embora o disposto no artigo 164.º da Constituição determine uma reserva global, ou integral, de densificação normativa, relativamente às matérias nele prescritas, a edição de regulamentos pelo Titular do Poder Executivo não está, em princípio, interdita, pois, outro sentido não parece resultar da norma contida na alínea m) do artigo 120.º da CRA, que comete ao Presidente da República, no exercício da função administrativa, a competência para fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis.
Contudo, no que concerne às matérias amparadas pela reserva absoluta de lei parlamentar, tal competência não deve ter um alcance de tal forma abrangente, que o permita criar, por meio do regulamento, um regime inovatório, não previsto no diploma que visou desenvolver. A regulamentação destas matérias deve permanecer num plano meramente executivo, circunscrevendo-se, a actuação normativa da Administração, a aspectos técnicos ou secundários, o que não foi observado pelo Titular do Poder Executivo aquando da aprovação do diploma sob censura.

Ora, o Decreto Presidencial sob escrutínio, determina o modo de afectação do património apreendido e declarado perdido, derrogando aquela que foi a vontade do legislador primário, que determinou a reversão da sua titularidade a favor do Estado. A disciplina aí prevista visa, de forma inovatória, determinar, para o património apreendido, um destino distinto do previsto na LRCPAB, facto que não só lhe é vedado pela natureza do regime, que apenas admite regulamentação de simples execução, mas também pelo próprio princípio da precedência de lei, que determina que os regulamentos não podem contrariar um acto legislativo, já que a lei tem absoluta prioridade sobre os regulamentos.

A LRCPAB não é omissa quanto ao destino dos bens apreendidos, nem mesmo instituiu quanto a isso um regime-quadro susceptível de regulamentação. Das normas constantes do aludido diploma não se pode firmar o entendimento de que o regime de afectação careça de densificação, nem mesmo que esta dependa da opção regulamentar. E, ainda que a lei fosse, por mera hipótese, omissa quanto ao destino dos bens apreendidos, tal disciplina não pode erigir-se de um acto regulamentar, pois que se trata de um aspecto substancial do regime, em que toda a disciplina pertence à reserva de lei, ficando na disponibilidade regulamentar questões meramente periféricas ou acessórias.

No domínio da reserva de lei parlamentar, o Presidente da República só pode, no âmbito das matérias sob reserva relativa, portanto, sob pena de inconstitucionalidade, editar normas inovadoras sob a forma de decretos legislativos, e mediante autorização da Assembleia Nacional (artigo 165.º da CRA); já no domínio da reserva absoluta de lei parlamentar, o Executivo só pode editar normas regulamentares de execução (vide Diogo Freitas do Amaral e Carlos Feijó, Direito Administrativo Angolano, Almedina, 2016, pág. 411; Carlos Feijó e Cremildo Paca, Direito Administrativo, 7.ª Edição, Luanda, Mayamba Editora, 2019, págs. 355 e 356).

O poder regulamentar, nestas áreas, constitucionalmente reservadas à lei, não se pode desenvolver na sua plenitude. Os únicos regulamentos que nas matérias reservadas à lei se admitem são os regulamentos de execução -ou, porventura, nem isso, como sucede em matéria de restrições aos direitos fundamentais, de tipificação legal dos crimes e das respectivas penas, e de definição dos limites essenciais dos impostos (casos de reserva integral de lei).

E, por regulamento meramente executivo ou complementar deve-se entender, aqueles que desenvolvem ou aprofundam a disciplina jurídica constante de uma lei, e, nessa medida, completam-na, viabilizando a sua aplicação aos casos concretos, tendo como principal finalidade efectuar uma pormenorização de detalhe e de complemento legislativo (Diogo Freitas do Amaral e Carlos Feijó, ob. cit., Almedina, 2016, pág. 411).

Estes devem conter normas sem conteúdo inovatório algum em relação ao diploma legal que se destinam a regulamentar. A sua função, denotada pela expressão constitucional “boa execução das leis”, é a de garantir a uniformidade da aplicação da lei pela Administração Pública e contribuir para a segurança jurídica dos particulares, o que é tanto mais importante quanto menor seja a clareza e precisão das disposições legais.

As normas regulamentares, neste sentido, podem ser úteis, mas não são necessárias, porque a lei é materialmente autossuficiente, ou são apenas necessárias à boa execução − não para a execução sic et simpliciter – da lei, admitindo-se, porém, que os regulamentos possam ir além da lei que executam, nas matérias sob reserva total, no sentido de conterem normas técnicas ou outros pormenores de que dependa a plena exequibilidade do regime legal. Tudo o mais é normação primária, reservada ao acto legislativo em si mesmo.

O que supra se refere pode sintetizar-se através do seguinte: se, diante da questão de saber qual o regime relativo à determinada matéria vertida no campo reservado, a resposta encontrar-se também em instrumentos regulamentares, é certo que estes extravasam o universo restrito da mera execução ou simples execução, invadindo a reserva de lei. Dito de outro modo, sob a perspectiva da lei, se a descrição do aspecto material a que ela respeita não dispensar a referência à normas regulamentares, estaremos perante uma violação da reserva de lei formal, neste caso, pelo próprio legislador.

É patente que o Decreto Presidencial sob censura congrega um aspecto essencial do regime previsto na LRCPAB, na medida em que, se se questionar qual o destino dos bens apreendidos, a resposta perpassa não só pelo disposto na aludida lei, mas também pelo regime previsto no regulamento.

Na verdade, sob o ponto de vista da distribuição do poder legislativo, a reserva absoluta de lei do Parlamento significa, essencialmente, que a Assembleia Nacional não pode limitar-se a produzir as bases gerais, deixando o seu desenvolvimento legislativo para o Executivo, nem pode proceder a deslegalizações, remetendo para regulamento aspectos substanciais do regime jurídico.

Neste âmbito, as leis têm de esgotar a normação legislativa, pelo que a intervenção regulamentar superveniente, quando admitida deve manter-se num plano puramente executivo.
Assim, a ponderação do que acima se expende não deixa dúvidas de que as normas constantes do Decreto-Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, que estabelece o Regime de Comparticipação Atribuída aos Órgãos de Administração da Justiça pelos Activos, Financeiros e Não Financeiros, por si Recuperados, são orgânica e formalmente inconstitucionais, por postergar a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia Nacional, prevista no artigo 164.º da Constituição.

III. Sobre a Inconstitucionalidade Material

Afirma a Requerente que a disciplina prevista no Decreto Presidencial colocado em crise viola os princípios da independência e imparcialidade do tribunal e dos juízes, a autonomia do Ministério Público e o direito a julgamento justo e conforme.
O regime previsto no Decreto Presidencial n.º 69/21, recorda-se, concretamente nos seus artigos 3.º a 5.º, determina a repartição de uma comparticipação de 10% do valor líquido do activo recuperado, determinado pela sua natureza e respectivo preço de mercado à Procuradoria-Geral da República e aos tribunais, a fim de se melhorar as condições de funcionamento destas instituições, o que, na perspectiva da Requerente, coloca em causa o distanciamento e a isenção necessária à tomada de decisões nos tribunais, fazendo também com que o Ministério Público passe de parte formal à parte em sentido material no processo, por ter um interesse directo na causa.
O direito a julgamento justo e conforme, também caracterizado como princípio fundamental a um processo equitativo, vem previsto no artigo 72.º da CRA que estabelece o seguinte: “a todo cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei”.

Como é sabido, e consta de variada jurisprudência do Tribunal Constitucional, o direito a julgamento justo e conforme tem um conceito amplo, susceptível de diversificada concretização, cuja densificação decorre sobretudo da jurisprudência sobre a matéria.

Segundo o sedimentado por este Tribunal (conforme o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 650/2020, disponível in www.tribunalconstitucional.ao): o princípio do julgamento justo e equitativo é um “princípio fundamental de qualquer sociedade democrática, profundamente imbricado com o Estado de Direito (rule of law), não havendo fundamento para qualquer interpretação restritiva, e que visa, acima de tudo, defender os interesses das partes e os próprios da administração da justiça, para que os litigantes possam apresentar o seu caso ao tribunal de forma efectiva. Tem como significado básico que as partes na causa têm o direito de apresentar todas as observações que entendam relevantes para a apreciação do pleito, as quais devem ser adequadamente analisadas pelo tribunal, que tem o dever de efectuar um exame criterioso e diligente das pretensões, argumentos e provas apresentados pelas partes e que a justeza (fairness) da administração da justiça, além de substantiva, se mostre aparente (justice must not only be done, it must also be seen to be done)”.

O princípio é, na verdade, como afirmam Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, “um pressuposto do Estado democrático e de direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente, que deve assegurar um julgamento público e num prazo razoável, bem como as garantias de defesa material”. In Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, FDUAN, 2014, pág. 398.

O seu núcleo essencial é determinado através de outros valores, direitos ou princípios constitucionais, analisados casuisticamente à luz das ponderações impostas pelo caso concreto, designadamente, os princípios do Estado de direito, do acesso ao direito, da igualdade, da presunção de inocência, da proporcionalidade, o direito ao contraditório, o direito à fundamentação das decisões, o direito à prova, e o direito a prazos razoáveis de acção e de recurso, sendo que, a violação destes, inculca também a violação do princípio do Julgamento justo e conforme.

A esmagadora maioria dos instrumentos internacionais de direitos humanos referem-se à obrigatoriedade de os Estados assegurarem um julgamento justo por “um tribunal independente e imparcial”, conforme se pode constatar no disposto nos artigos 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP).

Isto é, para que um julgamento seja considerado justo e conforme torna-se necessário assegurar um conjunto variado de garantias substantivas e adjectivas, dentre as quais destacam-se também a independência e imparcialidade dos tribunais e dos juízes, que são uma das garantias mais elementares e fulcrais do Estado democrático e de direito (artigo 2.º da CRA), e representam uma das regras clássicas do Estado Constitucional. Daí a imposição legal da exclusão do iudex inhabilis e da recusa do iudex suspectus (cf. Eduard Bötticher L’Uguaglianza di fronte al giudice, in Jus, anno VII, Março, 1956, págs. 479-480).

O legislador constituinte consagrou expressamente as garantias de independência e imparcialidade dos tribunais e dos juízes, no artigo 175.º e no n.º 1 do artigo 179.º da CRA, sendo que, à propósito do Ministério Público, a Constituição refere-se somente à autonomia, que se traduz na sua vinculação apenas à critérios de legalidade e objectividade (artigo 185.º). Diferentemente do que sucede com os Magistrados Judiciais, o Ministério Público não goza, em regra, das garantias de independência e imparcialidade, nem a referência constitucional à sua autonomia pode ter o alcance definido para estas garantias enunciadas.
No entanto, quando se trate de analisar o processo equitativo, sob o viés da violação das regras de independência e imparcialidade dos tribunais, deve-se incluir os Magistrados do Ministério Público como parte do tribunal, em sentido amplo, estando também, nestes casos, vinculados aos deveres de isenção e equidistância face ao objecto e às partes do processo (com interesse, TADHP, Mohamed Abubakari c. República Unida da Tanzânia, n.º 007/2013, de 3 de Junho de 2016, §§ 110 e 111, acessível in https://www.african-court.org).
Assim, tendo em atenção que as razões evocadas pela Requerente para sindicar a autonomia do Ministério Público prendem-se com a sua intervenção em determinado processo judicial, este Tribunal cingirá a sua apreciação aos princípios da independência e imparcialidade dos Tribunais, englobando-se no termo “tribunais”, tanto os Magistrados Judiciais, como os Magistrados do Ministério Público.

A garantia de independência refere-se à autonomia de um determinado juiz ou tribunal para decidir casos, aplicando o direito aos factos. Essa independência significa que os juízes não podem decidir os casos submetidos à sua apreciação e resolução de acordo com suas preferências pessoais, com condicionamentos ou temor à eventuais represálias. Esta compreende duas dimensões, uma interna e outra externa.

A independência externa é um corolário do princípio da separação de poderes que se traduz na inadmissibilidade de condicionamentos, pressões e instruções por parte dos titulares de órgãos de outros poderes (nomeadamente, do poder legislativo e do poder executivo), e visa salvaguardar os tribunais dos demais poderes do Estado, assim como defender os direitos e interesses legítimos dos cidadãos perante o Estado. A independência interna determina, por sua vez, que, ainda que sejam independentes relativamente aos demais poderes do Estado, os tribunais são também independentes entre si, salvo as relações de hierarquia e supra-ordenação dentro de cada ordem ou categoria de tribunais (artigos 176.º e 177.º da CRA), não obstante a cooperação que entre todos deve haver na administração da justiça.

Por seu turno, a garantia essencial de imparcialidade propugna que os juízes, no exercício da função jurisdicional, ocupem uma função equidistante perante os interesses em conflito. Neste âmbito é igualmente possível desenhar-se uma dupla dimensão: subjectiva e objectiva. A imparcialidade subjectiva diz respeito ao foro íntimo do juiz, impondo a ausência de preconceitos ou ideias pré-definidas. A imparcialidade objectiva reporta-se à pura objectividade e incondicional juridicidade que deve caracterizar o juízo de qualquer tribunal.

Conforme estabelece o Princípio 2.º, dos Princípios Básicos, relativos à Independência da Magistratura (Adoptados pelo Sétimo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, realizado em Milão, de 26 de agosto a 6 de setembro de 1985, e endossados pela Assembleia Geral das Nações Unidas nas suas Resoluções n.ºs 40/32, de 29 de Novembro de 1985, e 40/146, de 13 de Dezembro de 1985): “Os juízes deverão decidir todos os casos que lhes sejam submetidos com imparcialidade, com base nos factos e em conformidade com a lei, sem quaisquer restrições ou influências, aliciamentos, pressões, ameaças ou intromissões indevidas, directas ou indirectas, de qualquer sector ou por qualquer motivo”.
Neste esteio, o Comité de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (CDHONU) salientou que no contexto do artigo 14.º do PIDCP, a imparcialidade do tribunal supõe que os juízes não devem ter ideias pré-concebidas com relação ao assunto sob apreciação e que não devem actuar de modo que promovam os interesses de uma das partes (Decisão de 23 de outubro de 1992, Comunicação n.º 387/1989, Arvo O. Karttunen c. Finlândia, Documento ONU CCPR/C/46/D/387/1989, § 7.2).
Revertendo às normas em apreço, estas determinam, conforme já se afirmou, a atribuição de uma vantagem patrimonial à Procuradoria-Geral da República e aos Tribunais, resultante da perda alargada de bens decretada, em caso de condenação por um crime patrimonial que tenha lesado o Estado. São requisitos para que se conceda 10% destes activos: a condenação do arguido por crime patrimonial que tenha causado prejuízos ao Estado e que este não faça prova da proveniência lícita do património incongruente, nos termos do disposto nos artigos 4.º e 5.º da LRCPAB.

Segundo o disposto no Decreto Presidencial sob censura, o titular da acção penal, por excelência, vinculado a critérios estritos de legalidade e objectividade, e o órgão a quem incumbe decidir a causa de modo equidistante e isento, tornam-se nos beneficiários primários de uma eventual decisão de condenação e de reversão da titularidade de determinado património a favor do Estado.

O que está em causa é, pois, saber se é ou não respeitado o desiderato de exclusão de parcialismo relativamente à lide, desiderato para cuja realização concorre a garantia de independência e imparcialidade do tribunal e que se consubstancia igualmente numa exigência de paridade de tratamento das partes no processo.

Contende, tal disciplina, com as regras de independência e imparcialidade dos tribunais?

Veja-se,
As garantias de independência e imparcialidade são inerentes ao direito de acesso aos tribunais, constituindo no direito penal angolano, tendo em conta a sua natureza acusatória, uma dimensão importante do princípio das garantias de defesa.
Estas postulam não só uma isenção e equidistância real, mas também que estas devem verificar-se de modo aparente. Além de os tribunais não poderem ter um preconceito efectivo, não podem ser razoavelmente percebidos como inclinados a determinada animosidade.

Na verdade, para que se assegure um processo equitativo, justo e conforme, não é apenas necessário que o tribunal seja independente e imparcial, é imprescindível que essa independência ou imparcialidade seja manifesta, conforme enuncia o brocardo anglo-saxónico “not only must justice be done it must also be seen to be done”, sendo, portanto, igualmente decisivo que um indivíduo médio, representativo da comunidade, diante de determinado facto, possa, fundadamente, suspeitar que o Juiz ou o Ministério Público, por influência deste, tenha a sua independência e imparcialidade comprometida.

Atente-se, no entanto, de que não se trata de tutelar o simples receio ou temor de que o tribunal já tenha algum convencimento prévio relativamente ao thema decidendum. Aqui relevam tão-somente as apreensões dos interessados, objectivamente justificadas de que o tribunal seja manifestamente parcial.

A imparcialidade dos tribunais não é apenas uma imparcialidade subjectiva, conforme se afirmou, ela é também objectiva, e deve ser assegurada antes e durante o julgamento. Quando a confiança da colectividade nesta imparcialidade é justificadamente posta em causa, o tribunal não está em condições de administrar a justiça em nome do povo, o que torna imperioso que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.

A Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos também se pronunciou no sentido de que para que um tribunal se considere parcial basta apenas que se verifique a possibilidade de gerar dúvidas razoáveis sobre a sua isenção. Por ocasião de um procedimento de comunicação, a Comissão afirmou que um tribunal integrado por um juiz e membros das forças armadas, aéreas, policiais e da marinha, não pode ser considerado imparcial porque "independentemente do carácter de membros individuais desses tribunais, sua composição por si mesma cria a aparência de falta, senão a ausência efectiva, de imparcialidade" (The Constitutional Rights Project c. Nigéria, Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Comunicado nº 60/91 (1995), §§ 13-14; no mesmo diapasão, Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, caso Hauschildt c. Dinamarca, de 24 de Maio de 1989, 11/1987/134-188, pág. 14, § 48).
No caso concreto, o Decreto Presidencial sob apreciação prevê e legitima que da decisão de condenação prolactada pelo tribunal, ou da decisão de recuperação de activos proferida pelo Ministério Público, advenha uma vantagem económico-financeira imediata aos órgãos com intervenção directa no processo e poder para regular a situação concreta de modo definitivo. Tal facto não só não oferece garantias objectivas suficientes, mas é também hábil a desencadear dúvidas, além do razoável, a respeito da sua isenção.
Isto porque, as garantias de independência e imparcialidade implicam, desde logo, que os magistrados não tenham um interesse pessoal na causa, postulando uma intervenção judicial equidistante, desprendida e descomprometida em relação ao objecto da causa e a todos os demais sujeitos processuais. Estes princípios repudiam o exercício, no processo, de funções judiciais por quem tenha ou se possa objectivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a responsabilidade penal do arguido, bem como por quem não esteja (ou se possa objectivamente temer que não esteja) em condições de as desempenhar de forma totalmente desinteressada, neutra e isenta.
Clarifica-se, no entanto, que, com o expendido, não se pretende afirmar que o Estado não deve aprimorar as condições de funcionamento dos serviços afectos à justiça. Nas sociedades hodiernas não se deve descurar a indispensabilidade de se dotar os órgãos de administração da justiça com os meios necessários à prossecução dos seus fins, pois que a ausência de meios financeiros ou de recursos adequados pode redundar na sua vulnerabilidade à corrupção e no próprio enfraquecimento das garantias de independência e imparcialidade. Aliás, tal facto não só é recomendado, mas também impulsionado, uma vez que o preceito do artigo 178.º da CRA prevê a possibilidade de participação do Poder Judicial no processo de elaboração do seu próprio orçamento.
Porém, a atribuição de recursos financeiros àquelas instituições de justiça, pela sua natureza, finalidade e atribuições, não deve ser desenhada de modo que, de acordo ao censo e à experiência comuns, se possa, virtual e abstractamente, depreender que se está a atribuir uma vantagem ao órgão decisor, por decidir de acordo a um sentido previamente determinado, no caso, o da condenação do arguido ou da recuperação do activo visado.

A afectação de recursos à Procuradoria-Geral da República e aos tribunais, instituições estas que se pretendem integralmente neutras, deve ser definida de acordo com critérios objectivos, claros e abstractos, sem que se faça depender tal dotação financeira da natureza da decisão que possam eventualmente proferir.
Com efeito, a especial exigência de isenção no exercício da função jurisdicional não permite, ao analisar o disposto no Decreto Presidencial sob censura, concretamente nos seus artigos 3.º a 5.º, concluir-se pela abstracção do tribunal relativamente a composição da lide. Não é possível afirmar, com segurança, que, em quaisquer circunstâncias, o tribunal não terá um interesse directo nessas controvérsias em que a decisão de condenação redunda no benefício económico a que aquelas normas se referem.
A provisão de meios financeiros aos tribunais e à Procuradoria-Geral da República deve estar estruturada de forma a assegurar que a decisão sobre a causa se realizará do estrito ponto de vista da juridicidade, não podendo a decisão ser determinada por considerações de oportunidade política ou de eficiência ou racionalidade económica. A possibilidade de intervenção destes critérios anularia a própria essência da jurisdição, a qual assenta precisamente no facto de a decisão ou sentença ser proferida de um ponto de vista estrita e exclusivamente jurídico (Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, págs. 146-148).
A suspeição dos arguidos nos processos visados de uma eventual parcialidade do tribunal anularia precisamente o carácter de legitimação pelo procedimento e a função de diluição e mediatização de conflitos que é assegurada pela existência de tribunais e procedimentos jurisdicionais dotados de garantia de imparcialidade.


Por este motivo, conclui-se que as normas contidas nos artigos 3.º a 5.º do Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, que prevêem a atribuição de uma comparticipação, pelos activos financeiros e não financeiros por si recuperados, aos Órgãos de Administração da Justiça, aí determinados como sendo a Procuradoria-Geral da República e os Tribunais, são, pois, inconstitucionais, por contenderem com as garantias de independência e imparcialidade dos tribunais, e, consequentemente, com o princípio do processo equitativo, previstos nos artigos 72.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 179.º, todos da Constituição da República de Angola, na medida em que a solução prevista no Decreto Presidencial em apreciação cria nos arguidos a convicção de que o desfecho da lide se encontra viciado desde a sua génese através da atribuição da aludida comparticipação, que permite a composição do litígio por meio de contornos previamente definidos.

IV. Sobre o Efeito da Decisão

A Constituição angolana consagra, no n.º 1 do seu artigo 231.º, o principal efeito da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, que se traduz na expurgação da norma inquinada com o vício de inconstitucionalidade e na destruição dos seus efeitos jurídicos desde o momento da sua entrada em vigor.

A este regime regra registam-se excepções dispostas nos números subsequentes do preceito normativo, que prevêem a possibilidade de alteração dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, a fim de se impedir que, numa ponderação axiológica de bens jurídicos afectados pelas consequências da decisão, o imperativo de invalidação dos efeitos do acto inconstitucional, à luz do princípio da constitucionalidade, ínsito no n.º 3 do artigo 6.º da CRA, possa vir a prevalecer para além de uma justa medida, sobre outros valores jurídicos e interesses públicos que também são dignos de especial protecção constitucional.
Nos termos do n.º 4 do artigo 231.º da CRA, este Tribunal tem a faculdade de fixar os efeitos de inconstitucionalidade com o alcance mais restrito do que o que resultaria da aplicação do preceito do n.º 1 do mesmo artigo, se tal se justificar, por razões conexionadas com a segurança jurídica, a equidade ou interesse público de excepcional relevo.
Ainda em conformidade com referido preceito, para limitar os efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional deve cotejar o interesse na reafirmação da ordem jurídica, que a eficácia ex tunc da declaração plenamente potencia, com o interesse na eliminação do factor de incerteza e de insegurança, que a retroactividade, em princípio, acarreta. Nesta ponderação, deve-se atender às exigências da segurança jurídica (entendida em sentido estrito), da equidade (como solução justa a aplicar aos efeitos concretamente já produzidos pela norma declarada inconstitucional) e do interesse público (de excepcional relevo).
Não há dúvida de que razões de equidade e de segu¬rança jurídica justificam, no caso vertente, a restrição dos efeitos da inconstitucionalidade, de modo a salvaguardar situações concretas plenamente estabilizadas.
Dada a evidente necessidade de se garantir a equidade e segurança jurídica, este Tribunal considera que devem ser ressalvados os efeitos entretanto produzidos pelas normas em causa, para tanto fazendo uso da faculdade contida no n.º 4 do artigo 231.º da Constituição.

Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:


a) Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade orgânica e formal das normas constantes do Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, que estabelece o Regime de Comparticipação Atribuída aos Órgãos de Administração da Justiça pelos Activos, Financeiros e Não Financeiros, por si Recuperados, na medida em que ao definir a atribuição de uma comparticipação aos órgãos de administração da justiça, resultante dos bens revertidos a favor do Estado, no âmbito do regime da perda alargada de bens, prevista na Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, viola a regra de reserva absoluta de lei parlamentar, ínsita no artigo 164.º da CRA;

b) Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade material, por violação do disposto nos artigos 72.º, 175.º e n.º 1 do artigo 179.º da Constituição, das normas dos artigos 3.º a 5.º do supracitado Decreto Presidencial, que determinam a atribuição de uma comparticipação financeira à Procuradoria-Geral da República e aos Tribunais, na medida em que não se afigura adequada ao preenchimento das garantias de independência e imparcialidade;

c) Ressalvar, por razões de equidade e de segurança jurídica, os efeitos entretanto produzidos pelas referidas normas, de harmonia com o preceituado no n.º 4 do artigo 231.º da Constituição da República de Angola.

Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 03 de Outubro de 2023.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva