Loading…
TC > Jurisprudência > Acórdãos > Acórdão Nº 846/2023

Jurisprudência

ACÓRDÃO N.º 846/2023


Processo N.º 1004-B/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 

I.  RELATÓRIO 

António Alves Moreira, melhor identificado nos presentes autos, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC),  do Acórdão proferido no Processo n.º 39/18, que rejeitou o pedido de cassação proposto pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, por considerar que o mesmo viola os artigos 29.º, n.º 1, 174.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, todos da Constituição da República de Angola (CRA). 

Consta dos autos que a ofendida Maria Manuela José Perez celebrou, a 6 de Agosto de 2008, um contrato de arrendamento referente ao estabelecimento comercial KIANDA com Cláudio Daniel de Sousa Marques de Oliveira que, na qualidade de arrendatário, procedeu ao pagamento antecipado de dois anos de renda, correspondentes a trinta e seis mil dólares norte americanos e, assim, ergueu um espaço denominado “The Grill Place”.

Em Outubro de 2009 (fls. 22 a 27) Cláudio Daniel Marques de Oliveira transferiu a posse do referido espaço para o Recorrente, pelo preço de um milhão de dólares norte americanos, tendo ficado acordado entre as partes que, no acto da entrega do documento de direito de superfície, seria feita a assinatura definitiva do respectivo contrato. Esta alienação ocorreu sem o conhecimento da ofendida Maria Manuela José Perez, proprietária do imóvel.

Instaurado o respectivo processo crime contra Cláudio Daniel de Sousa Marques de Oliveira, aos 18 de Junho de 2015, o Tribunal a quo condenou à revelia o réu, pela prática do crime de abuso de confiança, tendo, também, ordenado a entrega do estabelecimento comercial KIANDA à ofendida.

Inconformado, o aqui Recorrente, interpôs recurso, tendo sido o crime declarado amnistiado, aos 23 de Março de 2017, por Despacho prolactado pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, aludindo este Despacho que o ofendido, querendo, pode intentar a competente acção cível por perdas e danos. 

Perante este facto, o Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo apresentou ao Plenário deste mesmo Tribunal, uma proposta de recurso extraordinário de cassação do referido Despacho, ao abrigo do artigo 53.º da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro – Lei do Ajustamento das Leis Processuais Penal e Civil, que não foi admitida por falta de pressupostos legais (fls. 345 – 347). 

Inconformado com esta decisão, o ora Requerente interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para esta Corte se pronunciar sobre a sua constitucionalidade.

O Recorrente apresenta, em conclusões, as suas alegações (fls. 371 a 389), nos termos e fundamentos seguintes:

1. A 8.ª Secção da Sala do Crime do Tribunal Provincial de Luanda não efectivou os termos do recurso, proferido no Despacho do Venerando Juiz Presidente do Tribunal Supremo que ordenou a admissão do recurso com EFEITO SUSPENSIVO. 2. O Acórdão proferido pela 8.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda não pode ser exequível no concernente a parte b, ou seja," b) Ordeno que seja entregue o estabelecimento comercial a ofendida (CÍVEL) (...)”. 
3. Nunca foi parte nos autos, que correram os seus termos na 8.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, tendo colaborado no mesmo como declarante e consequentemente, na qualidade de simples participante processual para uma melhor administração da justiça. 
4. Adquiriu validamente o imóvel e juntou os competentes documentos do Sr. Cláudio Daniel de Sousa Marques de Oliveira, estabelecimento comercial designado "The Grill Place" o qual pagou o valor de USD 1 000 000,00 (um milhão de dólares dos Estados Unidos da América). 
5. Nunca esteve em posse do estabelecimento comercial designado "Kianda" e nunca conheceu. 
6. Em momento algum, foi enxertada a acção cível em processo crime, nos termos do artigo 29.º do CPP, permitindo o exercício do contraditório da parte do Recorrente. 
7. Nos termos do n.º 4.º do artigo 626.º do CPP em vigor à data dos factos, o Acórdão proferido pela 8.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial, não é exequível em relação ao Recorrente, na sua qualidade de pessoa diversa do réu, terceiro de boa fé. 
8. Não representa o Réu, nem se lhe pode impor responsabilidades próprias dos agentes do crime, tendo colaborado no processo na qualidade de simples participante processual, tendo em vista a boa administração da justiça. 

9. O imóvel que a ofendida deu de arrendamento ao Réu era composto por um contentor velho, cercado por um muro inacabado, completamente abandonado, conforme fotografias constantes nos autos. 
10. Adquiriu um estabelecimento comercial designado "Restaurante The Grill Place" e não um estabelecimento comercial designado "KIANDA". 
11. Realizou o negócio de boa fé e em momento algum, durante o período em que o mesmo negociou, face a documentação apresentada pelo Réu, constante nos presentes autos, se aventou qualquer hipótese de irregularidade, fraude ou qualquer outra. 
12. Requereu tempestivamente que sobre o Despacho proferido pelo Venerando Juiz Relator recaísse um acórdão nos termos e para os efeitos do artigo 700.º do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo penal por força do artigo 649.º do CPP à data em vigor, tendo o mesmo nunca se pronunciado. 
13. As várias instâncias pelo qual o processo passou, nomeadamente: 8.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, Tribunal Supremo e Plenário do Tribunal Supremo, violaram o artigo 177.º da Constituição da República de Angola. 
14. Na qualidade de terceiro de boa fé, a coberto do n.º 2 do artigo 668.º do CPC, deveria ver a sua pretensão atendida pelo Tribunal Supremo. 
15. A 8.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda e o Tribunal Supremo, violaram gravemente a Lei adjectiva com consequência prevista no artigo 668.º do CPC.
16. O Processo mandado arquivar por força da amnistia, em sede de recurso, não excluiu o efeito suspensivo, bem como as questões cíveis levantadas pelo Recorrente. 
17. O poder jurisdicional do Juiz da primeira instância esgotou-se com a prolação da sentença, sendo que ao mesmo caberia apenas o poder de rectificar erros materiais suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes na sentença e reformá-la quanto a matéria de custas e multa (vide artigo 666.º do CPC, aplicável subsidiariamente por força do parágrafo único do artigo 1.º do C.P.P.).
O Recorrente alega que a Decisão recorrida violou os princípios consagrados nos artigos 29.º, n.º 1, 174.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, todos da CRA, termos em que requer a sua alteração e, consequentemente, a declaração de inconstitucionalidade do Despacho prolactado pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo. 

O processo foi à vista do Ministério Público, que, em síntese, promoveu o seguinte:
Entendemos que a análise das questões cíveis a nível do processo-crime decorre do princípio da suficiência do processo penal que permite que no âmbito deste último se possam analisar todas as questões, incluindo as não penais, que estejam relacionadas com o crime. Uma vez extinto o procedimento criminal, estas questões se vêm, de certa forma prejudicadas no processo penal, o que não significa que não possam ser atendidas, nomeadamente em processo de outra natureza.
Um olhar atento aos artigos 29.º, 30.º e 32.º do CPP de 1929, então vigente, transmite-nos bem o sentido e alcance do princípio da suficiência do processo penal, ao mesmo tempo que deixa claro que, na impossibilidade de andamento da acção penal, seja por arquivamento, falta de andamento por um lapso de tempo ou absolvição do arguido é do foro cível e de modo autónomo que as questões civilistas emergentes do processo-crime devem ser tratadas.
O artigo 33.º do mesmo CPP, embora não se aplique ao caso vertente, é ainda mais peremptório ao afirmar que face à extinção da acção penal antes do julgamento as questões por perdas e danos só podem continuar no tribunal civil.
A Lei de Amnistia é, de resto, uma lei especial nesta matéria, podendo afastar, por conseguinte, qualquer norma constante de lei geral a respeito, sendo que neste caso até coincide com a lei geral.
Ao contrário da legislação penal em vigor à data dos factos do caso em análise, o Código Penal Angolano (CPA) actualmente vigente dispõe de forma algo diferente sobre esta questão admitindo que, havendo amnistia, a acção penal possa prosseguir unicamente para efeitos da determinação da responsabilidade civil do arguido, desde que haja dedução de pedido de indemnização cível e requerimento do lesado ou do Ministério Público. Vide artigo 90.ª do CPA.
Assim, concluindo-se pela não obrigatoriedade de apreciação e decisão da Câmara Criminal do Tribunal Supremo do recurso com a matéria cível interposto pelo Recorrente, pensamos não ser de se dar provimento ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade por si interposto por duas razões:

1. Ao não atender o referido recurso, a Câmara Criminal do Tribunal Supremo obedeceu ao comando legal do artigo 5.º da Lei da Amnistia, não tendo, por isso mesmo, violado o princípio da legalidade ou qualquer outro princípio constitucional alegado pelo Recorrente.

A declaração de extinção do procedimento criminal por amnistia, não carece de ser feita por acórdão com grande fundamentação, sendo o modelo escolhido no caso em análise aquele que é usual e que encontra respaldo na Lei da Amnistia e no Código Penal, pelo que, ainda que se entendesse que o despacho pudesse ser mais elaborado, a sua simplicidade ou insuficiência de fundamentação (na óptica do Recorrente) não constitui absoluta falta de fundamentação e só esta levaria a sua nulidade.
2. Tendo o Recorrente que interpor ou dar continuidade a competente acção no Tribunal Cível, não estão, parece-nos, esgotadas a cadeia recursória, nem as possibilidades de ver a sua pretensão atendida num processo com o exercício pleno do contraditório da sua parte e dos demais envolvidos.

Entretanto, sem querer entrar no mérito das questões, não podemos terminar sem referir que, se os recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo Recorrente no tribunal de 1ª instância, de per si, já deviam ab initio operar a total suspensão da execução do acórdão proferido nessa mesma instância, tendo sido o processo amnistiado, não podia, de forma alguma, ser tal acórdão executado nem total, nem parcialmente, o status quo anterior a este acórdão devia ser mantido.
Por tudo acima exposto, pugnamos pelo não provimento de recurso extraordinário de inconstitucionalidade interposto pelo Recorrente.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II.  COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho — Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns, conforme estatuído no § único do artigo 49. º da LPC.

III.  LEGITIMIDADE
Apesar de o proponente do recurso de cassação não ter sido o Recorrente mas, sim, o Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, o Recorrente é a pessoa directa e efectivamente prejudicada pela decisão de não admissão do recurso de cassação, pelo que, por força do n.º 2 do artigo 680.º do Código de Processo Civil, tem legitimidade activa para interpor o presente recurso. 

IV.  OBJECTO 
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é verificar se o Acórdão proferido pelo Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, no Processo n.º 39/18, que rejeitou o pedido de cassação do Despacho que declarou extinto o procedimento criminal por força da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto, Lei da Amnistia, violou ou não princípios, direitos ou garantias constitucionais.  

V.  APRECIANDO

Questão prévia
O Recorrente afirma reiteradamente e tenta convencer esta Corte que o objecto do presente recurso é a questão cível do Acórdão prolactado em primeira instância, o que não é verdade. 
Senão vejamos,
O Recorrente foi declarante no Processo-Crime n.º 2117/10, que correu os seus termos na 8.ª Secção do então Tribunal Provincial de Luanda. 
Porque da decisão no referido processo, adveio um prejuízo considerável no seu património, uma vez que o Tribunal a quo ordenou que o imóvel que o Recorrente adquiriu, motivo principal do processo em primeira instância, fosse entregue à vítima, interpôs embargo de terceiro daquela decisão. 
O Juiz a quo não admitiu o recurso por entender que ele, Recorrente, não tinha legitimidade, uma vez que não havia sido réu no processo.
Desta decisão o mesmo reclamou junto do Presidente do Tribunal Supremo e teve provimento, ou seja, o recurso foi admitido, com efeito suspensivo. Porém, não obstante a decisão fixar o efeito suspensivo, o imóvel já não retornou a posse do Recorrente, apesar dos vários requerimentos a exigir a devolução.
À par destes acontecimentos processuais, o recurso admitido foi mandado arquivar pelo Juiz Relator da Câmara Criminal do Tribunal Supremo porque, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto, Lei de Amnistia, foi declarado extinto o crime e o procedimento criminal dos autos e, em consequência, o seu arquivamento, pondo fim, quer ao processo, quer à cadeia recursória ordinária (cfr. Acórdão n.º 488/2018, pág. 1). 
Porém, o Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo apresentou ao Plenário deste mesmo Tribunal, uma proposta de cassação do referido Despacho, que foi negada, mediante Acórdão proferido pelo Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, no Processo n.º 38/18 (fls. 345 – 347). É, precisamente, desta decisão que o Requerente interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. 
Portanto, o que o Recorrente, de facto, veio pedir a esta Corte, é a fiscalização da constitucionalidade da decisão do Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo que não admitiu o pedido de cassação por falta de pressupostos legais e é sobre esta (e apenas sobre esta) decisão, que o Tribunal Constitucional se vai pronunciar, sem prejuízo das suas conexões com o Despacho que lhe deu causa.
Resolvida esta questão prévia, urge apreciar, para decidir sobre o mérito da questão recorrida. Assim sendo, no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade esta instância se limitará a apreciar a constitucionalidade do Acórdão do Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, exarado no processo n.º 38/19, nomeadamente se o mesmo violou ou não os princípios da função jurisdicional, das decisões dos tribunais e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrados, respectivamente, nos artigos 174.º, n.º 2, 177.º, n.º 1 e 29.º, n.º 1, todos da CRA. 
  
Continuando,  

a) Sobre a violação dos princípios gerais da função jurisdicional e das decisões dos tribunais

O Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, legitimado para propor ou requerer o recurso de cassação, por força do n.º 1 do artigo 55.º da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro – Lei do Ajustamento das Leis Processuais Penal e Civil – em vigor na altura dos factos, entendeu propor o recurso, posto que a decisão então recorrida (Despacho de extinção do procedimento criminal por força da Lei da Amnistia) não se pronunciou sobre o efeito suspensivo do recurso, o que a tornaria nula conforme alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC. O Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, por não se tratar de uma sentença condenatória, decidiu não admitir o recurso de cassação proposto, por falta de requisitos legais (fls. 345 a 347).
O Recurso de cassação é um recurso extraordinário e admissível apenas no âmbito dos processos penais, conforme dispõe o artigo 53.º da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro – Lei do Ajustamento das Leis Processuais Penal e Civil. 
A natureza extraordinária de um recurso reside no facto de se poder recorrer a este expediente só depois do trânsito em julgado da decisão. 
Conforme afirma Hermenegildo Cachimbombo, “(…) o critério que no nosso ordenamento jurídico preside a distinção legal dos recursos em ordinários e extraordinários é o critério do trânsito em julgado da decisão recorrida”. In Manual dos Recursos no Direito Processual Civil Angolano, 2ª Edição, Casa das Ideias, 2017, pág. 48 in fine.   
Para que se possa lançar mão a um recurso de cassação, é necessário que exista i) decisão penal; ii) que esta decisão penal seja condenatória, e iii) que tenha transitado em julgado. Estes são, pois, os requisitos legais do recurso de cassação, nos termos do artigo 53.º da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro. 

Os requisitos legais funcionam como pressupostos sine qua non, para o prosseguimento do recurso. Ou seja, basta que a decisão não seja proferida no âmbito de um processo penal, ou se for, que não seja condenatória, ou se o for, que não tenha transitado em julgado, para que o recurso não seja admitido. O que se quer significar é que estes três requisitos são cumulativos, bastando a falta de um deles para que o referido recurso não seja admitido. E foi o que de facto aconteceu in casu. 
A decisão que deu causa ao recurso de cassação, apesar de ter sido proferida em um processo penal e ter transitado em julgado, não é uma decisão condenatória, pelo contrário, ela é favorável ao condenado. 
É neste sentido que o Acórdão recorrido (fls. 346-347) diz que “Embora tenha transitado em julgado, tal decisão não é condenatória. Aliás, pelo contrário, não constituindo propriamente uma absolvição, a amnistia traduz-se numa manifestação de soberania e consubstancia uma medida de graça, que consiste em considerar não praticados - e consequentemente, neutralizados os respectivos efeitos – determinados crimes. Dito de outro modo (e olhando para a origem etimológica), significa o esquecimento ou apagamento dos efeitos jurídicos da infracção criminal. Assim, a decisão em crise não é enquadrável no objecto do recurso de cassação, nos termos do art.º 53º da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro e do art. 535.º do novo Código do Processo Penal Angolano, aprovado pela Lei n.º 39/20, de 11 de Novembro.

Idêntico resultado ocorreria se o objecto do recurso de cassação fosse a decisão de primeira instância que, de facto, foi condenatória, mas nunca chegou a transitar em julgado (visto que o réu não foi capturado nem notificado da mesma)”. 
De acordo com Ana Prata, Catarina Veiga e José Manuel Vilalonga, “Sentença condenatória é aquela que condena o arguido pela prática dos factos de que vem acusado e, assim, "especifica os fundamentos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada" pela verificação do crime, indicando, se necessário, o início e o regime do seu cumprimento, eventuais deveres do condenado e a sua duração, bem como o plano de readaptação socia”. In Dicionário Jurídico, 2.ª Edição, Volume II, Direito Penal Direito Processual Penal, 2016, Pág. 462.

Assim, andou bem o Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo ao não admitir a proposta de cassação por falta de pressupostos legais, não tendo, portanto, sido violados os princípios da função jurisdicional e das decisões dos tribunais, previstos, respectivamente, nos artigos 172.º e 174.º da CRA.

b) Sobre a violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva

Alega o Recorrente que a decisão recorrida violou o princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, porque o Processo mandado arquivar por força da amnistia, em sede de recurso, não tornou efectivo o efeito suspensivo, bem como as questões cíveis levantadas pelo Recorrente.
O princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva está consagrado no artigo 29.º da CRA e “(…) reconduz-se fundamentalmente ao direito a uma solução jurídica de actos e relações jurídicas controvertidas, a que se deve chegar num prazo razoável e com garantias de imparcialidade e independência possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões ( de facto e de direito), oferecer provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de causas e outras". In Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, 2003, pág. 433. 
O Despacho do Juiz Relator da Sala Criminal do Tribunal Supremo, a fls. 320-321, que extinguiu o procedimento criminal por amnistia, determina que “O ofendido querendo, pode intentar a competente accão cível por perdas e danos”, deixando, assim, em aberto, a possibilidade de o ora Recorrente, querendo, intentar a competente acção de indemnização por perdas e danos, com fundamento no artigo 5.º da referida Lei da Amnistia (Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto) e do artigo 29.º e seguintes do CPP de 1929, então vigente.
O artigo 5.º da referida Lei da Amnistia dispõe que a amnistia prevista na presente Lei não extingue a responsabilidade civil, nem a disciplinar emergente de factos amnistiados e o prazo da propositura da acção de indemnização no tribunal competente por perdas e danos conta-se a partir da sua entrada em vigor.
É neste sentido que, no Acórdão n.º 488/2018, deste Tribunal Constitucional (pág. 7), já se afirmou que (...), o facto de, por razões de vária ordem, o Estado ter decidido dar a sua clemência a determinados crimes, não pode, nem deve ignorar a situação da vítima, garantindo que, pelo menos no plano de danos, a justiça possa funcionar através de um mecanismo próprio que é o da responsabilidade civil por danos. 
Assevera Manuel Lopes Maia Gonçalves, que “Na verdade, amnistia, como o vocábulo grego que é seu étimo, significa esquecimento. É a abolição da incriminação de certos factos passados, sendo assim tomada pela generalidade da doutrina nacional e estrangeira. A amnistia aniquila os factos passados objecto da incriminação, «de sorte que aos olhos da Justiça, por uma ficção legal, considera-se como se nunca tivessem existido, salvos os direitos de terceiro com relação à acção cível para reparação do dano»”. In Código Penal, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1972, pág. 227.      
Os direitos de terceiros estão, pois, salvaguardados pela acção cível que deve ser intentada no tribunal cível competente que não o criminal. 
Destarte, a parte cível da decisão deve ser impugnada, discutida e julgada nos tribunais comuns de natureza cível e só da decisão final destes tribunais, obedecendo à cadeia recursória, caberá, eventualmente, recurso para esta Corte.
Neste contexto, o Tribunal Constitucional conclui não ter o Acórdão recorrido violado o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, pois a decisão recorrida não prejudica a possibilidade de o Recorrente continuar a perseguir, nos tribunais próprios, os seus direitos, seja em relação ao imóvel, seja em relação ao seu direito de ser indemnizado. 

Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:  NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, POR NÃO TER O ACÓRDÃO RECORRIDO VIOLADO QUAISQUER PRINCÍPIOS, DIREITOS OU GARANTIAS CONSTITUCIONAIS.


Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 03 de Outubro de 2023.


OS JUÍZES CONSELHEIROS 


Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)  

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator)

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira 

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva