ACÓRDÃO Nº 849/2023
PROCESSO N.º 1070-B/2023
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
Augusto Lolo Camuimba, com os demais sinais de identificação nos autos, veio junto do Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, do Acórdão proferido pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 874/19.
O Recorrente, no âmbito do Processo n.º 39/C-018, que correu trâmites junto da 1ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal da Comarca do Soyo, intentou acção de conflito laboral, contra a sua entidade empregadora OPCO – SOCIEDADE OPERACIONAL ANGOLA LNG, SA.
O Tribunal a quo julgou parcialmente procedentes os pedidos do Recorrente e, em consequência, condenou a Requerida a indemnizar nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 239.º da Lei Geral do Trabalho, a quantia de USD 11.025,00 (onze mil e vinte e cinco dólares dos Estados Unidos da América), equivalente em Kwanzas ao câmbio do dia praticado pelo Banco Nacional de Angola (BNA).
Inconformada com a decisão, a Requerida, interpôs recurso, tendo o Tribunal ad quem, revogado a decisão recorrida, absolvido a apelante dos pedidos, e consequentemente, condenado o apelado a pagar a apelante o valor de USD 7. 375,00 (sete mil trezentos e setenta e cinco dólares dos Estados Unidos da América).
O Recorrente insatisfeito, veio interpor o presente recurso com base nos fundamentos resumidamente expostos:
1. O douto Acórdão proferido pelo Tribunal Supremo deve ser declarado inconstitucional, pelo facto do mesmo ter violado importantes princípios constitucionais e direito fundamentais, como sejam o princípio da legalidade previsto no n.º 2 do artigo 6.º, da proteção dos direitos da criança n.ºs 6 e 7 do artigo 35.º, protecção e de não ser despedido sem justa causa, n.ºs 2 e 4 do artigo 76.º, violação dos diretos fundamentais previstos nos artigos 174.º, 175.º e n.º 1 do artigo 177.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA).
2. O Tribunal Supremo, ao não ter confirmado a condenação da Recorrida, Empresa Sociedade Operacional Angola – LNG, em pagar ao Recorrente (…), aquilo que lhe é devido, violou gravemente (…) o artigo 226.º n.º 4 da LGT.
3. (…) os factos, tal como ocorreram, não cabem na previsão do artigo 206.º da LGT, pois o Recorrente apresentou justificações das suas faltas ao trabalho, que se deveram a assistência à família, nomeadamente a saúde da sua filha menor de idade.
4. Os autos demonstram que não houve culpa por parte do Recorrente, visto que, fruto da saúde grave da filha, motivou a ausência deste no local de trabalho, tendo cumprido com o vertido no n.º 4 do artigo 144.º da LGT (…).
5. (…) o Recorrente procurou informar a situação real da sua filha, motivo que levou a enviar a carta em língua estrangeira, que tão logo a mesma fosse traduzida, também faria o envio da mesma (…). Situação que não foi colhida por parte da apelante, apenas procurou ver o lado do trabalho e nunca o estado psicológico do Recorrente (…). Verificando-se mais uma vez a violação do princípio constitucional da legalidade e do interesse superior da criança.
6. Violou ainda o princípio da legalidade quando pune o Recorrente em pagar USD 7.375,00 (sete mil, trezentos e setenta e cinco dólares norte americano), tendo ficado provado que a culpa não foi do Recorrente em permanecer mais tempo do que o previsto, na cidade de Londres, apenas fê-lo por motivos de saúde.
7. Verifica-se ainda a violação do princípio da legalidade, por ter sido sonegado o disposto no n.º 2 alínea d), n.º 4 e 5 do artigo 226.º da LGT, que se refere ao despedimento indirecto e seus requisitos, porque estava em causa a vida de uma criança (…).
8. (…) o acórdão recorrido violou o princípio da legalidade previsto no n.º 2 do artigo 6.º da CRA, (…) visto que este não observou o plasmado no n.º 2 alínea d), n.º 4 e 5 do artigo 226.º da LGT.
9. (…) conclui-se que foram violados os princípios constitucionais da legalidade, igualdade, superior interesse da criança e do direito ao trabalho, consagrados no n.º 2 do artigo 6.º, n.ºs 6 e 7 do artigo 35.º e no n.º 4 do artigo 76.º, todos da CRA.
O Recorrente terminou as alegações requerendo que se declare a inconstitucionalidade material do Acórdão recorrido e em consequência seja alterada a decisão.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece como âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é parte no processo que correu tramites na Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, assim sendo, tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º LPC, que dispõe: “têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (…) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto aferir a constitucionalidade do Acórdão recorrido que revogou a decisão do Tribunal a quo, absolveu a apelante dos pedidos e condenou o apelado (aqui Recorrente) a pagar à apelante o valor de USD 7.375,00 (sete mil trezentos e setenta e cinco dólares norte americanos), por falta de aviso prévio.
V. APRECIANDO
Para melhor análise e enquadramento jurídico constitucional do presente recurso, atenhamos aos factos jurídicos decorrentes nos presentes autos.
Compulsados os autos, depreende-se que o Recorrente foi trabalhador da OPCO - Sociedade Operacional Angola LNG S.A (doravante, entidade empregadora), tendo iniciado a sua actividade laboral no ano de 2010, onde prestou serviço durante 8 (oito) anos.
O Recorrente, no gozo dos direitos que a Constituição e a lei lhe conferem, solicitou junto da entidade empregadora 15 (quinze) dias de férias, a contar do dia 19 de Dezembro de 2017, até ao dia 07 de Janeiro de 2018.
Este foi gozar as suas férias ao exterior do país (Inglaterra), onde a sua família se encontrava.
Terminado o período de férias, o Recorrente deveria retomar o trabalho no dia 8 de Janeiro de 2018, mas não compareceu ao local de trabalho. No mesmo dia, no final do expediente, enviou um email à entidade empregadora, a dar nota que não se fez presente, porque a sua filha encontrava-se enferma.
A entidade empregadora respondeu ao email enviado pelo Recorrente no dia 9 de Janeiro de 2018, tendo solicitado que este enviasse o comprovativo médico traduzido em português e autenticado, para justificar a sua ausência.
O Recorrente apresentou os documentos solicitados apenas no dia 22 de Janeiro de 2018, porém, não traduziu, nem os autenticou, conforme exigência da entidade empregadora.
No dia 26 de Fevereiro de 2018, o Recorrente solicitou a entidade empregadora uma licença sem remuneração. Esta indeferiu o pedido, com fundamento de que o Recorrente não havia apresentado o documento médico traduzido e autenticado, que justificasse a sua ausência do local de trabalho.
Consequentemente, a entidade empregadora solicitou que o Recorrente se apresentasse no local de trabalho até ao dia 12 de Março de 2018, ou que apresentasse os documentos solicitados, sob pena de instauração de um processo disciplinar contra si.
O Recorrente, não atendeu à advertência da entidade empregadora, não se apresentou no local de trabalho, nem submeteu os documentos solicitados.
Nesta senda, a entidade empregadora, instaurou um processo disciplinar contra o Recorrente, a 22 de Março de 2018, tendo-o convocado para a entrevista no dia 29 de Março do mesmo ano.
O Recorrente não compareceu a entrevista e neste mesmo dia, enviou um email a entidade empregadora a comunicar a rescisão do seu contrato de trabalho, com fundamento na alínea d) do n.º 2 e nos n.ºs 4 e 5 do artigo 226.º da LGT.
O Tribunal Supremo, em sede de apreciação do recurso, considerou o despedimento do Recorrente sem justa causa, nos termos do n.º 1 do artigo 228.º da LGT, com fundamento que “(…) o Apelante em momento algum praticou actos que consubstanciassem uma conduta intencional conducente a justa causa imputável ao empregador e conducente ao despedimento indirecto. (…) não está provado que a Apelante tenha adoptado alguma prática contra o Apelado idónea de pôr termo à relação jurídico-laboral vigente entre ambos, somos a afirmar que não houve despedimento indirecto e consequentemente, não houve a rescisão do contrato de trabalho por justa causa respeitante ao empregador (…). O despedimento indirecto invocado pelo Apelado não procede, porquanto não se vislumbra dos autos a existência de justa causa para o efeito. (…) tal despedimento deverá ser considerado rescisão sem justa causa (…)”.
Em consequência, revogou a decisão do Tribunal a quo, absolveu a apelante dos pedidos e condenou o apelado a pagar a apelante o valor de USD 7.375,00 (sete mil trezentos e setenta e cinco dólares), por falta de aviso prévio.
O Recorrente em sede de alegações sustenta que o Acórdão recorrido violou o princípio constitucional da legalidade, n.º 2 do artigo 6.º da CRA, n.º 2 alínea d) e n.ºs 4 e 5 do artigo 226.º da LGT, o superior interesse da criança, n.ºs 5 e 6 do artigo 35.º, o direito do trabalhador, n.º 4 do artigo 76.º, todos da CRA.
Assiste razão ao Recorrente?
Vejamos,
O princípio da legalidade está consagrado no n.º 2 do artigo 6.º da CRA, este dispõe que “o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”.
Este princípio serve de limitação e orientação da actuação de todos os órgãos do Estado, de igual modo, serve de protecção dos cidadãos contra qualquer arbítrio dos órgãos públicos.
O princípio da legalidade impõe ao julgador uma actuação pautada na observância dos preceitos estabelecidos na Constituição e na lei.
O Recorrente invoca que o Acórdão recorrido violou o princípio e os direitos em epígrafe por ter aplicado a norma do n.º 1 e 2 do artigo 228.º da LGT, inerente ao despedimento sem justa causa, em detrimento da alínea d) do n.º 2 e n.ºs 4 e 5 do artigo 226.º da LGT, despedimento com justa causa.
O Tribunal Constitucional analisou o Acórdão recorrido e conclui que este não violou nenhum direito ou garantia constitucional do Recorrente.
Dos factos descritos acima, depreende-se que a entidade empregadora, interpelou o Recorrente no dia 9 de Janeiro de 2018, para que apresentasse os documentos que se impunham, a fim de justificar as suas faltas. Este só os apresentou no dia 22 de Janeiro de 2018, porém não observou os requisitos exigidos pela entidade empregadora.
A entidade empregadora, no dia 12 de Março de 2018, solicitou que o Recorrente se apresentasse ao local de trabalho ou que mandasse os documentos para justificar a sua ausência, sob pena de instauração de um processo disciplinar. Todavia, este não observou nenhuma das solicitações.
Destarte, a entidade empregadora no dia 22 de Março de 2018, instaurou o processo disciplinar contra o Recorrente, marcando a entrevista para o dia 29 de Março do mesmo ano.
O Recorrente não compareceu no dia da entrevista, no mesmo dia enviou um email à entidade empregadora a comunicar a rescisão do seu contrato de trabalho.
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional entende que a rescisão do contrato de trabalho por parte do Recorrente foi sem justa causa, uma vez que foi o Recorrente que, depois de várias interpelações, não atendeu a exigência da entidade empregadora, de justificar as suas faltas, e consequentemente, tornou a relação jurídico laboral insusceptível de manutenção.
Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 36.º da LGT, a entidade empregadora tem o poder de dirigir a actividade da empresa e organizar os recursos humanos, por forma a realizar o objecto da empresa.
Em observância à norma supra, nada obstava a que a entidade empregadora exigisse do Recorrente o documento médico para justificar a sua ausência ou que ordenasse o seu regresso ao posto de trabalho, tal facto não representa qualquer acto de assédio moral ou violação dos seus direitos.
O Recorrente, ao não ter observado a exigência da entidade empregadora de justificar as suas faltas, violou o disposto no n.º 4 do artigo 144.º da Lei Geral do Trabalho (LGT), que dispõe que o trabalhador é obrigado a fornecer a prova para justificação das faltas.
Considerando que o Recorrente não observou a lei, o Tribunal Constitucional entende que o Tribunal Supremo andou bem ao ter aplicado a norma dos n.ºs 1 e 2 do artigo 228.º da LGT, inerente a rescisão nos contratos de trabalho sem justa causa e não a alínea d) do n.º 2, n.ºs 4 e 5 do artigo 226.º da LGT, que diz respeito a rescisão com justa causa, como era pretensão do Recorrente.
Como refere Norberto Moisés Moma Capeça, para que haja lugar a rescisão do contrato de trabalho com justa causa respeitante ao empregador ou despedimento indirecto “É necessário um comportamento ilícito e culposo do empregador que inviabilize a manutenção da respectiva relação, que viole, culposa e gravemente, direitos do trabalhador estabelecidos na lei, na convenção colectiva de trabalho ou no contrato de trabalho, isto é, que haja justa causa relativa ao empregador. Trata-se de rescisão do contrato de trabalho por justa causa que resulta de um comportamento do empregador. É o empregador que dá causa a extinção do contrato de trabalho (…)” (Os Despedimentos à Luz da Nova Lei Geral do Trabalho, Literacia – Editora, Consultora e Formação, 2.ª edição, 2021, pág. 131).
Considerando o exposto, só haveria lugar ao despedimento com justa causa, se tivesse sido a entidade empregadora a provocar situações de despedimento tácito ou indirecto, porém, não foi o que sucedeu no caso sub judice.
Dos autos, constata-se que a entidade empregadora em momento algum criou qualquer situação que desse lugar ao despedimento indirecto, pelo contrário, a mesma foi bastante diligente e flexível no tratamento da questão.
Importa, ainda, referir que o Recorrente pôs termo à relação jurídico laboral, sem deixar que o processo disciplinar corresse os seus trâmites até o final.
Ora, era em sede do processo disciplinar que o Recorrente podia apresentar as provas (documento médico traduzido e autenticado) de que efectivamente estava a viver aquela situação e, consequentemente, falar de sua justiça sobre as pretensas hostilidades de que estava a ser alvo por parte da entidade empregadora.
Considerando que foi o Recorrente que rescindiu o contrato de trabalho, sem ter deixado que o processo disciplinar corresse os seus termos, com a agravante de nunca ter apresentado meios de prova para justificar a sua ausência do local de trabalho, entende este Tribunal que o Acórdão recorrido, ao decidir nos termos em que decidiu, não violou a protecção do direito da criança e do direito ao trabalho, como o Recorrente sustenta nas suas alegações.
Destarte, o Tribunal Constitucional conclui que o Acórdão Recorrido não violou qualquer princípio ou direitos estabelecidos na CRA.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, POR NÃO SE TER VERIFICADO QUAISQUER INCONSTITUCIONALIDADES NO ACÓRDÃO RECORRIDO.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 04 de Outubro de 2023.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva