ACÓRDÃO N.º 853/2023
PROCESSO N.º 1059-C/2023
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Sukulider – Casas de Câmbios, Limitada, melhor identificada nos autos, veio, nos termos da alínea a) do artigo 49.º e 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade da decisão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo nos autos do Processo n.º 2694/19 que anulou a decisão da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Benguela, julgando procedente o recurso interposto pelo recorrido, com fundamento na nulidade dos actos praticados, tendo alegado o seguinte:
1. A Recorrente tem a posse efectiva e é a legítima proprietária do imóvel sito na Rua Manuel Cerveira Pereira, n.º 18, R/C, Bairro Asfalto, Município de Benguela, Província de Benguela, inscrita na Matriz Predial da Repartição Fiscal de Benguela, sob o n.º 647 e descrita na Conservatória do Registo Predial de Benguela, sob o n.º 951, fls. 282V, livro n.º B-9, conforme Certidão Predial - Prédio 1938 - Benguela.
2. A aquisição do direito de propriedade observou todos os trâmites legais junto dos órgãos competentes, tal como fazem fé os documentos junto aos autos.
3. O respaldo constitucional do direito de propriedade privada está consagrado nos artigos 14.º e 37.º da CRA, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 18/21, de 16 de Agosto, Lei de Revisão Constitucional, segundo os quais, "O Estado respeita e protege a propriedade privada das pessoas singulares e colectivas..." nos termos da Constituição e da Lei e que "a todos é garantido o direito à propriedade privada...” nos termos da Constituição e da Lei.
4. O direito de propriedade privada é um direito fundamental e eleva-se, em termos de estrutura, a direitos, liberdades e garantias e, como tal, beneficia do regime aplicável aos direitos de liberdade (Miguel Nogueira de Brito, 2007, A justificação da Propriedade Privada, p. 846).
5. A Constituição protege a propriedade privada porque a encara como um instrumento necessário para a mediação de projectos de vida livremente traçados, responsavelmente cumpridos, e que não podem, nem devem ser interrompidos ou impossibilitados por opressivas ingerências externas e abrange as três componentes: i. o direito de aceder a propriedade; ii. o direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade; iii. e direito de transmissão da propriedade inter vivos ou mortis causa (Jorge Miranda, Rui Medeiros, 2010, Constituição Anotada, Tomo l, p. 1246).
6. O Acórdão do Tribunal Supremo, ora recorrido, declarou nula e de nenhum efeito a escritura pública de compra e venda do imóvel citado, celebrada a 12 de Março de 2014, a favor da Recorrente, por entender que, o Senhor Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior desencadeou o processo de compra e venda do imóvel em causa ao Estado angolano, no dia 17 de Novembro de 2005, e como prova, apresentou um DAR (Documento de Arrecadação de Receitas).
7. Ficou claramente demonstrado que, o Senhor Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior, nunca adquiriu qualquer direito real sobre o citado imóvel, não efectuou qualquer registo de aquisição de algum direito.
8. Nesta vertente, tratando-se de um prédio urbano, seria impensável qualquer Tribunal deste Estado democrático e de direito, reconhecer um pretenso direito ao Senhor Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior, quando inicialmente foi inquilino do Estado e ter feito apenas um único pagamento de renda em 1997, abandonou o imóvel, que veio a ser ocupado há mais de 15 anos pela Senhora Fernanda Marlene Tchapenga e, hoje, pela Recorrente, com o consentimento do legítimo proprietário (Estado Angolano).
9. O Acórdão recorrido assume irregularidades que devem ser declaradas inconstitucionais por esta Suprema Corte, ao reconhecer um contrato promessa de compra e venda a favor do Senhor Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior, que não consta dos autos e que nunca chegou a ser celebrado.
10. O Estado Angolano confiscou o imóvel à Sociedade Plantações do Alto Cubal em 1981, através do Despacho Conjunto da Secretaria de Estado da Habitação e Ministério da Justiça, publicado no Diário da República I.ª Série n.º 37, tendo a Recorrente adquirido o imóvel ao Estado Angolano, cumprido com os pressupostos legais, culminando com a outorga da Escritura de Compra e Venda e o respectivo Registo Predial, conforme determinam os artigos 875.º do Código Civil, artigos 89.º e 91.º, alínea a) do Código do Notariado e 14.º do Código do Registo Predial.
11. Aliás, em sede deste Augusto Tribunal (vide Acórdão n.º 334/2013), julgou o Processo n.º 371/2013-B, dissipou todas as dúvidas quanto ao reconhecimento do direito de propriedade sobre os prédios urbanos adquiridos ao Estado Angolano.
12. Quanto aos factos considerados provados pelo Acórdão recorrido, há que sublinhar várias inverdades, talvez com o propósito de beneficiar o Senhor Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior, nada prova que o mesmo pagou o preço do imóvel, porque o documento de fls. 42 não é Termo de Quitação, mas sim um Documento de Arrecadação de Receitas (DAR), sem especificar a sua finalidade, muito menos o propósito, documento que tem validade para efeitos fiscais e não legitima a aquisição do direito de propriedade.
13. O Senhor Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior não juntou qualquer Termo de Quitação do imóvel, conforme o Acórdão recorrido dá como provado, se o tivesse, não alotaria a Administração Municipal de Benguela, a concessão por arrendamento do terreno onde está construído o imóvel.
14. Verifica-se, portanto, que o Acórdão deu como provado que a Recorrente celebrou uma escritura pública de compra e venda do imóvel identificado e efectuou o registo, ao passo que deu como provado que o Senhor Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior celebrou um contrato de arrendamento no longínquo ano de 1996 e deixou de pagar rendas há mais de 20 anos, mas entende declarar nula a aquisição feita pela Recorrente, sem qualquer fundamento jurídico-legal.
15. Assente na jurisprudência da Câmara do Civil e Administrativo do Tribunal Supremo, no processo n.º 705/2003, determina o seguinte: "quando a contra-parte apresenta documentos de força probatória ao Termo de Quitação, a decisão deve favorecer os documentos de valor superior...”
16. Não estamos na presença de dois direitos de propriedade, mas sim de um direito de propriedade devidamente registado na conservatória competente e de um contrato de arrendamento caducado e sem qualquer validade jurídica.
17. O direito de propriedade violado pelo Acórdão recorrido foi adquirido por contrato entre a Recorrente e o Estado Angolano, em respeito aos preceitos dos artigos 1305.º, 1316.º e 1317.º, todos do Código Civil, por isso, só ao Recorrente lhe assiste o "jus utendi, jus fruendi e jus abutendi'
18. É precisamente pelo cumprimento dos formalismos legais, que a Recorrente é a legítima proprietária do prédio urbano em questão, aliás, a questão não é nova, visto que a jurisprudência no Acórdão n.º 1578/10 da Câmara do Civil e Administrativo do Tribunal Supremo esgrimiu qualquer dúvida resultante da validade jurídica na compra de bens imóveis. (Vide Acórdão n.º 334/2013).
19. Entretanto, a doutrina é unânime na medida em que reconhece "o direito de propriedade como o mais importante, o direito real pleno", cfr. Manual de Direitos Reais de Angola, Lições de Direitos Reais e Legislação Fundiária Angolana, pp. 125-126, da autoria de Joaquim Dias Marques de Oliveira, em colaboração com Evaristo Solano e Filipe Adolfo.
20. Na esteira da anulação do Acórdão recorrido, por violar o direito de propriedade do corrente, chamamos à colação a gravidade do mesmo anular o registo predial do imóvel em nome da Recorrente, por sinal um acto que torna público um direito real absoluto.
21. Ora, as legislações civis e notariais em vigor, impõem a observância de requisitos muito rígidos para declaração de nulidade de documentos emitidos por órgãos da Administração Pública; infelizmente o douto Acórdão traz fundamentos inadmissíveis de uma Corte Suprema.
22. Veja-se que nos termos do artigo 83.º do Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47611 de 28 de Março de 1967, admite apenas a nulidade do registo predial nos seguintes casos: "a) Quando for falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos; b) Quando tiver sido lavrado com base em títulos insuficientes para prova legal do facto registado; c) Quando enfermar, de omissões ou inexactidões…; d) Quando tiver sido assinado por pessoa sem competência funcional, salvo o disposto no n.º 2 do artigo 369.º do Código Civil; e) Quando tiver sido lavrado em conservatória incompetente".
23. Vislumbra-se, ainda, do artigo 84.º do Código do Registo Predial que “a nulidade do registo não afecta os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa-fé, que tiverem registados a data em que a acção de declaração de nulidade foi registada”.
24. É facto assente na doutrina, que o registo "predial deve ser um espelho da titularidade dos direitos reais. Contudo, o chamado princípio do espelho é hostil a direitos que não estejam inscritos no registo", Cfr. Maria Clara Sottomayor, in "Tese de doutoramento sobre a Invalidade e Registo - A Proteção do Terceiro Adquirente de Boa Fé", pp. 158-162, Almedina.
25. A Recorrente considera que o citado acórdão, também, violou o princípio da legalidade previsto no artigo 6.º da CRA, que visa impor aos poderes públicos (tribunais), o dever de agir em conformidade com a Constituição e com a lei, isto é, respeitando e fazendo respeitar as leis.
26. Nos termos da legislação processual civil, o Juiz tem o dever de aplicar o ordenamento jurídico, na marcha e termos do processo, tendo em conta as conveniências do caso concreto. Logo, ao desempenhar a função jurisdicional, o Juiz deve observar a aplicação do princípio da legalidade, nos termos dos artigos 266.º, 138.º e 659.º n.º 2 do CPC (Vide Acórdão n.º 759-C/2019).
27. O Tribunal ad quem, conheceu infundadamente e não cuidou de decidir nos termos da lei sobre a escritura pública de compra e venda de um imóvel e consequente registo que prevalece sobre um contrato de arrendamento caducado.
28. O Acórdão recorrido nem sequer teve o cuidado de aferir que a compra do imóvel pela Recorrente observou o que determinam as Leis n.º 19/91, de 25 de Maio - Lei sobre a Venda do Património Habitacional do Estado, Lei n.º 9/03, de 18 de Abril - que altera a Lei de Venda sobre o Património Habitacional do Estado e o Despacho Presidencial n.º 17/91, de 07 de Maio de 1991, vigentes a data dos factos.
29. O Tribunal ad quem, ao reconhecer a concessão por arrendamento do terreno que o Senhor Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior junta para se intitular proprietário de um prédio urbano, em contramão com a Lei n.º 9/04 de 9 de Novembro - Lei de Terras e o Decreto n.º 58/07, de 13 de Julho - Regulamento de Concessão de Terrenos, põe em causa o Princípio da Legalidade.
30. O Tribunal ad quem preferiu olhar para a qualidade do Senhor Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior que, por ser agente diplomático com a categoria de Ministro Conselheiro, vinculado ao Ministério das Relações Exteriores que, com um contrato de arrendamento caducado há mais de 20 anos, sem actualização das rendas, tem o direito de interpor uma ação contra a Recorrente que legalmente comprou e registou um imóvel pertencente ao Estado angolano.
31. De tudo quanto aflorado, depreende-se com toda a certeza e segurança jurídica, que o Acórdão recorrido viola direitos e princípios fundamentais da Recorrente, consignados na Constituição da República de Angola, nos artigos 14.º, 37.º e 6.º da CRA, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 18/21, de 16 de Agosto - Lei de Revisão Constitucional.
32. Ademais, para além da violação dos preceitos constitucionais, o Acórdão recorrido, ao reconhecer o direito de propriedade do imóvel ao Senhor Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior, com fundamentos no Documento de Arrecadação de Receitas e outros documentos da Administração Municipal, viola normas tão básicas e importantes sobre a aquisição do direito de propriedade, tipificadas nos artigos 220.º, 875.º, 1305.º, 1316.º e 1317.º do Código Civil.
33. O Acórdão recorrido, ao anular o registo predial do imóvel inscrito na Conservatória do Registo Predial de Benguela, à favor da Recorrente, viola nitidamente os preceitos dos artigos 83.º e 84.º do Código do Registo Predial.
Termina as suas alegações, requerendo que a decisão judicial seja declarada inconstitucional e revogado o Acórdão recorrido, em respeito ao direito de propriedade privada e ao princípio da legalidade.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é parte no Processo n.º 2694/19, que correu trâmites na Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, sobre o qual recaiu a decisão que anulou a sentença da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Benguela e tem interesse directo em que a causa seja apreciada pelo Tribunal Constitucional, decorrendo desta, a legitimidade para a interposição do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC e do n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto, verificar se a decisão proferida pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo nos autos do Processo n.º 2694/19, ofendeu ou não princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola (CRA).
V. APRECIANDO
A Recorrente veio a esta Corte Constitucional, por não se conformar com a decisão do Tribunal ad quem, sendo sua convicção de que, aquela violou direitos, liberdades e garantias constitucionais, apelando, por isso, a este Tribunal para a reposição da legalidade.
Alega a Recorrente que tem a posse efectiva e é a legítima proprietária do imóvel sito na Rua Manuel Cerveira Pereira, n.º 18, R/C, Bairro Asfalto, na província de Benguela, inscrito na matriz predial da Repartição Fiscal de Benguela, sob o n.º 647 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Benguela, sob o n.º 951, fls. 282v, livro n.º B-9, conforme Certidão do Registo Predial junta aos autos, acrescendo, ainda, que a aquisição do direito de propriedade obedeceu à tramitação legal exigida.
A tutela constitucional do direito à propriedade privada, encontra acolhimento intra murus nos artigos 14.º e 37.º n.º 1, ambos da Constituição da República de Angola.
En passant, a doutrina defendida por Mota Pinto e Menezes Cordeiro referem que as características do efeito absoluto, da inerência, da sequela e da prevalência dos direitos reais defendidas na doutrina permitem-nos descortinar a robustez e a solidificação dos princípios constitucionais da legalidade e da propriedade privada, como um princípio fundamental e que deve assegurar tranquilidade e oponibilidade deste direito, contra todos os que na orla do mesmo tendem a beliscá-lo ou a pôr em causa o uso e fruição do legítimo proprietário, bem como a liberdade de este os transmitir (Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição Actualizada, Coimbra Editora e Tratado de Direito Civil, XIII, Direitos Reais, 1.ª Parte, Almedina).
Aliás, como já referido por esta Corte Constitucional ao afirmar que “o direito de propriedade, enquanto direito fundamental, análogo aos demais direitos, liberdades e garantias, possui, pois, uma componente negativa e de defesa que se concretiza na prorrogativa de o seu Titular não ser privado da propriedade, nem do seu uso, faculdade que vem reflectida nos artigos 1305.º e 1308.º do CC”, Acórdão n.º 414/2016.
Vejamos pois,
Sendo inicialmente propriedade do Estado, sobre o imóvel em causa foram constituídas três relações contratuais, em três situações distintas que, constituem de per si, circunstâncias indispensáveis para a análise das questões apresentadas pela Recorrente, que subjazem na decisão revidenda, indispensáveis para a apreciação da constitucionalidade da decisão, isto é, os contratos de arrendamento, nomeadamente o primeiro celebrado com Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior no ano de 1996, o segundo celebrado com Fernanda Tchapenga no ano de 2000 e o terceiro celebrado com a Recorrente no ano de 2014.
Não sendo este Tribunal Constitucional uma terceira instância para reavaliar o mérito da questão, não pode ignorar os aspectos ali referidos, pois, perante aqueles factos, tão evidentes, e ignorados pela decisão, teria aquele Tribunal Superior chegado a conclusão diferente da que está aposta na decisão revidenda.
Por isso, importante será no todo perceber se a decisão concretizadora do direito teve ou não em conta aqueles elementos e em que medida, o posicionamento do Tribunal ad quem, põe em causa, direitos, liberdades e garantias da Recorrente, porquanto ao ter ignorado, aquela pode ter prejudicado a justeza da certeza e da segurança jurídica do direito da aqui Recorrente.
Pois bem,
A Recorrente figura como ré no Processo n.º 859/14 (Acção de reivindicação de propriedade) movida por Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior, que correu trâmites na Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Benguela, requerendo o autor a restituição do prédio urbano em causa, a nulidade da escritura de compra e venda do imóvel e ainda o pagamento de uma indemnização tendo lhe sido negado provimento.
Inconformado, recorreu ao Tribunal ad quem, que declarou nula a decisão do Tribunal a quo e sem nenhum efeito a escritura pública de compra e venda e o registo predial do aqui Recorrente.
Ora,
A venda do património habitacional do Estado angolano é regulada pela Lei n.º 19/91, de 25 de Maio, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 9/03, de 18 de Abril, dispondo o n.º 3 do artigo 5.º da referida lei que “O Estado, na alienação do seu património imobiliário, dará preferência aos seus inquilinos”.
É jurisprudência firmada neste Tribunal que “O exercício do direito de preferência consiste no poder que tem o titular do direito de sobrepor o seu direito ao de outrem. A preferência pressupõe a concorrência de direitos opostos sobre a mesma coisa, sendo o do preferente superior, este direito emerge de duas fontes, uma convencional e outra legal”. Acórdão n.º 483/2018.
Dispõe o artigo 414.º do CC que o pacto de preferência é a “convenção pela qual alguém assume a obrigação de dar preferência a outrem na venda de determinada coisa”. Sendo que poderá gozar de eficácia real se tiverem sido observados os requisitos de forma e publicidade previstos no artigo 413.º CC, ou seja, o registo.
Segundo J. Oliveira Ascensão “Os direitos de preferência são aqueles direitos que atribuem a um sujeito a prioridade na aquisição, em caso de alienação ou oneração realizada pelo titular actual de um direito real” (Direito Civil: Reais, 5.ª Edição, Coimbra Editora, 1993. p. 571).
Compulsados os autos a fls. 33, verifica-se que em Julho de 1996, o Estado angolano celebrou um contrato de arrendamento com Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior, tendo este efectuado o pagamento de um mês de renda e a legalização do fornecimento de água e energia elétrica, cfr. fls. 35, 37 e 38, sem mais referências.
Em Setembro de 2000, o Estado celebrou um novo contrato de arrendamento com Fernanda Tchapenga, que ocupou o imóvel por 14 anos, tendo rescindido com o Estado somente no ano de 2014, altura em que a aqui Recorrente celebrou um novo contrato de arrendamento e tendo em seguida comprado o imóvel em causa e legalizado em seu nome.
Pergunta-se, pois, porque razão, a decisão do Tribunal ad quem não terá verificado que em 2006, Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior já não habitava o imóvel e mais, que o imóvel, neste período, estava arrendado e em uso e fruição efectiva de Fernanda Tchapenga, aliás, cidadã que o habitou, durante 14 anos, isto é, de 2000-2014.
Perante os factos aqui expostos questiona-se, pois, se a decisão do Venerando Tribunal ad quem deveria ou não analisar a legalidade do processo, aliás, com elementos abundantes na decisão do Tribunal a quo.
Dito de outro modo, a decisão colocada em crise, nem se dignou atender os fundamentos de direito ali expostos que legitimam a desatenção ao pedido formulado por parte de Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior.
Resulta ainda, dos autos, que quando Manuel Domingos da Silva Lemos Júnior decide comprar o imóvel já o mesmo estava fora da sua esfera jurídica, pelo facto deste, não mais habitar no mesmo, e o ter deixado em situação de abandono, pois, só assim se justifica o arrendamento deste por catorze (14) anos, sem que o mesmo alguma vez tivesse manifestado oposição.
Por outro lado, da leitura dos elementos que constituem nos autos fls. 128, 130, 131, 132, 133, 138, 139, 140, 142, 143, 146, 151 e 152 resulta prova suficiente e inequívoca de que, à data dos factos, quem efectivamente era arrendatário/inquilino do Estado e tinha o direito de uso do imóvel e consequentemente, direito de preferência para compra do mesmo era a Recorrente que, não só o comprou como seguiu todo o formalismo legal para o registo feito a seu favor.
Deste modo, entende este Tribunal que improcede, a Decisão do Tribunal ad quem, no quesito relativo a declaração de nulidade da escritura pública de compra e venda do imóvel, por violação do princípio da legalidade e do direito a propriedade privada previstos nos artigos 6.º e 14.º, ambos da CRA.
Alega, mais adiante, a Recorrente que as legislações civis e notariais em vigor, impõem a observância de requisitos muito rígidos para declaração de nulidade de documentos emitidos por órgãos da Administração Pública.
Segundo a Recorrente, o Acórdão recorrido ofendeu o princípio da legalidade previsto no artigo 6.º da CRA, que visa impor aos poderes públicos (tribunais), o dever de agir em conformidade com a Constituição e com a lei, isto é, respeitando e fazendo respeitar as leis.
Pois bem, a decisão posta em crise declarou nulo e sem nenhum efeito, o registo predial da aquisição do direito de propriedade, conforme fls. 402 dos autos.
Coloca-se, pois, a questão de saber se, efectivamente, o proprietário, o Estado, teria efectuado a venda do imóvel para dois sujeitos e se assim é que validade terá o registo?
Vejamos,
Na distinção que é feita entre a aquisição originária e derivada, evidencia para a presente análise, como assevera Burity da Silva, o facto de nesta última, a regra segundo a qual “nemo plus juris in alium transfer potest quam ipse habet” comportar algumas excepções. Continua, o autor que, “em certas hipóteses, o adquirente, não obstante a aquisição ser derivada, pode obter um direito que não pertencia ao transmitente, ou é mais amplo do que aqueles que pertenciam a este” (Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª Edição revista e actualizada, 2.ª reimpressão, Norprint, 2018, p. 419), tal protecção, se assegura observadas as regras do instituto do registo.
Foi, com o intuito da defesa do terceiro adquirente contra as consequências da regra supra, que se instituiu o registo das aquisições desses bens, a cargo das conservatórias do registo predial (imóveis). Ibidem.
Assevera, ainda, Burity da Silva, exemplificando que, “se A vendeu um prédio ou automóvel a B, e depois a C, B e C, são terceiros entre si e prevalece a venda a C, se foi por ele primeiramente registada” (Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª Edição revista e actualizada, 2.ª reimpressão, Norprint, 2018, p. 421).
O registo predial é o acto jurídico que visa promover a publicidade da situação jurídica dos adquirentes e, garantir maior segurança do comércio jurídico imobiliário, tendo como seus efeitos imediatos a presunção da existência de um direito pertencente ao titular inscrito, nos precisos termos em que o define e a prevalência do mesmo em relação a terceiros a partir da data do registo.
Parafraseando o mesmo autor, defende, em notas de rodapé, que “Esta garantia – a única conferida pelo registo- deve considerar-se plena, pelo que deve funcionar, sejam ambas aquisições onerosas ou gratuitas e sem que se deva admitir prova tendente a demostrar que o terceiro conhecia o acto anterior não inscrito, isto é, sem que revele a boa ou ma fé subjectiva do terceiro”.
Mais assegura, o autor, que “a segurança que se pretende garantir ao comércio jurídico seria fortemente afectada, se o terceiro, adquirente de quem tem um prédio registado a seu favor, ficasse exposto às delongas, às incertezas, aos gastos eventualmente a manobras inerentes a processos judiciais tendentes a provar que ele conhecia uma alienação anterior; acresce que só a inoponibilidade de actos não registados a terceiros, mesmo que de má fé, motivará os interessados a promover o registo, como é de interesse público” (Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª Edição revista e actualizada, 2.ª reimpressão, Norprint, 2018, p. 422).
No ordenamento jurídico angolano, o registo predial é regulado pelo Código de Registo Predial (CRP) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47.611, de 28 de Março de 1967.
O artigo 83.º do CRP dispõe de forma taxativa um numerus clausus das causas de nulidade de um registo, a saber a) Quando for falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos; b) Quando tiver sido lavrado com base em títulos insuficientes para prova legal do facto registado; c) Quando enfermar de omissões ou inexatidões da espécie prevista na segunda parte do n.º 1 do artigo antecedente; d) Quando tiver sido assinado por pessoa sem competência funcional, salvo o disposto no n.º 2 do artigo 369.º do Código Civil; e) Quando tiver sido lavrado em Conservatória incompetente; f) Quando tiver sido lavrado com violação do disposto no n.º 2 do artigo 13.º ou no artigo 17.º.
Ora, não se verificando as excepções previstas no n.º 2 do artigo 13.º ou do artigo 17.º, supra referidos, a decisão não cabia de forma sustentada, ou melhor, como não ficou demonstrado na decisão revidenda, nenhuma escusa para que o Tribunal ad quem tivesse declarado nulo o registo, considerando o facto da enumeração do artigo 83.º ser taxativa e não abrir espaço de manobra para o decisor, o aplicador da lei, perspetivar sequer qualquer outra situação, que não sejam aquelas descritas pelo legislador.
E mais, dispõe, ainda o artigo 85.º do mesmo diploma que “A nulidade do registo não afecta os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, que estiverem registados à data em que a acção de declaração de nulidade foi registada”, ou seja, não poderia, o Tribunal Supremo decidir nos termos em que decidiu, pelo facto de aquando da interposição da acção por parte de Manuel Júnior, já estava o imóvel registado pela Recorrente conforme anteriormente mencionado.
A jurisprudência firmada neste Tribunal, doutro modo não deixa nenhuma dúvida ao afirmar que “Assim, entre as questões sobre as quais o Venerando Tribunal Supremo não se pronunciou, revela, desde logo, a relacionada com a protecção que resulta da designada aquisição tabular, prevista nos artigos 7.º do CRP e 291.º do CC. aquisição esta que, como se sabe, tem que ver com o efeito atributivo do registo predial e da qual decorre a protecção de um terceiro que, com fundamento na fé pública do registo (…)” Acórdão n.º 414/2016.
Deste modo, improcede a decisão do Tribunal ad quem em declarar nulo o registo a favor da Recorrente, porquanto não ficaram demonstradas irregularidades relativas à aquisição bem como ao processo de registo do imóvel, acrescido do princípio da força da fé pública do registo, aliás o único feito sobre o imóvel e a favor da Recorrente, nos termos do que acima ficou expresso.
Neste sentido, entende este Tribunal Constitucional que o Acórdão revidendo violou o princípio da legalidade e o direito e limites da propriedade privada, previstos nos artigos 6.º, 14.º e 37.º, todos da Constituição da República de Angola, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 18/21, de 16 de Agosto – Lei de Revisão Constitucional.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E DECLARAR A DECISÃO DO TRIBUNAL SUPREMO INCONSTITUCIONAL, POR VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E O DIREITO E LIMITES DA PROPRIEDADE PRIVADA.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 14 de Novembro de 2023.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães (Relator)
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor