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ACÓRDÃO N.º 1016/2025

 

PROCESSO N.º 1299-C/2025

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (Habeas Corpus)

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 

I.  RELATÓRIO
Rui Joaquim da Silva, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por não se conformar com o douto Despacho proferido a 02 de Abril de 2025, pelo Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Benguela, no âmbito do Processo n.º 30/2025, que indeferiu a providência extraordinária de habeas corpus, por falta de fundamentos.
O Recorrente juntou as suas alegações nesta Corte de justiça constitucional, conforme constam de fls. 74-76, resumindo-se, com interesse para decisão, o seguinte:
1. O Despacho recorrido, ao improceder o recurso da providência extraordinária de habeas corpus, com o fundamento de que foi impetrada intempestivamente, viola o princípio da legalidade, porquanto, o tempo não constitui obstáculo para se socorrer a um dos fundamentos previstos no n.º 4 do artigo 290.º do CPPA.
2. Pois, nos termos da alínea b) do artigo supra indicado, transcorrido o prazo para a entrega do detido ao Magistrado competente, é fundamento suficiente para legitimar o arguido a requerer tal providência.
3. Por outra, no normativo legal em causa, não se vislumbra expressamente qualquer prazo para requerer o habeas corpus, basta que se verifique a violação de um dos pressupostos nele previstos, enquanto permanecer a prisão ou detenção ilegal, que se configure numa ofensa ao direito fundamental de liberdade do arguido, nos termos dos artigos 36.º e 68.º, da CRA.
4. O Recorrente foi detido a 10 de Janeiro de 2025 e presente ao Juiz de Garantias a 14 de Janeiro, ou seja, foi entregue ao Magistrado competente transcorridas 48 horas, sensivelmente 4 dias após a detenção, configurando o abuso de poder, por violação do princípio da legalidade.
5. O Despacho recorrido viola os princípios da legalidade, da igualdade de tratamento, da equidade, da presunção de inocência, consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 6.º n.º 2, 23.º, 36.º n.º 2, 56.º n.º 2, 57, º n.º 1, 64.º n.º 1, 67.º n.º 2 e 68.º, todos da CRA, considerando que a intempestividade invocada no Despacho, não é fundamento para indeferir o recurso de habeas corpus.
Termina pedindo que este Tribunal anule Despacho do Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Benguela, por violar as normas e princípios constitucionais acima referidos e, em consequência, que seja determinado o fim da prisão preventiva.
O Processo foi à vista do Ministério Público que, a fls. 79 -81v dos autos, pugnou pelo não provimento do recurso, por falta de fundamentos.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II.  COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e 53.º, ambos da Lei do Processo Constitucional (LPC), competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos.
Esta competência está igualmente prevista na alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC e do n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “(…) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”. 
O Recorrente é parte no processo de habeas corpus, cujo pedido foi indeferido pelo Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Benguela, dispondo, por essa razão, de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
IV.  OBJECTO
O presente recurso tem como objecto o Despacho do Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Benguela, no âmbito do Processo n.º 30/2025, pelo que emerge verificar se este ofendeu ou não princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola (CRA).
V.  APRECIANDO
O habeas corpus configura-se como uma das mais relevantes garantias constitucionais, destinada à protecção do direito fundamental à liberdade individual, sempre que este se encontre ameaçado ou restringido por acto ilegal ou abusivo da autoridade. Trata-se de um mecanismo processual de carácter excepcional e célere, vocacionado para situações em que os meios jurisdicionais comuns se revelem ineficazes para a pronta cessação da lesão. A sua essência está intimamente ligada à salvaguarda da dignidade da pessoa humana, que constitui um dos pilares estruturantes do Estado de Direito.
Assinalam com propriedade Manuel  Simas Santos e João Simas Santos que “trata-se, portanto, de um veículo excepcional de combate a violações, arbitrariamente grosseiras ou patologicamente extremas, do direito à liberdade física, sendo o respectivo acento tónico posto na ocorrência  de abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, na protecção do direito à liberdade, constituindo uma providência a decretar apenas nos casos de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave e em princípio grosseira e rapidamente verificáveis” (Direito Processual Penal de Angola, 2022, Rei dos Livros, p. 365).
No mesmo diapasão, o entendimento uniforme firmado por esta Jurisdição Constitucional – como se alcança, entre outros, dos Acórdãos n.ºs 623/20, 790/2020 e 922/2024, (disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao) – tem sustentado que a providência extraordinária de habeas corpus, prevista no artigo 68.º da CRA, constitui instrumento jurídico de aplicação imediata e com eficácia garantística para a protecção do direito a liberdade (direito de “ir e vir”), assumindo particular relevo axiológico no seio do Estado Democrático de Direito.
Tal garantia constitucional encontra reforço no artigo 6.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, o qual consagra que: “todo o indivíduo tem direito à liberdade e à segurança da sua pessoa. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, excepto por motivos e nas condições previamente fixadas por lei; em particular, ninguém pode ser preso ou detido arbitrariamente.” Trata-se, pois, de uma norma de protecção internacional dos direitos fundamentais, que vincula os Estados signatários à observância estrita dos parâmetros legais na imposição de qualquer restrição à liberdade individual.
Nessa linha interpretativa, tem-se reiterado que qualquer limitação ao direito à liberdade deve observar estritamente os preceitos constitucionais e legais, sendo admissível apenas quando prevista na Constituição e na lei e desde que preenchidos os requisitos da necessidade, adequação e proporcionalidade. Tal entendimento encontra respaldo no disposto no n.º 1 do artigo 57.º e no n.º 1 do artigo 64.º, ambos da Constituição da República de Angola (CRA).
A propósito, a providência extraordinária de habeas corpus possui fundamentos próprios e específicos, expressamente previstos nas alíneas do n.º 4 do artigo 290.º do Código de Processo Penal Angolano (CPPA). No contexto do presente caso, destaca-se, em particular, a alínea b), que prevê a possibilidade de impetração da medida quando se alegue excesso de prazo na apresentação do arguido detido ou preso preventivamente ao Magistrado competente, para os efeitos de validação ou não da detenção ou prisão.
Com efeito, o Recorrente foi indiciado pela suposta prática do crime de tráfico e outras atividades ilícitas, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 3/99, de 6 de Agosto. A sua privação de liberdade teve início no dia 10 de Janeiro de 2025, em decorrência de detenção efectuada pela autoridade policial. 
Posteriormente, o Ministério Público promoveu a manutenção da medida restritiva (fls. 11–14), tendo o arguido sido apresentado ao Juiz de Garantias no dia 14 do mesmo mês e ano, ocasião em que foi submetido ao primeiro interrogatório judicial. Nessa audiência, o Magistrado judicial validou a detenção e determinou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva (fls. 16–20).
Desta Decisão, o Recorrente impugnou para o Juiz Presidente do Tribunal da Comarca de Benguela que, de igual modo, manteve a medida aplicada (fls. 23 - 25). Notificado da mesma, uma vez mais inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Benguela que, mediante Despacho do Juiz Desembargador Presidente, pugnou igualmente pela manutenção da Decisão recorrida, indeferindo o recurso, por falta de fundamentos (fls. 50-54). 
Perante esta Corte Constitucional, o Recorrente impugna o Despacho proferido pelo Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Benguela, sustentando que a sua pretensão foi indeferida com fundamento na alegada intempestividade da impetração do habeas corpus, sem para tanto existir norma legal que estabeleça prazo específico para a interposição dessa providência. Razão pela qual, entende ter havido violação dos princípios constitucionais da legalidade, da igualdade de tratamento e da presunção de inocência.
Como evidenciam os autos, o Recorrente foi detido no dia 10 de Janeiro de 2025 e presente ao Juiz de Garantias no dia 14, do mesmo mês e ano, justamente 4 dias após a privação da sua liberdade, excedendo o prazo de 48 horas, previsto na alínea b) do n.º 4, do artigo 290, º, conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 169.º e n.º 1 do artigo 250.º, todos do CPPA.
Sucede, todavia, que o Recorrente apenas veio requerer a providência extraordinária no dia 14 de Fevereiro de 2025, conforme se verifica pelo termo de entrada lavrado na Secretaria do Tribunal da Comarca de Benguela (fls. 3), ou seja, cerca de um mês após o Despacho do Juiz de Garantias que confirmou e validou a medida de coacção de prisão preventiva anteriormente aplicada. Assim, a providência foi intentada em momento posterior à regularização da alegada ilegalidade, uma vez que o Juiz, ao apreciar a situação, entendeu estarem reunidos motivos suficientes para manter a prisão preventiva, tendo, por essa razão, deixado de considerar relevante qualquer prazo anterior.
Assim, embora inexista previsão legal que fixe prazo específico para a impetração do habeas corpus, conforme se depreende do n.º 1 do artigo 290.º do CPPA, tal providência possui natureza urgente e excepcional, devendo ser manejada de forma célere e imediata diante de situações de detenção ou prisão que se revelem actuais e efectivamente ilegais.
Reitera-se do exposto que a providência de habeas corpus rege-se pelos princípios da celeridade, da efectividade e da actualidade, o que implica que, além da verificação de uma situação de ilegalidade, esta deve ser simultaneamente efectiva e actual. No caso dos autos, constata-se que a alegada ilegalidade já havia sido sanada, uma vez que a prisão preventiva foi mantida por despacho fundamentado do Juiz de Garantias, afastando-se, assim, a actualidade da suposta violação.
Sobre esta temática, Paulo Pinto de Albuquerque defende não constituir fundamentos do habeas corpus “prisão preventiva ordenada ou confirmada em primeiro interrogatório judicial ocorrido mais de 48 horas depois da detenção (…)”. (Comentário do Código de Processo Penal - À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2011, 4.ª ed., Universidade Católica Editora, p. 637).
  
No mesmo sentido, Maia Costa enfatiza que “a entrega do mesmo ao poder judicial após o termo do prazo legal faz caducar o direito ao habeas corpus previsto neste artigo, pois ele destina-se exclusivamente a assegurar a apresentação do detido a um juiz. A apresentação tardia constituirá, em todo o caso, os responsáveis em responsabilidade disciplinar, ou eventualmente civil e criminal, se for caso disso” (Código do Processo Penal Comentado, 2022, 4ª ed. revista, Almedina, p.p. 853-854). No mais, vide Manuel Leal Henriques, Medidas de Segurança e “Habeas Corpus” Breves Notas. 2002, Áreas Editora, p.p. 134 – 136.
Esta Corte de Justiça Constitucional tem reafirmado entendimento análogo, conforme se aponta, entre outros, no Acórdão n.º 815/23, de 10 de abril (acessível em www.tribunalconstitucional.ao), no qual se firmou que não se verifica o pressuposto da actualidade da ilegalidade exigida pelo n.º 1 do artigo 290.º, do Código de Processo Penal Angolano para a admissibilidade da providência de habeas corpus. Acentua-se que apenas a prisão efectiva e actual pode justificar a utilização desse meio processual, devendo a eventual ilegalidade ser aferida com base na situação presente e concreta da restrição de liberdade.
Destarte, em consonância com essa orientação jurisprudencial, destaca-se vasta jurisprudência comparada, nomeadamente a portuguesa, como a exemplificada no processo n.º 25/10.8 MAVRS-B.S1 de 09 de Fevereiro de 2011 (cfr. www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/8e4bdb44a233d6e8802578960037292d do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Nesse aresto e, reafirma-se que, à luz do princípio da actualidade, a ilegalidade da prisão deve ser contemporânea ao momento da apreciação do pedido de habeas corpus, sendo esse o critério temporal determinante para a sua admissibilidade.
Cumpre, pois, esclarecer, que ao considerar intempestiva a impetração do habeas corpus, a Decisão ora impugnada não pretendeu afirmar a existência de um prazo legal fixado no ordenamento jurídico para o seu ajuizamento. O que se evidenciou, em verdade, foi a ausência da actualidade da suposta ilegalidade da detenção ou prisão, requisito essencial à admissibilidade da providência, como bem defendem os autores acima referenciados. 
Acresce que, conforme se extrai das diligências promovidas pelo Ministério Público no âmbito do presente processo – conforme despacho constante a fls. 77 dos autos – o processo-crime originário, registado inicialmente sob o n.º 121725-BGA, tramita actualmente na 2.ª Secção do Tribunal da Comarca de Benguela sob o n.º 221725. 
Neste processo, foi deduzida acusação aos 13 de Março de 2025, estando, inclusive, designada audiência de julgamento para o dia 4 de Setembro de 2025. Assim, verifica-se que a prisão preventiva do Recorrente permanece dentro dos prazos legalmente estabelecidos no n.º 1 do artigo 283.º do CPPA, não se evidenciando qualquer excesso de prazo ou irregularidade processual.
Desta forma, no caso concreto, a medida de prisão preventiva aplicada ao Recorrente não satisfaz o requisito da actualidade da ilegalidade, condição imprescindível para o deferimento do habeas corpus, conforme exige o artigo 290.º do CPPA.
À luz do exposto, esta Corte Constitucional conclui que não se configura qualquer violação aos direitos e princípios constitucionais invocados, nomeadamente os princípios da legalidade, da igualdade de tratamento e da presunção de inocência.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 25 de Agosto de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 
Amélia Augusto Varela 
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo
Gilberto de Faria Magalhães
Lucas Manuel João Quilundo 
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva (Relatora) 
Vitorino Domingos Hossi