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ACÓRDÃO N.º 1018/2025

 

 

PROCESSO N.º 1279-C/2025

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 

I. RELATÓRIO
Abymaiel Romeu José Gambôa, devidamente identificado nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, em decorrência da prolação do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 14770/2014. 
Para o efeito, trouxe à colação, em síntese, os pontos abaixo delineados: 
1. O Recorrente foi pronunciado e, posteriormente, condenado em 1.ª instância, pela prática do crime de violação de menor de 12 anos, p.p. nos termos do artigo 394.º do Código Penal (revogado).
2. A Decisão proferida por aquele Tribunal, fixou a condenação do Recorrente na pena de 9 anos de prisão, acrescidos do montante indemnizatório de Kz 300 000,00 (trezentos mil kwanzas) a favor da vítima.
3. O Ministério Público interpôs recurso da Decisão para o Tribunal Supremo que, já na pendência da sua instância, salientou que o Aresto do Tribunal a quo foi omisso quanto ao dever de fundamentação de facto e de direito, lapso a que denominou erro in procedendo, resultando em declaração de nulidade.
 
4. Andou bem o Tribunal Supremo ao declarar nulo o Acórdão recorrido, embora tenha descarrilado ao assumir o dever de suprir a nulidade declarada, extrapolando os limites legais.
5. O vício da falta de fundamentação tem natureza material e obsta a que o juiz da instância de recurso realize novo julgamento por não estar dotado de competência para o efeito.
6. O Tribunal Supremo efectuou um novo julgamento que resultou em nova narração dos factos, nova fundamentação legal e nova determinação da medida da pena, operando como se de Tribunal de primeira instância se tratasse. 
7. O Tribunal recorrido violou o princípio da competência material e funcional dos Tribunais e do juiz natural, porquanto é a lei que determina que o julgamento deve ser feito pelo Tribunal a que a lei penal anterior haja conferido competência. 
8. A Sentença recorrida fez, igualmente, total descaso à inexistência do exame do corpo de delito que, por sua relevância probatória, se configurava como o único meio de prova idóneo atento à natureza do crime.
Termina requerendo que seja dado provimento ao recurso, pelo facto de o Aresto recorrido ter ofendido as garantias fundamentais conferidas pelo texto constitucional ao Recorrente, devendo ser declarado inconstitucional por violar os princípios da legalidade, da presunção de inocência, in dubio pro reo, proibição da reformatio in pejus e os direitos à julgamento justo e conforme e à ampla defesa.
O Processo foi à vista do Ministério Público, cuja promoção se transcreve o seguinte excerto: “pelo exposto, somos pela improcedência do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por não se comprovar a violação de princípios constitucionais, direitos, liberdades e garantias fundamentais.”
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. COMPETÊNCIA
Nos termos da alínea a) do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), combinados com a alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), incumbe ao Tribunal Constitucional conhecer do mérito do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. 
Importa realçar que, conforme imperativo legal disposto no § único do artigo 49.º, foi observado o requisito do esgotamento prévio da cadeia de recursos ordinários.
III. LEGITIMIDADE 
O Recorrente dispõe de legitimidade para interpor o presente REI, atento ao facto de ter litigado em sede do Processo n.º 14770/2014, em que decaiu, encontrando, por isso, amparo legal na alínea a) do artigo 50.º da LPC.
IV. OBJECTO
O fulcro do presente REI consiste em aferir se o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 14770/2014, que agravou a Decisão condenatória do Recorrente proferida pelo Tribunal a quo, padece ou não da violação dos direitos, liberdades e garantias fundamentais consagradas na Constituição. 
V. APRECIANDO
Com arrimo nas alegações do Recorrente, resulta o pedido de declaração de inconstitucionalidade do Acórdão recorrido por manifesta dissonância ao conteúdo irradiado na Magna Carta, com fulcro na invocada ofensa aos princípios da legalidade, da presunção de inocência, do in dubio pro reo, da proibição da reformatio in pejus e a violação dos direitos a julgamento justo e conforme e à ampla defesa.
Palmilhados os autos, cabe examinar se as inquirições apontadas merecem ou não o amparo desta Corte Constitucional. 
1. Da ofensa ao princípio da legalidade
Defende o Recorrente que o Tribunal recorrido ao asseverar que o Acórdão do Tribunal a quo padece de vícios substanciais de fundamentação – os quais sanou a posteriori – incorreu na violação do princípio do juiz natural e, concomitantemente, do primado constitucional da legalidade, por não estar dotado de legitimidade para substituir o julgador primitivo da causa, com vista à realização de um novo julgamento das matérias de facto e suprir os vícios de que enferma a Decisão recorrida que, no caso em concreto, assomam para a nulidade.    
Vale para o referido escopo comensurar se o Tribunal Supremo dispunha de legitimidade para conhecer das matérias de facto e descortinar se ao declarar a nulidade de um Acórdão, possui arrimo legal para sanar tais vícios decorrentes dos autos, ou se carecia de ordenar a remessa destes ao Tribunal a quo. 
Preliminarmente, importa sublinhar que vigorava à época dos factos e dos respectivos julgamentos, os revogados Códigos Penal (doravante CP) e de Processo Penal (doravante CPP), no âmbito dos quais se cingem as subsunções legais adiante consignadas.
  
O Recorrente foi condenado em primeira instância em 2013, conforme fls. 142 -146. Do aludido veredicto judicial, o Ministério Público (cfr. fl. 149) interpôs recurso para o Tribunal Supremo, por imperatividade legal, tendo a instância recursória exarado a competente Decisão em 2017, no decurso da respectiva tramitação.
Vale ressaltar que, no decurso do lapso temporal entre a proferição da Decisão da primeira instância e a que foi prolatada pelo Tribunal recorrido, ocorreu a revogação da Lei n.º 18/88, de 31 de Dezembro – Lei do Sistema Unificado de Justiça – por força da publicação da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, que estabelece os Princípios e Regras da Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum. Passou, igualmente, a vigorar no ordenamento jurídico pátrio, concretamente a partir de 2011, a Lei n.º 13/11, de 18 de Março – Lei Orgânica do Tribunal Supremo.
Com efeito, no decurso temporal exposto não se vislumbra apenas a transição de instrumentos normativos no tempo, com vista a melhor adaptação do respectivo teor às reformas que se impõem ao Poder Judicial, como corolário do realismo jurídico hodierno. Na verdade, decorre também do contexto das referidas mutações legislativas, em igual medida, como já referido acima, a reflexão em torno da questão da evolução da competência cognitiva do Tribunal Supremo como instância de recurso – na perspectiva do caso em análise – para determinar, à luz do previsto nas normas vigentes à época, a que Tribunal competia o dever de conhecer das matérias de facto e sanar as nulidades suscitadas. 
A previsão legal originária do Código de Processo Penal, subjacente à questão da competência cognitiva do Tribunal Supremo vinha escalpelizada no artigo 666.º, subjacente à epígrafe “Poderes do Supremo Tribunal de Justiça”, cujo teor dispunha que “o Supremo Tribunal de Justiça conhecerá da matéria de facto e de direito, nas causas que julgue em única instância e ainda no caso do § 3.º do artigo 663.º.  Em todos os outros casos, conhecerá apenas da matéria de direito.” 
Com teor sincrônico, a Lei Orgânica do Tribunal Supremo, mormente no artigo 5.º, dispunha que sempre que actuar como instância de recurso, o espectro cognitivo do Tribunal Supremo estará circunscrito às matérias de direito. O que ora se deixa delineado, concorre com o postulado no artigo 666.º do CPP, na sua formulação derradeira, determinando que “em todos os outros casos, conhecerá apenas da matéria de direito” e no artigo 473.º, dispondo em, in fine, “sendo restrito à matéria de direito o recurso a este último tribunal.” 
Entretanto, coincidentemente, porém, com sentido normativo diverso, a Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro – Lei sobre o Ajustamento das Leis Processuais Penal e Civil – promoveu e efectuou um ajuste na parte derradeira da norma sobredita (artigo 666.º do CPP). O aditamento em alusão foi introduzido pelo n.º 3 do artigo 51.º, que impõe a devida colação ao artigo 47.º, cujo âmago, dada a imprescindibilidade que conferem à apreciação, passam a ser citados ipsi verbis:
“Artigo 51.º (Recurso ordinário e recursos extraordinários): 3.  – Aplica-se ao julgamento do recurso penal ordinário, o disposto na última parte do artigo 47.º.”
“Artigo 47.º (Competência do Tribunal Popular Supremo): Os recursos de agravo e de apelação serão interpostos, processados e julgados, de acordo com o regulado nos preceitos aplicáveis em vigor do Código do Processo Civil, mas o Tribunal Supremo conhecerá de facto e de direito, podendo, no acórdão que proferir, confirmar, revogar, alterar ou anular, conforme o caso, a decisão recorrida.”
O artigo 47.º incorpora o Capítulo VI do diploma legal em voga, cuja previsão se subordina ao título “Dos Recursos em Processo Civil.” Porém, embora se refira à tramitação dos recursos em matéria civil, mormente no n.º 3 do artigo 51.º, o legislador emprega os exactos termos mencionados quanto à tramitação dos julgamentos dos recursos penais ordinários. Outrossim, dispõe a norma, nos termos do artigo 649.º do CPP, que “os recursos em processo penal serão interpostos, processados e julgados como os agravos de petição em matéria cível, salvas as disposições em contrário neste código.”
A previsão legal da tramitação dos recursos de agravo em matéria cível encontra substrução na Secção IV do CPC. Quanto ao regime do julgamento, o n.º 1 do artigo 762.º do CPC alude que “o processo para julgamento do agravo segue os termos prescritos nos artigos 749.º a 752.º.” 
Operada a remissão ao artigo 749.º do CPC, se depreende que, ao estabelecer que “ao julgamento do agravo são aplicáveis, na parte em que puderem ser, as disposições que regulam o julgamento da apelação (...)”, o legislador franqueia a acepção que justifica a aplicação subsidiária do regime do julgamento dos recursos de apelação aos recursos de agravo, impostas as devidas adaptações. 
Em razão do exposto, no que concerne ao conhecimento imediato do objecto da apelação – regime aplicável aos recursos em matéria penal, em virtude do disposto nos artigos 649.º do CPP, 749.º e n.º 1 do 762.º, ambos do CPC – “embora o tribunal de recurso declare nula a sentença proferida na 1.ª instância, não deixará de conhecer da apelação” (artigo 715.º do CPC). 
Ora, o cariz cogente subjacente ao artigo 749.º do CPC confere respaldo ao Tribunal recorrido para, com suporte no artigo 715.º do CPC, justificar o conhecimento da apelação do recurso em tela, embora tenha declarado nulo o Aresto proferido pela 1.ª instância. 
A Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro, ampliou as balizas cognitivas do Tribunal Supremo, outrora reguladas pelo CPP, adjudicando  àquela instância recursória as competências funcional e material para conhecer igualmente das questões de facto – mesmo quando actuasse como instância de recurso – em razão de haver uma remissão do formalismo do processamento dos recursos ordinários cíveis aos recursos ordinários penais.
Contudo, tal como se deixou particularizado supra, a Decisão do Tribunal recorrido remonta ao ano 2017, período em que a Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro, tinha sido já revogada pela Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro. Nos termos deste diploma legal, concretamente no n.º 1 do artigo 35.º (Poderes de Cognição), foi novamente restringido o limite cognitivo do Tribunal Supremo ao se determinar que “o Tribunal Supremo conhece, em regra, da matéria de direito, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 37.º da presente Lei.” 
No entanto, o legislador impôs a devida ressalva às questões que à data da publicação da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, se encontravam pendentes no Tribunal Supremo. O que se deixou assinalado encontra respaldo no n.º 1 do artigo 94.º (Competência para Tramitação dos Processos Pendentes), segundo o qual “o Tribunal Supremo mantém as suas competências para tramitar e julgar todos os processos pendentes neste Tribunal, à data da instalação dos Tribunais da Relação.” 
Ademais, no que concerne ao julgamento das nulidades em matéria penal, o artigo 99.º do CPP estabelecia que “as nulidades a que se refere o artigo anterior [artigo 98.º] que se não deverem considerar sanadas podem ser arguidas em qualquer estado da causa e os tribunais de qualquer categoria devem conhecer delas (...).” Ao aludido, se acresce o conteúdo do § 3.º da mesma norma, no qual se explicita que “os tribunais superiores poderão sempre julgar suprida qualquer nulidade que não afecte a justa decisão da causa.”
Posto isto, importa referir que a legalidade é um pressuposto do Estado de Direito e a melhor garantia contra o arbítrio do poder. Nela assenta a rigidez normativa imposta à regulação da generalidade do modus operandi do Estado e dos particulares. Decorre, em especial, da positivação contida nos artigos 2.º e 6.º da Constituição da República de Angola, normas que conferem ao referido princípio a força vinculativa, embora em matéria penal o mesmo se encontre plasmado no artigo 1.º do CPPA.
Assim, escalpelizados os circunstancialismos e atento ao facto de que o recurso foi tempestivamente interposto (fl. 149), admitido por Despacho a fl. 150 e, em acto contínuo remetidos os autos ao Tribunal Supremo, conforme termo de remessa datado de 17 de Julho de 2014, aferível a fl. 156, se constata, com clareza, que o Tribunal Supremo dispunha de poderes para conhecer das matérias de facto acostadas aos autos, bem como das respectivas nulidades, de modo que, ao julgar nos moldes em que expressam os autos, o fez sob a umbrella da lei, não tendo, portanto, incorrido em usurpação de competências jurisdicionais, tampouco na violação dos valores constitucionais esboçados pelo Recorrente. Assim, não assiste razão ao Recorrente.
2. Da ofensa ao princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo
Assevera, o Recorrente, que o total descaso operado relativamente à falta de junção aos autos do exame médico -ginecológico da ofendida, tanto pelo Tribunal a quo, quanto pelo Tribunal recorrido, levou a que ambas instâncias tivessem incorrido em crassa violação das garantias da presunção de inocência e do in dubio pro reo, na medida em que defende que só com o relatório médico, por ser o meio exclusivo e idôneo, teria sido possível comprovar o cometimento do crime de abuso sexual. 
Diante do exposto, importa ponderar se, para efeitos de declaração de culpa em crimes de natureza sexual, bastaria, como elemento probatório de mérito, o exame à ofendida ou se, no plano material — considerando os diversos embaraços que, na maioria dos casos são alheios às partes e resultam quer do estado anímico das vítimas perante o cenário pós-crime, quer da falta de literacia quanto aos actos preliminares a serem adoptados pela família da menor em situações de presumido abuso sexual  - se torna necessário impor ao julgador que estenda a lente judicial e valore, com maior amplitude, os demais indícios probatórios constantes nos autos. 
Dito de modo diverso, a questão que se coloca é a de saber se, no caso em tela, a falta de junção do aludido exame obstaria que a acusação procedesse, implicando que o Recorrente tivesse sido, efectivamente, declarado inocente do crime a que foi condenado. 
À acção penal está inculcado o princípio da oficiosidade, visto que é pública e o respectivo exercício compete, via de regra, ao Ministério Público, nos termos do artigo 5.º do CPP e dos artigos 1.º e 14.º do Decreto-Lei n.º 35 007, de 13 de Outubro de 1945 (vigentes a data dos factos). No exercício desta, o Ministério Público, movido pela premissa fundante da descoberta da verdade material (artigo 9.º do CPP), concretamente no âmbito da instrução preparatória, diligencia uma série de actividades oficiosas de cunho inquisitivo, com vista a apurar ou descartar o mote sob o qual se fundou o juízo de suspeita, tendo por escopo a formação do corpo de delito.
À luz do artigo 170.º do CPP “entende-se como corpo de delito o conjunto de diligências destinadas à instrução do processo (...)”, pelo que integram o seu núcleo “qualquer meio de prova admitido em direito” (cfr. artigo 173.º do CPP).
Contudo, as diligências consumadas durante a instrução preparatória, não se destinam apenas a congregar elementos de prova incriminadores conducentes a determinar a culpabilidade dos arguidos, mas também daqueles que concorram para demonstrar a inocência, promovendo, nos casos em que haja lugar, o arquivamento do processo, conforme disposto no artigo 343.º do CPP, no § 1.º do artigo 12.º e artigo 25.º, ambos do Decreto-Lei n.º 35 007, de 13 de Outubro de 1945.
Por esta razão, ninguém deverá ser julgado e condenado quando se denote flagrante insuficiência probatória incriminatória – sob pena de nulidade (cfr. artigo 98.º do CPP) – porquanto, é do cotejo de todos os meios de prova aduzidos que se estriba a acusação e, no termo da tramitação, com base ao corpus delicti, que se funda a motivação do julgador para condenar ou ilibar o arguido (cfr. n.º 2 do artigo 36.º, artigos 63.º, 64.º, 65.º, 67.º e 72.º, todos da CRA, conjugados com o artigo 13.º da Lei n.º 2/15).
Para Grandão Ramos “são meios de prova os testemunhos, as declarações, os exames, a reconstituição e, de certo modo, as buscas e apreensões, etc”, na medida em que “com esses meios de prova o tribunal adquire o conhecimento do tema da prova” (Direito Processual Penal – Noções Fundamentais, Faculdade de Direito – U.A.N., Ed. Ler e Escrever – Leitores reunidos, Lda, p. 223).
As provas por declarações e as por testemunhas correspondem à categoria das provas pessoais, pois têm por base as pessoas e são fundadas naquilo que estas, por meio dos sentidos, observam, captam e, posteriormente, relatam à entidade competente nas diversas fases do processo. Por sua vez, e embora possam incidir igualmente sobre as pessoas – nos casos em que sejam alvos de exames – os exames são provas reais, e resultam da inspecção directa do Tribunal ou de relatórios de peritos.
É inescusável a função crucial que os exames periciais acarretam no rastreio dos vestígios, eventualmente deixados no momento da consumação da infracção, contanto que proporcionam ao Tribunal maior discernimento sobre a execução dos factos. A conjectura exposta, resulta da confluência do sentido normativo dos artigos 175.º e 178.º, ambos do CPP, nos quais se estabelece que “ninguém pode eximir-se a sofrer qualquer exame ou a facultar quaisquer coisas que devam ser examinadas (...)”. Todavia, o legislador decidiu com acuidade normativa ao contemplar a eventual impossibilidade de realização de determinados exames, ao dispor expressamente no artigo 198.º do CPP que “se o exame se não puder fazer por qualquer motivo, a sua falta será suprida por outro meio de prova”.
Ora, se da citada norma (artigo 173.º do CPP) conflui a postulação inequívoca de que qualquer meio de prova admitido em direito está apto a integrar o segmento investigativo preliminar e, consequentemente, a formação do corpo de delito, resulta improcedente a lógica do Recorrente alicerçada numa pretensa sobrevalorização de determinado meio de prova em detrimento dos demais.
Pretender declinar todo o lastro probatório corroborado nos autos em consequência de uma diligência exclusiva que, analogamente às demais, sequer confere maior pujança quanto à aferição do delito, implicaria que este Tribunal julgasse sob o melindre das premissas que o corporizam e norteiam toda a jurisprudência lavrada neste sentido.
Parafraseando Carnelutti “as provas no van, desgracidamente, a ponerse por si mismas ante los ojos del juez” (Lecciones Sobre el Proceso Penal, Edições Jurídicas Europa-América, III, 2.ª parte, p. 13).
Logo, é legitimado o raciocínio segundo o qual a falta de junção aos autos do relatório do exame médico não compromete a procedência dos demais elementos indiciativos, quer redundem de prova testemunhal, por declarações ou por documentos. Tal se deve ao facto de os Tribunais não deverem resignar a solene atribuição peculiar, a de administrar a justiça em nome do povo, julgando com lisura e equidade, em razão de tal atributo estar entroncado em valores basilares nos proclamados Estados de Direito e Democráticos, nomeadamente a justiça, a paz social e a segurança jurídica. 
Ademais, com base no primeiro interrogatório do arguido (fls. 15 a 16), se depreende que, inicialmente, o Recorrente negou a prática do ilícito, referindo apenas que era a menor que expedia, regularmente, cartas, às quais, segundo afirma, jamais respondeu. Contudo, no auto de acareação de fls. 21v e 22, acabou por confessar a autoria dos factos, tendo, inclusive, especificado o mês, o ano e a hora aproximada em que ocorreu a infracção. 
Não obstante a confissão, procurou esvaziar a censurabilidade da conduta, alegando não ter feito uso de força para consumar a conjunção carnal, a qual, segundo sustenta, resultou da solicitação prévia da menor que, segundo afirma, teria prestado consentimento pleno — tendo se comprometido, inclusive, a produzir prova dessa alegação em juízo (cfr. fl. 22). Tais declarações foram, em grande medida, reiteradas no auto de interrogatório de fl. 30, porém, nesta oportunidade, o Recorrente afirmou que não houve penetração genital de natureza sexual, o que diverge, em parte, do que anteriormente deixou asseverado. A posteriori, em audiência de discussão e julgamento, o Recorrente depôs contra as próprias afirmações, concretamente as que confessava o crime, arguindo que as teria prestado sob coacção (fl. 33v). Como fica claro de ver, todo este lastro probatório consolidado nos autos, se revelou como o necessário para conformar a convicção do Tribunal recorrido e prolatar a respectiva Decisão, em claro respeito ao princípio da livre apreciação das provas.
Importa ainda realçar que a infância é considerada um estágio crucial de desenvolvimento da vida humana. Em decorrência da imaturidade física e psíquica, as crianças necessitam de protecção e cuidados especiais, conditio que as confere imperativa tutela por parte do Estado e das famílias. Pela vulnerabilidade que as acomete e compromete o senso crítico e analítico da vida comum, não dispõem de autodeterminação sexual, isto é, não decidem voluntariamente sobre questões concernentes à liberdade sexual, por forma a salvaguardar o processo de formação de uma vontade que deverá ser livre e natural, elucidada e legítima, enquanto componente integrante da própria ideia de liberdade da pessoa. 
Neste âmbito, para assegurar uma melhor protecção, o Estado angolano assumiu um compromisso constitucional e internacional inderrogável com a tutela da infância, reconhecendo o superior interesse da criança como valor basilar do seu ordenamento jurídico. Esta obrigação projecta-se nos artigos 80.º e 35.º, n.º 6 da CRA, assim como em legislação infraconstitucional — como a Lei sobre a Protecção e Desenvolvimento Integral da Criança, que consagra os “11 Compromissos” — e em tratados internacionais ratificados como a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e a Carta Africana sobre os Direitos e o Bem-Estar da Criança.
A conjugação dessas normas – artigo 80.º, n.ºs 1, 6 e 7 do 35.º e n.º 1 do 77.º, todos da CRA, combinada com os artigos 6.º a 9.º, 14.º, 26.º e 36.º da Lei sobre a Protecção e Desenvolvimento Integral da Criança, associados ainda aos compromissos 8.º e 9.º assumidos pelo Estado angolano – revela que a criança é sujeito de direitos e destinatária prioritária da protecção estatal, devendo o seu desenvolvimento físico, psíquico e cultural ser resguardado de forma plena. Em consequência, qualquer tentativa de responsabilização da criança pelos factos que vitimaram a respectiva integridade moral e sexual deve ser repudiada com veemência.
A presunção de inocência, cláusula de protecção individual contra o arbítrio e os excessos do poder punitivo, vem consagrada no artigo 67.º da Constituição da República de Angola (sincrónica à postulação do artigo 13.º da Lei n.º 2/15), impondo ao Estado o dever de preservar a qualidade de inocente de qualquer cidadão até que sobre o mesmo recaia decisão condenatória transitada em julgado, escudada em prova cabal. 
De modo complementar, o princípio in dubio pro reo impõe que, subsistindo dúvida razoável quanto à culpabilidade do arguido, esta deve ser interpretada em seu benefício, em consonância com a expressão material do favor libertatis (vide artigos 148.º e 150.º de CPP).
Pelo expendido, esta Corte Constitucional não se queda alheia ao delito perpetrado pelo Recorrente, nem se pode abster de valorar as implicações jurídico-constitucionais decorrentes, pelo que, conclui que o Aresto sob escrutínio não ofende os princípios da presunção de inocência, in dubio pro reo ou ampla defesa. Foram asseguradas as garantias do processo criminal pertinentes, nomeadamente a legalidade da detenção e prisão, a presunção da inocência até ao trânsito em julgado das decisões, o princípio do contraditório e a legalidade na obtenção e valoração das provas; além de que, considerando o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz natural, que é livre e activo, os indícios probatórios carreados aos autos — em especial as declarações prestadas em audiência de julgamento, constantes a fls. 134 e 134v — conferem pleno suporte à Decisão recorrida, que merece amparo desta Corte. 
3. Da ofensa ao princípio da proibição da reformatio in pejus 
Afirma o Recorrente que, ao ser agravada a pena concreta aplicável ao crime de violação de menor de 12 anos, p.p. no artigo 394.º do Código Penal (revogado), o Tribunal recorrido ofendeu o princípio da proibição da reformatio in pejus.
A sede normativa da disposição da proibição da reformatio in pejus procede tanto da Magna Carta, concretamente do n.º 4 do artigo 65.º, quanto da legislação ordinária, no artigo 667.º do CPP, da qual se depreende que na eventualidade de se ter interposto recurso ordinário de uma Sentença ou Acórdão pelo réu, pelo Ministério Público no exclusivo interesse da defesa, ou pelo réu e pelo Ministério Público nesse exclusivo interesse, o Tribunal superior não pode, em prejuízo de qualquer dos réus, ainda que não recorrente, “aplicar pena que, pela espécie ou pela medida, deva considerar-se mais grave do que a constante da decisão recorrida”. Por não ser um princípio absoluto, comporta excepções que vêm redigidas no § 1.º do artigo 667.º do CPP.
Nesse ínterim, lecciona Mara Lopes que “a proibição da reformatio in pejus visa garantir que a sentença penal aplicada ao arguido não seja alterada em seu prejuízo quando for interposto o recurso” (O Princípio da Reformatio in Pejus como limite aos poderes cognitivos e decisórios do Tribunal (…), in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias / coord. por Manuel da Costa Andrade, Maria João Antunes, Susana Aires de Sousa, Vol. 3, pp. 963-964).
Vale referir que, no caso em análise, o Ministério Público interpôs recurso por imperativo legal, conforme fl. 149, nos termos do § único do artigo 473.º, conjugado com o § 1.º do artigo 647.º, ambos de CPP, o que denota que o interesse elementar não estava respaldado exclusivamente na defesa do arguido, aqui Recorrente. 
Outrossim, embora a defensora oficiosa do Recorrente tenha interposto recurso no termo da leitura da Decisão condenatória (fl. 147v), admitido conforme Despacho de fl. 150 e notificado às partes como ilustram as fls. 151-153, a bonus da verdade, não foram enxertadas aos autos as devidas alegações que configuram exigência legal nos termos da lei adjectiva, ocasionando, como sequela, a respectiva deserção. 
Não tendo sido o recurso interposto no interesse exclusivo da defesa do arguido, a conditio sine qua non que viabilizaria a improcedência da aplicação de uma medida penal mais gravosa, é perfeitamente concebível que o Tribunal ad quem tenha operado nova ponderação da pena aplicada. 
O que se deixa consignado converge com a jurisprudência desta Corte, com destaque para o Acórdão n.º 808/2023, em que se refere que “o Tribunal Supremo pode, por conseguinte, atenuar a pena, mas não agravá-la, quando o recurso for interposto no exclusivo interesse da defesa.”
Ora, não tendo o recurso sido interposto no exclusivo interesse do arguido, não se verifica violação do princípio da proibição da reformatio in pejus. Consequentemente, inexiste afronta ao direito à julgamento justo e conforme, consagrado nos artigos 29.º e 72.º da CRA, enquanto expressão do acesso à justiça e da exigência de decisões jurisdicionais proferidas com observância das garantias constitucionais. Improcede, por isso, a pretensão do Recorrente.
Nestes termos, 
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO EM VIRTUDE DE O ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO TER OFENDIDO A CONSTITUIÇÃO E A LEI.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 26 de Agosto de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 
Amélia Augusto Varela 
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo 
Gilberto de Faria Magalhães 
João Carlos António Paulino (Relator) 
Lucas Manuel João Quilundo
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Vitorino Domingos Hossi