ACÓRDÃO N.º 1030/2025
PROCESSO N.º 1311-C/2025
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (habeas corpus)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Estevão João Candala, devidamente identificado nos autos, inconformado com o Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, proferido em sede da providência de habeas corpus, no Processo n.º 30/2024, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Para o efeito, o Recorrente aduziu, em síntese, os factos vertidos abaixo:
Encontra-se detido desde o dia 27 de Julho de 2017, por suspeita de, conjuntamente com outros dois co-arguidos, ter incorrido no concurso de dois crimes de roubo qualificado, p.p. pelo n.º 2 do artigo 435.º do Código Penal (CP) e de dois crimes de detenção, uso e porte de arma sem licença ou autorização, p.p. pelas alíneas c) e d) do artigo 8.º, artigos 9.º e 123.º, todos do Diploma Legislativo n.º 3778, de 22 de Novembro de 1967.
Por esses crimes foi acusado, pronunciado e julgado na Sala dos Crimes do Tribunal da Comarca do Moxico, não tendo sido, portanto, associado em juízo, ao cometimento de outros tipos legais de crimes que tenham concorrido com o de homicídio.
Do julgamento, obteve a condenação na pena concreta de 14 (catorze) anos de prisão maior, o pagamento de Kz 15 525 000,00 (quinze milhões, quinhentos e vinte e cinco mil kwanzas) de indemnização e Kz 50 000,00 (cinquenta mil kwanzas) de taxa de justiça.
Desta Decisão interpôs recurso ordinário para o Tribunal Supremo, cujas alegações deram entrada no dia 30 de Julho de 2018.
O Tribunal recorrido alterou parcialmente o Aresto, decidindo pelo agravamento da pena dos co-arguidos, embora tivesse mantido a pena aplicada ao Recorrente.
Desagradado com o sentido da Decisão, interpôs recurso extraordinário de inconstitucionalidade no Tribunal Constitucional, que no termo da tramitação, logrou provimento.
Por ter sido declarado inconstitucional, os autos baixaram ao Tribunal Supremo – onde se encontram até a presente data – aguardando pela reforma da Decisão.
Desde a detenção, operada no dia 27 de Julho de 2017, até ao presente momento, transcorreram 7 anos e 8 meses, tendo o Recorrente, inclusivamente, cumprido já metade da pena resultante da condenação em primeira instância e, a posteriori, mantida pelo Tribunal de Recurso.
O Recorrente impetrou uma providência de habeas corpus no Tribunal Supremo que, conforme Despacho de fls. 39-52, embora concorde com a questão do excesso de prisão preventiva e a consequente prisão ilegal, nega provimento à providência, com arrimo no princípio da salvaguarda da ordem pública.
O Despacho em questão referencia dados não constantes no processo, na acusação, pronúncia e que sequer foram objecto de julgamento nos Tribunais a quo, ad quem e Constitucional, os quais asseveram que o Recorrente cometeu o crime de roubo qualificado concorrido com o crime de homicídio;
O Recorrente nunca foi condenado pela execução dos crimes aludidos no Despacho em revista, de modo que a improcedência da providência de habeas corpus não pode estar fundamentada nesta falsa questão, tampouco ser justificada na obediência ao princípio da ordem pública.
O artigo 283.º do Código do Processo Penal (CPPA) estabelece os prazos máximos da prisão preventiva, isto é, 20 meses desde a detenção até a Decisão final, pretendendo salvaguardar outros direitos fundamentais que podem ser beliscados com a demora excessiva na prolação da Decisão do recurso.
A preservação da ordem pública em detrimento do cumprimento da norma citada, sem atender aos critérios mínimos de razoabilidade, bem como afirmar que a restituição da liberdade ao Recorrente implicaria o retorno deste às práticas delituosas, sem estar arrimado em provas plausíveis, viola os princípios da legalidade, da presunção de inocência, do direito a julgamento justo e equitativo, proporcionalidade, razoabilidade, necessidade e adequação.
Finaliza pedindo que, fiscalizada a constitucionalidade do Despacho, seja declarado inconstitucional, dada a flagrante ofensa às garantias fundamentais retro mencionadas e, em acto contínuo, concedido provimento ao presente recurso.
O Processo foi à vista do Ministério Público, cuja promoção se transcreve o seguinte trecho: “pelo exposto, somos de parecer que se dê, com a urgência que se impõe, provimento ao presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por se comprovar a violação de princípios constitucionais e de direitos, liberdades e garantias.”
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. COMPETÊNCIA
Nos termos da alínea a) do artigo 49.º e do artigo 53.º ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC) – combinados com a alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), incumbe ao Tribunal Constitucional conhecer do mérito do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade (REI).
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente goza de legitimidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, para interpor o presente REI, porquanto, interpôs uma providência cautelar de habeas corpus no âmbito do Processo n.º 30/2024 que correu trâmites no Tribunal Supremo, e cujo desfecho não logrou o almejado desiderato.
IV. OBJECTO
Constitui objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é o Despacho lavrado pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, que negou provimento à providência cautelar de habeas corpus requerida pelo Recorrente sob o Processo n.º 30/2024, por entender que contende com os princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados na Constituição da República de Angola.
V. APRECIANDO
O Recorrente alega que o Despacho proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, na sequência da interposição da providência de habeas corpus, atenta flagrantemente contra as garantias fundamentais previstas na Constituição, concretamente a ofensa ao princípio da legalidade e a violação do direito a julgamento justo e conforme.
A Decisão, objecto de recurso, julgou improcedente a providência de habeas corpus, fundamentando a manutenção da prisão preventiva na preservação da ordem pública. O julgador considerou, ademais, que o direito à segurança colectiva deve prevalecer sobre a presunção de inocência e o direito à liberdade física do Recorrente, cuja soltura representa um risco à paz social, tendo em conta a gravidade e o modo de perpetração do crime reportado nos autos.
Importa, pois, aferir, com fulcro no conjunto arrazoado pelo impetrante, se a este assiste ou não razão, como abaixo se descreve.
Da ofensa ao princípio da legalidade
Decorre dos autos, máxime, da parcela atinente
às conclusões das alegações (vide fls. 93 a 105), que o Despacho de fls. 39-52 ofende o princípio da legalidade, em razão do respectivo substrato contender com a previsão legal relativa aos prazos máximos de vigência da prisão preventiva.
Tal como se extrai dos autos, embora tenha sido o Recorrente condenado em primeira instância pelo concurso de dois crimes de roubo qualificado e dois de detenção, uso e porte de arma sem licença ou autorização, a 26 de Julho de 2018 – conforme Sentença de fls. 11-27 – em boa verdade, este se encontra privado da liberdade desde o dia 26 de Julho de 2017, altura em que foi preso preventivamente, conforme informação da Secretaria Judicial da Câmara Criminal do Tribunal Supremo (vide fl. 10).
Inconformado com o desfecho que obteve da lide, recorreu para o Tribunal Supremo, de onde não logrou alteração da Decisão do Tribunal a quo, embora a situação condenatória dos demais co-arguidos tivesse sido agravada, facto que os compeliu a interpor um recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Declarada inconstitucional a Decisão, em virtude da prolação do Acórdão n.º 717/2021, os autos retornaram à procedência, isto é, ao Tribunal Supremo, pese embora, desde a data da notificação às partes da remessa do processo, este tenha permanecido estagnado sem trânsito julgado, ou seja, sem a respectiva conformação nos termos dispostos no Acórdão do Tribunal Constitucional.
Considerando que foi detido em 2017 e, atento a prolação do Acórdão proferido por esta Corte, no âmbito do Processo n.º 899-A/2021 – último veredicto judicial sobre o caso –, até à presente data, decorreram oito anos, lastro temporal correspondente ao período que o Recorrente se vê coartado do exercício do direito à liberdade.
Na época vigorava a Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, posteriormente revogada pela Lei n.º 39/20, de 11 de Novembro, que aprovou o actual Código de Processo Penal Angolano.
As medidas de coacção pessoal incorporam o Capítulo IV do Código de Processo Penal (CPPA), no âmbito do regimento das quais são abordados, na Secção VII, os limites máximos da prisão preventiva. No que importa a questão sob escrutínio, vale, preliminarmente, referir que o n.º 1 do artigo 283.º do CPPA, sob a epígrafe “prazos máximos de prisão preventiva”, mormente na alínea d), estabelece que a prisão preventiva cessa quando, desde o seu início, decorram “18 meses, sem haver condenação com trânsito em julgado.”
No entanto, o n.º 2 da norma em referência franqueia a dilação dos prazos previstos nas alíneas do número precedente, estabelecendo que, não havendo ainda trânsito em julgado e, estando perante crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu limite excelso a 5 anos, o prazo máximo de prisão preventiva poderá ser estendido até 20 meses, o que corresponde a 1 ano e 8 meses, caso o processo esteja revestido “de especial complexidade em função do número de arguidos e ofendidos, do carácter violento ou organizado do crime e do particular circunstancialismo em que foi cometido” – evidência que, conforme o avultado nos autos, não encontra égide no presente caso. Nos casos em que tenha havido lugar a recurso para o Tribunal Constitucional ou ocorrido a suspensão do processo penal para o julgamento de uma questão prejudicial, aos prazos sobreditos são acrescidos 4 meses.
A prisão preventiva, enquanto medida de coacção pessoal nos termos da alínea g) do n.º 1 do artigo 260.º do CPPA, “consiste na privação da liberdade de um arguido para o colocar à disposição da entidade encarregada da investigação criminal e da instrução processual ou de um juiz na fase judicial” (Grandão Ramos, Direito Processual Penal – Noções Fundamentais, Faculdade de Direito – U.A.N., Ed. Ler e Escrever – Leitores reunidos, Lda., p. 267).
A mesma, incide directamente sobre o direito fundamental à liberdade, subordinado ao princípio da legalidade, que disciplina os pressupostos de aplicação; ademais, está vinculado ao princípio do numerus clausus, face à taxatividade das medidas de coacção penal, isto é, à estrita circunscrição às descritas na norma penal adjectiva (artigo 261.º do CPPA).
Constitui posição assente na jurisprudência desta Corte, que “a prisão preventiva tem carácter cautelar e instrumental, não tem vocação natural de garantia ou restauração da ordem e tranquilidade públicas, porquanto, esta é uma das finalidades ínsitas na pena – a prevenção geral” (Acórdão n.º 995/2025 (disponível em: www.tribunalconstitucional.ao).
O direito à liberdade física é um direito fundamental de cidadania (artigo 36.º da CRA), que vela pelo respectivo cumprimento e protecção, em harmonia com o sentido perfilhado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (artigo 12.º da CRA). Por se tratar de um bem jurídico de elevado valor, o respectivo titular, em face de qualquer ofensa à liberdade individual, pode lançar mão aos meios deferidos por lei.
Neste âmbito, a Constituição revela o habeas corpus como sendo a ferramenta jurídica congruente contra o abuso de poder e do arbítrio judicial, em incidentes de prisões ou detenções ilegais (artigo 68.º da CRA), tendo por escopo não mais prevenir e sim remediar e sanar ataques iminentes ou consumados.
A coerência e a unicidade de todo sistema jurídico – vertido no texto constitucional – granjeiam uma colocação especial quando aplicadas ao direito penal, em razão de as medidas de coacção pessoal revelarem estreita ligação com direitos, liberdades e garantias fundamentais – fulcrais para o exercício de outros com igual dignidade constitucional – quer quando na respectiva actuação os restrinjam, quer ao estabelecerem os atinentes prazos de vigência.
Com base no acima exposto, importa ressurtir que o direito processual penal é verdadeiro direito constitucional aplicado, conquanto, se por um viés a Constituição estabelece o quadro de valores superiores da ordem jurídica, por outro, ao processo penal impende o dever de tutela destes.
Neste contexto, restrições e limites de restrição integram peso e contrapeso de uma mesma balança, cuja execução deve ser refreada pelos critérios da necessidade, adequação e proporcionalidade, conforme disposto no artigo 262.º do CPPA. Com efeito, quando arredadas desses parâmetros, se revelam extremamente penosas, pois limitam injustamente o direito à liberdade dos cidadãos. Assim, a simetria entre as restrições e os respectivos limites influi directamente no aviamento da justiça ao caso concreto submetido a julgamento.
Na esteira de Grandão Ramos, o princípio da legalidade, eixo angular do direito penal, “decorre da natureza do processo e dos interesses tutelados pelo direito penal (interesses fundamentais e indisponíveis do Estado) que através dele se realizam. (...) É um pressuposto do Estado de direito e a melhor garantia contra o abuso de poder, as desigualdades de tratamento processual e contra injustiças.” (Direito Processual Penal – Noções Fundamentais, Faculdade de Direito – U.A.N., Ed. Ler e Escrever – Leitores reunidos, Lda., p. 80).
O que se deixa dito supra está positivado nos artigos 2.º e 6.º da CRA e encontra igualmente respaldo no artigo 1.º do CPPA, normativos com os quais se harmoniza a jurisprudência desta Corte, segundo a qual “o princípio da legalidade revela-se como a magna garantia da efectividade dos direitos do cidadão, imprescindível à estabilidade jurídica e aos demais valores insculpidos na legislação e na lex suprema”, tal alinha-se com o firmado nos Acórdãos n.º 698/2021, 712/2021, 787/2022, 876/2024 e 973/2025 (disponíveis em: www.tribunalconstitucional.ao).
As nuances entroncadas na violação do princípio em alusão, na holística processual penal, não se restringem à máxima “nullum crimen, nulla poena sine lege” (n.º 2 e 3 do artigo 65.º da CRA). O melindre ao invocado princípio sucede, de igual modo, dos casos previstos nos artigos 64.º a 69.º da CRA, com notável menção no n.º 1 do artigo 66.º: “não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas de liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.”
Por esta razão, as medidas que restringem o exercício pleno do direito à liberdade física não devem ser perpetuadas, isto é, necessitam de estar balizadas em horizonte de tempo pré-estabelecido, sob pena de serem vulneradas as garantias do processo penal (artigo 66.º da CRA).
Assim, expirados os limites máximos da vigência da prisão preventiva, consignados no artigo 283.º do CPPA, esta deve cessar imediatamente. Converge, igualmente, com o pontuado, o disposto no n.º 3 do artigo 284.º, com base no qual “sempre que estiverem esgotadas as razões que fundamentaram a prisão preventiva, deve o arguido ser posto em liberdade.”
Neste particular, a luz da jurisprudência consolidada nesta Corte, “o excesso de prisão preventiva, quando parametrizada com os princípios constitucionais da presunção de inocência e da proibição de penas ou medidas de segurança de duração ilimitada impõe aos órgãos judiciais uma única decisão, a de restituição imediata da liberdade do arguido”, tal como se encontra assente no Acórdão n.º 995/2025 (disponível em: www.tribunalconstitucional.ao).
Em derradeira apreciação, importa pontuar que a privação da liberdade só pode ser reconhecida se processada nos termos e condições determinadas por lei (cfr. artigo 64.º da CRA); sendo certo que a condição processual de condenação não derroga a titularidade e o exercício pleno dos direitos fundamentais, com ressalva para os que se acham prejudicados por inerência das limitações decorrentes do cumprimento da respectiva execução da pena (cfr. n.º 2 do artigo 66.º da CRA).
Por estar preso preventivamente desde 2017, ou seja, há 8 (oito) anos, sem trânsito em julgado da Sentença, lastro de tempo que contende com o limite máximo previsto por lei, esta Corte entende ser manifesta a ofensa ao princípio da legalidade e, por conseguinte, ilegal a prisão preventiva, pelo que, assiste razão ao Recorrente.
Da violação do direito a julgamento justo e conforme
O Recorrente clama pela reposição da constitucionalidade aos factos, porquanto alega ter sido coartado de pleitear sob um julgamento equitativo e conforme, visto que o Despacho que indeferiu a providência de habeas corpus violou grosseiramente as garantias da presunção de inocência, da proporcionalidade e do direito a julgamento justo e conforme.
Cabe a esta Corte aferir se a indagação apresentada pelo Recorrente encontra fundamento em face do que atestam os autos.
Prima facie, vale reportar que, embora o Recorrente tenha feito menção da violação das aludidas garantias discriminadamente, ou seja, de modo particular, em bom rigor, a inobservância dessas conflui, unanimemente, na violação do direito a julgamento justo e conforme, atento à ampla vascularização subjacente ao mesmo.
Em face disto, de modo a assegurar a linearidade textual e a celeridade do rito processual, serão os direitos evocados pelo Recorrente subsumidos, como há pouco se referiu, na transversalidade do direito a julgamento justo e conforme, embora sejam dissecados de modo singular, em face do circunstancialismo concernente a cada.
Alude o Recorrente que o Despacho de indeferimento de fls. 39-52 se estribou em fundamentos ilegítimos, sendo, por essa razão, improcedente e injusto, pelo que, se acha ferido de inconstitucionalidade. Refere que a inconstitucionalidade decorre, num primeiro momento, do facto de o Despacho justificar o indeferimento da providência de habeas corpus em razão do presumível nível de periculosidade do Recorrente – fundado na natureza violenta dos crimes de que foi condenado – e, do presumível indício de prossecução da prática dos referidos delitos, caso seja posto em liberdade.
Do escrutínio do Despacho em revista, se depreende que, embora o mesmo declare manifesto o excesso de prisão preventiva, e a consequente prisão ilegal do Recorrente, o fundamento do indeferimento se esteia no predomínio da salvaguarda da ordem pública nacional, com vista o consolidar a paz social.
Em termos símiles, o decisum propugna a conjectura mediante a qual impendem sobre a régua judicial duas medidas, as quais pleiteiam e clamam por tutela iminente: (i.) o direito à liberdade física, com respaldo no artigo 36.º da CRA; (ii.) o direito à paz e a tranquilidade pública, nos termos do artigo 11.º da CRA e do artigo 263.º do CPPA.
Ressalta ainda que, com vista a preservação do bem-estar e da paz social, corolários da ordem pública, devem as instâncias judiciais empunhar o malhete judicial, primando pelo dever de zelar pela tranquilidade colectiva – por a todos respeitar – e suplantar o direito à liberdade do Recorrente, tendo em vista que a restituição deste infractor, tido como contumaz, à liberdade, implicaria o prelúdio de uma sequência de actos potencialmente violadores de direitos fundamentais de terceiros.
Com o expendido, o Despacho em crise pretendeu evidenciar que o sacrifício à liberdade individual do Recorrente conferiria à ordem jurídica constitucional mais proveitos se comparado à libertação deste.
Ora, os direitos fundamentais são pilares cruciais para assegurar que o sacrossanto primado da dignidade da pessoa humana — valor capital e estruturante dos Estados de direito — permaneça erigido, eficaz e efectivamente operacional, garantindo que o exercício do poder não esteja divorciado da centralidade do ser humano. A Constituição os reconhece, respeita e vela pelo respectivo cumprimento, atribuindo aos mesmos força jurídica vinculativa imediata e geral, sendo, portanto, declarados invioláveis nos termos do n.º 1 do artigo 28.º e do artigo 56.º, ambos da CRA, cujas limitações ou restrições estão sujeitas aos predicados da proporcionalidade e razoabilidade, por forma a salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente tutelados (artigos 57.º e 58.º da CRA).
Assim, não tendo sido aferida qualquer das situações previstas no artigo 58.º da CRA – o estado de guerra, sítio ou emergência – perante a ocorrência das quais pode ter respaldo constitucional a restrição de direitos, liberdades e garantias fundamentais improcede todo e qualquer fundamento que contrarie o elencado, por força da inderrogabilidade das normas constitucionais, atributo expresso no primado da supremacia da Constituição e da legalidade, consagrado nos artigos 2.º e 6.º da CRA.
Outrossim, atento ao que se deixou clarificado no tópico precedente, a privação do direito fundamental à liberdade só pode ter amparo constitucional se processada nos termos preconizados na lei (n.º 1 do artigo 64.º da CRA).
Secundum veritatem, este Tribunal entende que o mote que hasteia o sentido decisório do Despacho em questão eivado está de inconstitucionalidades, conquanto o direito de ir e vir integra o núcleo dos direitos fundamentais elementares nos Estados de direito, não podendo ser limitado quando não existam fundamentos plausíveis e legais para o efeito.
Ao sustentar que a soltura do Recorrente constituiria perigo à tranquilidade pública, o Despacho violou o direito à presunção de inocência, garantia processual criminal consagrada no n.º 2 do artigo 67.º da CRA, segundo o qual “presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”. Tal prognóstico traduz um pré-juízo que, embora pudesse ser cogitado em face da acentuada censura que caracterizou o modus operandi do crime imputado ao Recorrente, todavia, se afigura desproporcional e apartado de subsunção fáctica consolidada nos autos, relativamente a limitação do direito à liberdade, à margem dos marcos da Constituição e da lei.
Outrossim, conceber o cárcere, sobretudo nos casos de prisão ilegal, como a única medida viável para repor a legalidade, frear e controlar a criminalidade, constitui um acto declaratório e confessório de inexistência de instituições robustas e implacáveis, sendo uma asserção que vulnera os pilares da certeza e segurança jurídicas.
Embora a lei autorize a prisão preventiva do arguido antes ou depois da culpa formada, esta privação da liberdade está assente na consecução de fins processuais – a segurança da prova e a exequibilidade da sentença final – que a distinguem da prisão enquanto pena privativa da liberdade, pelo que, a atinente aplicação deve ser operada em consonância com os ditames objectivos legalmente escalpelizados, sob pena de irregularidade processual, atento ao disposto no artigo 282.º do CPPA. Não havendo razões jurídico-penais substantivas, estribadas na Constituição e na lei, que confiram embasamento à prisão preventiva, a subsistência da mesma é ilegal.
Com efeito, tanto quando se baseie em critérios de inconveniência — como o receio de fuga, perturbação da instrução, ameaça à ordem pública ou risco de reiterado da prática de acção criminosa — ou quando assente em critérios de inadmissibilidade, fundados na imperatividade normativa para crimes graves, reincidência e afins, devem sempre ser reavaliados e ponderados oficiosamente os pressupostos da medida (artigo 282.º do CPPA). Ademais, o decurso do prazo legal máximo de duração da prisão preventiva acarreta a imediata cessação e a restituição da liberdade, conforme preceituam a alínea b) do n.º 1 do artigo 268.º e o artigo 284.º do CPPA.
Raul Carlos Vasques Araújo e Eliza Rangel Nunes, sustentam que, “o direito ao julgamento é um pressuposto do Estado Democrático de Direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente. Ela tem de assegurar um julgamento público e um prazo razoável e garantias de defesa material” (Constituição da República de Angola – Anotada, Tomo I, Gráfica Maia, 2014, p. 398).
Em harmonia com a jurisprudência firmada nesta Corte, “este princípio constitucional tem como objectivo assegurar um julgamento justo e em conformidade com os ditames legais, em decorrência de um processo equitativo, capaz de garantir a justiça material e uma decisão dentro de um prazo razoável respeitando os procedimentos judiciais, tais como a celeridade e prioridade de modo a obter a tutela efectiva em tempo útil contra ameaças ou violações dos seus direitos”. É o que se acha vertido nos Acórdãos n.º 707/2021, 741/2022, 862/2023, 898/2024, 946/2024 e 1007/2025 (disponíveis em: www.tribunalconstitucional.ao).
Assim, alinhavados os factos, ao privilegiar o receio de perturbação da ordem pública em detrimento do direito fundamental à liberdade, o Despacho de fls. 39-52 incorreu em violação do direito à presunção de inocência do Recorrente, porquanto a Sentença condenatória não transitou ainda em julgado.
Do mesmo modo, afrontou o princípio da proporcionalidade que deve nortear o reexame das medidas de coacção pessoal em processo penal, implicando, assim, a indevida restrição de um direito fundamental e, concomitantemente, a violação do direito à julgamento justo e conforme, pelo que, assiste razão ao Recorrente.
Conclui este Tribunal que a Decisão recorrida, atenta contra o princípio da legalidade e do direito ao julgamento justo e conforme nos termos dos artigos 6.º e 72.º da CRA.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E BAIXAR OS AUTOS AO TRIBUNAL RECORRIDO, DEVENDO O ARGUIDO SER RESTITUIDO IMEDIATAMENTE A LIBERDADE, AGUARDANDO ULTERIORES TERMOS DO PROCESSO.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 7 de Outubro de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Amélia Augusto Varela
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino (Relator)
Lucas Manuel João Quilundo
Vitorino Domingos Hossi