ACÓRDÃO N.º 1035/2025
PROCESSO N.º 1304-D/2025
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Luís Alberto Lino Vinhas, com os melhores sinais de identificação nos autos do processo supra cotado, veio a esta Corte Constitucional, ao abrigo da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), impetrar o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolatado, rectius, pela 4.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 5954/21, que negou provimento ao recurso apresentado.
O Recorrente infere que o Acórdão proferido e precedentemente referenciado ofende princípios previstos na Constituição da República de Angola (CRA) e, para tanto, nas suas alegações, deduziu, em breviário, o que infra se arrola:
A Decisão recorrida ofende o princípio da legalidade penal, do contraditório e da ampla defesa, porquanto, foi no Tribunal ad quem condenado pelo crime de burla, que não constava da acusação, não tendo sido por isso previamente comunicado para se defender e sobre este crime não teve oportunidade de exercer o contraditório.
Houve violação do direito à decisão fundamentada, visto que o Tribunal Supremo se limitou a afirmar de forma lacónica que os elementos do crime de burla estavam preenchidos, não justificou o afastamento do crime de abuso de confiança pelo qual foi condenado em primeira instância nem por que razão a sua conduta, entrega parcial dos valores num contexto de câmbio informal deve ser considerado burla e não relação civil/contratual mal sucedida.
O facto da Decisão recorrida ter considerado existir o crime de burla, ofendeu o princípio da presunção de inocência, porquanto, não ficou provado ter existido dolo inicial, no sentido de que queria incumprir com as suas obrigações e não houve o dolo específico existente em crimes patrimoniais, até porque, os autos mostram que entregou valores em euros correspondentes a parte substancial dos montantes recebidos, manteve relação comercial continuada com os ofendidos e chegou a entregar um imóvel como compensação.
A nova qualificação dos factos operada pelo Tribunal Supremo, em seu prejuízo, contraria o princípio da proibição da reformatio in pejus, implícito no direito ao recurso justo e equitativo e presente no princípio do devido processo legal, porque realizava operações no mercado cambial entre Angola e Portugal e os ofendidos recorreram voluntariamente a este sistema, extra-bancário e arriscado como forma de contornar a rigidez do sistema bancário formal. Assim sendo, era abusiva qualquer perseguição penal sobre uma relação negocial de natureza civil.
Termina peticionando que se dê provimento ao recurso por violação dos artigos 23.º, 29.º, 30.º, 31.º e 72.º, todos da CRA e se declare inconstitucional a Decisão recorrida por violação grave de princípios constitucionais, que se anule a condenação, com efeitos ex tunc, reconhecendo-se a nulidade insanável da decisão e que se determine o arquivamento da instância penal, por inexistência de qualquer crime tipificado a si imputável.
O processo foi à vista do Ministério Público junto desta instância jurisdicional.
Colhidos os vistos legais dos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir, já que nada a tal obsta.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto com fundamento na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, pelo que dispõe o Tribunal Constitucional de competência para apreciar o presente recurso.
II. LEGITIMIDADE
A legitimidade para a interposição de um recurso extraordinário de inconstitucionalidade cabe, no caso de sentença, à pessoa que, em harmonia com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, possa dela interpor recurso ordinário, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC.
No caso sub examine, o Recorrente, enquanto parte no Processo n.º 09/2024, não viu a sua pretensão atendida, pelo que dispõe de legitimidade para recorrer do Acórdão de condenação pela prática do crime de burla.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é o Acórdão proferido pela 4.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 5954/21, datado de 03 de Agosto de 2023, competindo ao Tribunal Constitucional apreciar se o mesmo ofendeu o princípio da legalidade penal, do contraditório e da ampla defesa, do dever legal de fundamentação das decisões judiciais, da presunção de inocência e da proibição da reformatio in pejus, todos consagrados na Constituição da República de Angola.
V. APRECIANDO
É submetida à apreciação desta Corte, o Acórdão prolatado pela 4.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 5954/21, que condenou o Recorrente na pena de 2 anos de prisão, pela prática do crime de burla, tendo suspendido a sua execução por um período de dois anos e na indemnização de Kz 117 538 000,00 (cento e dezassete milhões e quinhentos e trinta e oito mil kwanzas).
O Recorrente demanda a intervenção do Tribunal Constitucional, por entender que o Acórdão recorrido ofendeu os princípios da legalidade penal, da tipicidade, do contraditório, da presunção de inocência, da proibição da reformatio in pejus e do dever legal de fundamentação das decisões judiciais, todos consagrados na Constituição da República de Angola.
Veja-se, pois, se assistir-lhe-á razão, face às alegadas ofensas aos princípios apontados.
Relativamente ao princípio da legalidade, penal assevera Dalvan Costa que: “consagrado nos n.ºs 2 e 3 do artigo 65.º da CRA, e preteritamente infirmado pelo [artigo 1.º do Código Penal] (…), este exprime-se historicamente pela fórmula nullum crimen sine lege. Exige, numa formulação directa, que não haja crime sem lei prévia que assim determine (Legalidade Penal e Constituição. Da constitucionalidade do artigo 28.º da Lei dos Crimes Contra a Segurança de Estado, in Revista JURIS, vol. 1, n.º 2, 2016, pp. 77 e 78, disponível em: https://doi.org/10.34632/juris.2016.9174).
O princípio do contraditório postula que o tribunal, antes de prolatar as suas decisões, deve ouvir a acusação e a defesa e que estas devem ter a possibilidade de se pronunciar sobre as actuações ou condutas processuais da contraparte.
E, no domínio do processo penal, na óptica de Figueiredo Dias, o juiz não deve “levar a cabo a sua actividade solitariamente, mas deve para tanto ouvir quer a acusação quer a defesa” (Direito Processual Penal, Coimbra, 1974 (reimp. 2004), p. 149).
No que diz respeito ao princípio da presunção de inocência, este emana do disposto no n.º 2 do artigo 67.º da Constituição da República de Angola que estatui, “presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
Ressalta Carlos Pinto de Abreu que “a presunção de inocência impõe que só haja condenação do cidadão após ter sido solene, pública e definitivamente julgado culpado, em processo participado, justo, leal e equitativo, em que a igualdade de armas seja real e efectiva, o que só pode haver com amplo e ilimitado contraditório e com duplo grau de jurisdição em matéria de facto e em matéria de direito” (Presunção de Inocência, Medidas de Coacção, Publicidade, Dignidade e Respeito. Um Exercício, para Juristas e Jornalistas, de Pura Racionalidade Teórica, mas de Difícil Compatibilidade Prática. JURIS, Vol. 2, n.º 2, 59-79, 2017, p. 66, disponível em: https://doi.org/10.34632/juris.2017.9229).
O princípio da proibição da reformatio in pejus prescreve que, interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no interesse exclusivo daquele, ou por ambos no interesse exclusivo do arguido, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.
O dever de fundamentação das decisões judiciais resulta, desde logo, de imposição constitucional, depreendida nos marcos dos artigos 2.º e 6.º da Constituição da República de Angola e do artigo 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, densificando-se legalmente, sobretudo, nos Códigos de Processo Civil e de Processo Penal.
Tal dever constitucional e legal tem como desígnio a dilucidação por parte do julgador acerca das motivações pelas quais decidiu em um dado sentido, dirimindo determinado litígio que lhe foi colocado, de forma que os destinatários possam entender as razões da decisão proferida e, caso o entendam, sindicá-la e impugnar a mesma.
Esta Corte Constitucional, no Acórdão n.º 865/2023, de 5 de Dezembro, entendeu que “o dever de fundamentar os actos jurisdicionais é um pressuposto do princípio da motivação constitucional, isto é, para que uma decisão judicial seja válida, deve conter não só a decisão, mas também a exposição das razões de facto e de direito que levaram a tomar tal decisão” (vide igualmente os Acórdãos n.ºs 702/2021, de 7 de Outubro, 668/2021, de 3 de Março, 662/2021, de 20 de Janeiro, 394/2016, de 9 de Junho e 122/2010, de 23 de Setembro, todos disponíveis em https://www.tribunalconstitucional.ao/).
No caso sub judice, o Recorrente alega que em sede de recurso junto do Tribunal Supremo foi condenado pelo crime de burla, que não constava da acusação, não tendo sido previamente notificado para se defender sobre este novo crime e, assim sendo, foi lhe vedado o contraditório.
À luz das informações contidas nos autos, fls. 291 e 292, verifica-se que o Recorrente vinha condenado pela 8.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do então Tribunal Provincial de Luanda na pena de 2 anos de prisão efectiva, no pagamento de Kz 80 000,00 (oitenta mil kwanzas) de taxa de justiça e a pagar aos ofendidos no prazo de 3 meses, uma indemnização fixada em Kz 117 538 000,00 (cento e dezassete milhões e quinhentos e trinta e oito mil kwanzas) pela prática do crime de abuso de confiança.
Em sede de recurso apresentado apenas pela defesa, a 4.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, por Acórdão de fls. 360 a 366 e verso dos autos, exarado no âmbito do Processo n.º 5954/21, entendeu, após promoção do Ministério Público junto daquela instância que, diversamente da qualificação efectuada pelo Tribunal a quo, estava em causa o crime de burla e, desta feita, condenou o Recorrente na pena de 2 anos de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de dois anos e a pagar aos ofendidos, no prazo de 6 meses, uma indemnização fixada em Kz 117 538 000,00 (cento e dezassete milhões e quinhentos e trinta e oito mil kwanzas).
Percebe-se claramente que a Decisão posta em crise é mais favorável para o Recorrente, relativamente a que foi proferida pelo Tribunal de primeira instância, em virtude da nova qualificação dos factos. Daqui resulta que, beneficiando o arguido dessa nova qualificação e de condenação com pena suspensa que, em concreto, é mais favorável, despiciendo seria que fosse notificado para que o mesmo tomasse conhecimento desse facto.
Aliás, depreende-se das posições desta Corte Constitucional que, nas situações em que a qualificação jurídica diversa em sede de recurso por parte do Tribunal superior seja mais favorável ao arguido, não está obrigado a notificá-lo, uma vez que esta situação não representa um prejuízo à defesa, ao contrário das que agravariam a prevalecente, sob pena de gerarem nulidade.
Outrossim, este é o espírito do n.º 1 do artigo 473.º do CPPA sobre a proibição da reformatio in pejus, que proíbe o tribunal de recurso de, em prejuízo do arguido, modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida quando o recurso for apresentado no exclusivo interesse da defesa, como ocorreu na situação em apreciação.
Situação diversa se configuraria se o Tribunal superior, ao qualificar diversamente os factos, quer no tocante à incriminação ou às circunstâncias modificativas da pena, pretendesse agravar as consequências jurídicas do crime em prejuízo do arguido. Neste caso estaria obrigado a notificar o arguido, o Ministério Público e o assistente para, querendo, se pronunciarem sobre a questão da nova qualificação jurídica suscitada no recurso, em conformidade com o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 473.º, conjugado com o n.º 2 do artigo 482.º, ambos do CPPA.
Na hipótese, estar-se-ia diante da regra da reformatio in pejus, que constitui uma excepção a regra da sua proibição, como de resto tem defendido este Tribunal Constitucional que pontificou: “[os n.ºs 2 e 3 do artigo 473.º conjugado com o n.º 2 do artigo 482.º, ambos do CPPA] vem trazer excepções a esta regra, como já anteriormente se referiu, permitindo ao tribunal de recurso, no caso o Tribunal Supremo, agravar a pena imposta desde que qualifique diversamente os factos (…), quer a qualificação respeite à incriminação, quer à circunstâncias qualificativas da pena. Contudo, quando o representante do Ministério Público junto do Tribunal Supremo se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, aduzindo logo os fundamentos do seu parecer, serão notificados os réus, a quem serão entregues cópias do parecer, para resposta no prazo de oito dias” (Acórdão n.º 782/2022, de 15 de Novembro, nesse mesmo sentido, os Acórdãos n.ºs 516/2018, de 11 de Dezembro e 491/2018, de 11 de Julho, disponíveis em https://www.tribunalconstitucional.ao/).
A ratio essendi das supracitadas normas legais foi explicitada por esta Corte de Justiça Constitucional no Acórdão n.º 922/2024, de 6 de Novembro, ao afirmar “a proibição de reformatio in pejus (alterar para pior), instituto que impede que um tribunal superior agrave a pena quando em presença de um recurso interposto pelo arguido ou pelo Ministério Público, no exclusivo interesse da defesa, configura, essencialmente, uma medida de protecção do direito ao recurso, direito este que materializa, em si mesmo, uma garantia de defesa dos direitos do arguido, que encontra consagração no n.º 1 do artigo 67.º da Constituição da República de Angola. Este é, pois, um instituto que tem, fundamentalmente, por objectivo evitar que o arguido, o sujeito central do processo penal, seja prejudicado com a aplicação de medida penal mais gravosa, o que poderia coarctar o exercício do direito constitucional ao recurso e colocar em causa a necessária estabilidade e previsibilidade das decisões judiciais, corolário dos princípios da segurança e certeza jurídicas, ainda que esta proibição não tenha valor absoluto” (disponível em https://www.tribunalconstitucional.ao/).
A contrário sensu, a lei não impõe que a reformatio in mellius, isto é, a decisão judicial modificativa para melhor, resultando em uma situação mais favorável ao Arguido/Recorrente, lhe seja previamente notificada.
Assim defendem Manuel Simas Santos e João Simas Santos ao referir que “é obvio que a proibição respeita apenas à reformatio in pejus (modificação para pior) e nunca à reformatio in melius (alteração para melhor), uma vez que aí o tribunal pode oficiosamente alterar a decisão no uso dos seus poderes de aplicação de uma pena justa, ainda que em benefício do arguido” (Recursos Penais Angola, 2.ª ed. aument. e actual., Letras e Conceitos, Lda., 2024, p. 89).
Douglas Fischer e Eugenio Pacelli, aludem que “nenhum óbice principiológico ou normativo se apresenta para a ocorrência da denominada reformatio in mellius. A situação nada mais é do que a possibilidade de a instância recursal, ex officio, melhorar a situação do réu, desde que haja devolução da matéria à instância de forma genérica. A alteração do julgado não impugnado somente poderá ser realizada, segundo compreendemos, diante de manifesta ilegalidade do que firmado na decisão submetida ao tribunal” (Comentários ao Código de Processo Penal e Sua Jurisprudência, 13.ª ed., Atlas, 2021, p. 1614 (disponível em: https: //www.migalhas.com.br/depeso/374718/reformatio-in-mellius-no processo-administrativo-disciplinar).
Vale lembrar que assim também se procede aquando do julgamento em primeira instância, onde o n.º 1 do artigo 408.º do CPPA determina que, “se da produção da prova em julgamento resultar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia que, ainda assim, se mostre relevante para a justa decisão da causa, o juiz que preside a audiência manda notificar o arguido da alteração, concedendo-lhe, se ele o requerer, o tempo necessário para preparar a sua defesa”. O n.º 2 desse artigo, aguisa que “aplica-se o disposto no número anterior sempre que o Tribunal entender alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, salvo se da nova qualificação resultar a imputação de crime menos gravemente punível”.
Aliás, na respectiva vista, o Ministério Público junto do Tribunal Supremo, a fls. 334 e verso dos autos, promoveu o seguinte: “somos de parecer que o arguido deve ser condenado pelo crime de burla por defraudação (sic) p. e p. pelo art.º 417.º e pela al. c) do art.º 392.º do actual CP por força do n.º 2 do art.º 2.º do novo CP por ser mais favorável ao arguido (…)”.
É notório que a intenção era referir sobre o crime de burla, tipificado no artigo 417.º do Código Penal, apesar de, por lapso, ter mencionado o crime de burla por defraudação, hodiernamente inexistente, e que se propunha uma medida mais favorável ao Recorrente.
Desta feita, no caso em comento não havia necessidade do então arguido, ora Recorrente contraditar a posição do Ministério Público enquanto contra-parte, na medida que esta apenas solicitou o desagravamento das medidas impostas ao Recorrente. Pelo que a ser assim não ficou demonstrado qualquer prejuízo ao direito ao contraditório e a ampla defesa do Recorrente.
Sobre este assunto, alude Germano Marques da Silva, que “a condenação por crime diverso do descrito na acusação só viola o princípio do contraditório quando introduz factos novos ou diferentes que o arguido não teve oportunidade de contraditar. Quando, porém, se trata apenas de uma qualificação jurídica diversa, designadamente quando o crime em que o arguido vem a ser condenado se encontra em relação de especialidade com o descrito na acusação — isto é, quando os factos são os mesmos e apenas se entende que se subsumem a um tipo legal mais restrito ou mais amplo — não há violação do direito de defesa nem necessidade de nova notificação ou de reabertura da audiência. O arguido defendeu-se dos factos e não da sua qualificação jurídica, podendo o tribunal proceder à requalificação, nos termos do art. 358.º do Código de Processo Penal [Português]” (Curso de Processo Penal, Vol. III, 3.ª ed., Verbo, 2000, pp. 335-336).
Defende ainda este autor que “o tribunal pode, sem violar o princípio do contraditório, convolar a imputação num crime em relação de especialidade, desde que os factos se mantenham inalterados e a alteração resulte apenas de uma diferente valoração jurídica. Tal situação não constitui surpresa nem afronta o direito de defesa” (Idem, p. 336).
Nesta linha de raciocínio aponta a interpretação do Acórdão n.º 982/2025, de 1 de Abril, onde se afirmou que, “por seu turno, o princípio do contraditório é um mecanismo jurídico que permite ao arguido exercer o seu direito de defesa, em relação à sua apreciação. Este princípio fundamenta-se na expressão latina audiatur et altera pars (ninguém pode ser acusado sem ser ouvido. As partes devem ter as mesmas prerrogativas durante o desenvolvimento da relação jurídica processual), expressão essa que visa garantir a ciência bilateral de todos os actos e termos processuais, de tal modo que tem como objectivo garantir a efectivação do binómio informação-acusação-defesa” (Vide, ainda, dentre outros, os Acórdãos n.ºs 974/2025, de 13 de Março, 877/2024, de 5 de Março e 593/2019, de 19 de Dezembro, disponíveis em https://www.tribunalconstitucional.ao/).
Em suma, no caso em sindicância, contrariamente ao aduzido pelo Recorrente, constata-se que a Decisão recorrida respeitou os princípios do contraditório, da presunção de inocência, da proibição da reformatio in pejus e o dever legal de fundamentação das decisões judiciais, visto que os argumentos, quer os da defesa, como os da acusação, foram apreciados de forma justa, leal e equitativa, estando devidamente fundamentadas, de facto e de direito, as razões que levaram o Tribunal Supremo a decidir nos termos em que o fez, cujo mérito não cabe na apreciação desta Corte de Justiça Constitucional, por não ser este mais um foro da jurisdição comum.
Face ao supra lucidado, o Tribunal Constitucional considera que, efectivamente, o Acórdão recorrido não ofendeu os princípios da legalidade penal, do contraditório, da presunção de inocência, da proibição da reformatio in pejus e o dever legal de fundamentação, nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, 26.º, 65.º, 67.º, todos da CRA, bem como do artigo 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE POR NÃO SE CONSTATAR NO ACÓRDÃO RECORRIDO QUALQUER OFENSA A PRINCÍPIOS OU VIOLAÇÕES A DIREITOS CONSTITUCIONALMENTE CONSAGRADOS.
Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 9 de Outubro de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente e Relatora)
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Lucas Manuel João Quilundo
Vitorino Domingos Hossi