Loading…
TC > Jurisprudência > Acórdãos > ACÓRDÃO N.º1014/2024

ACÓRDÃO N.º 1014/2025

 

PROCESSO N.º 1253-A/2025

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 

I.  RELATÓRIO
Cabinda Gulf Oil Company, Limited – Sucursal de Angola, com os demais sinais de identificação nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão n.º 15/24, de 15 de Maio de 2024, prolactado pela Câmara do Trabalho do Tribunal da Relação de Luanda, que não conheceu do recurso de apelação por ter situado o valor da causa dentro do valor da alçada do Tribunal a quo. 
Inconformada, a Recorrente apresenta, em síntese, as seguintes conclusões das alegações:
1. Na Decisão recorrida o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, violou ostensivamente normas e princípios fundamentais consagrados na CRA, designadamente, os princípios constitucionais de protecção do direito ao recurso e a tutela jurisdicional efectiva, do direito a julgamento justo e conforme a lei, previstos nos artigos 29.º, 57.º, n.ºs 1 e 6 e 72.º da CRA. 
2. A questão que se coloca nos presentes autos é de que o n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 5-A/21 determina a aplicação retroactiva do regime da admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas aos processos iniciados antes da sua entrada em vigor e por via disso torna irrecorrível a decisão proferida num processo iniciado ao abrigo de uma lei cujo valor da alçada permitia a recorribilidade da decisão tendo em conta o valor da acção que lhe foi fixado.  
3. À data da propositura dos presentes autos, 23 de Agosto de 2002, a matéria concernente à alçada da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial era regulada pelo disposto no n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 22-B/92, de 9 de Setembro, o qual dispunha que “a alçada da Sala do Trabalho em matéria da sua competência é Kz1 500 000,00 (um milhão e quinhentos mil Novos Kwanzas) e o valor da causa fixado na petição inicial- Kz 21 000,00”, admitia recurso ordinário porque excedia a alçada do Tribunal a quo, fixado em Novos Kwanzas 1 500 000,00. 
4. A aplicação (retroactiva) ao caso em apreço nos autos do regime da admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas previstas no citado n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 5-A/21 impede a Recorrente de exercer um direito e uma garantia de defesa consagrada na CRA.
5. No Acórdão n.º 405/2016, este Tribunal Constitucional firma o entendimento de que “decorre da essência do Estado de direito, não apenas a supremacia da Constituição, como a interpretação conforme a Constituição, o que implica o afastamento de normas em desconformidade com a mesma quer em sentido formal, quer em sentido material”. Daí que não seja permitido a aplicação de normas e interpretação limitativas dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.
6. Trata-se de uma questão constitucionalmente protegida (o direito ao recurso) que não pode ser prejudicada por disposições processuais uma vez que a aplicação suplectiva do Código do Processo Civil e legislação complementar em sede do Direito Constitucional deve obediência ao princípio da adequação funcional.
7. A aplicação ao caso em apreço nos autos do regime da admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas previsto no citado n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 5- A/21, é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 57.º, n.º 1, 67.º, n.ºs 1 e 6, 72.º, e 29.º n.º1, todos da CRA, porque impõe restrições contrárias a lei, desnecessárias, desproporcionais e irrazoável ao exercício do direito ao recurso pela Recorrente, viola ostensivamente o direito ao acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva e, de modo algum, se insere num Estado livre e democrático. 
Termina peticionando que deve ser dado inteiro provimento ao presente recurso e, por via dele, revogar-se o Acórdão recorrido por estar desconforme com a CRA, designadamente, por violação dos princípios constitucionais de protecção de direito ao recurso e tutela jurisdicional efectiva, do direito a julgamento justo e conforme a lei, previstos nos artigos 29.º, 57.º, 67.º, n.ºs 1 e 6, e 72.º, todos da CRA, como é de inteira justiça. 
O processo foi à vista do Ministério Público que pugnou pelo não provimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II.  COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC). Esta compentência está igualmente prevista na alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III.  LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC e do n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
A Recorrente é parte vencida no Processo n.º 85/23-B, que indeferiu o recurso interposto para Relação de Luanda e tem interesse directo que a causa seja apreciada pelo Tribunal Constitucional. Assim sendo, tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
IV.  OBJECTO
O presente recurso tem por objecto a decisão proferida pela Câmara do Trabalho do Tribunal da Relação de Luanda no âmbito do processo n.º 85/23-B, pelo que emerge verificar se esta ofendeu, ou não, princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição da República de Angola (CRA).
 
V.  APRECIANDO
Questão Prévia  
A declaração de inconstitucionalidade peticionada a este Tribunal, tem subjacente o Acórdão n.º 15/24, de 15 de Maio de 2024, prolactado pela Câmara do Trabalho do Tribunal da Relação de Luanda, na sequência da rejeição de um recurso de apelação interposto pela ora Recorrente, porque inconformada com o Despacho Saneador Sentença exarado pelo Tribunal da Comarca de Belas. 
A análise dos autos revela que o valor da acção foi fixado no requerimento inicial, datado de 23 de Agosto de 2002, em Kz 21 000,00 (vinte um mil kwanzas), conforme consta a fls. 2-4. O recurso de apelação foi interposto aos 14 de Fevereiro de 2023, já sob a vigência da Lei n.º 5-A/21, de 06 de Março, que estabelece a alçada dos Tribunais de Comarca, em matéria cível, no montante de Kz 3 080 000,00 (três milhões e oitenta mil kwanzas).
Tendo por base o regime legal então vigente, o Tribunal recorrido fundando-se no disposto no n.º 1 do artigo 678.º do Código do Processo Civil (CPC), segundo o qual apenas é admissível o recurso ordinário das decisões proferidas em causas cujo valor exceda a alçada do tribunal de que se recorre, considerou ausente o requisito de recorribilidade, rejeitando o recurso por entender que o valor da acção se encontrava aquém da alçada legalmente fixada para o Tribunal de 1.ª instância. 
Todavia, a Recorrente alega, no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, que a aplicação retroactiva do regime de alçadas consagrado no artigo 2.º, n.º 3, da Lei n.º 5-A/21, configura restrição desproporcional, irrazoável e inconstitucional ao exercício do direito ao recurso, violando os princípios constitucionais do acesso à justiça, da tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme a lei, consagrados no n.º 1 do artigo 29.º e no artigo 72.º, ambos da CRA.
Importa referir, desde logo, que a controvérsia não reside na admissibilidade de a legislação infraconstitucional estabelecer limitações ao princípio da recorribilidade universal das decisões judiciais — ponto este que a própria Recorrente reconhece em suas alegações. O argumento central incide sobre a aplicação do regime actual de alçadas a processos instaurados sob a égide de legislação anterior, em especial quanto à norma do n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 5-A/21, que dispõe:
“A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei vigente à data da interposição do recurso, excepto quando se trate de causas relativas a bens imóveis, que deverão ser reguladas pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção.”
Segundo a Recorrente, ao aplicar esta norma ao caso concreto, o Tribunal recorrido incorreu em erro de direito, ao desconsiderar o valor da acção à data da sua propositura, fazendo incidir retroactivamente os efeitos da nova lei, o que, na sua óptica, configura afronta a direitos constitucionalmente protegidos.
Contudo, cumpre delimitar que o presente recurso visa a apreciação da constitucionalidade de actos jurisdicionais e não a de normas em abstrato, conforme resulta dos artigos 36.º e seguintes da LPC. Assim, a questão da eventual inconstitucionalidade da norma referida deverá ser objecto de outra modalidade de fiscalização, distinta da que ora se aprecia.
Sem prejuízo, importa salientar o entendimento reiterado desta Corte, expresso, entre outros, no Acórdão n.º 901/24 (acessível em www.tribunalconstitucional.ao).
Partindo desta perspectiva e com base nos fundamentos do Acórdão supra citado, mutatis mutandis, a presente apreciação centrar-se-á em determinar se a Decisão judicial ora contestada, contém fundamentos de direito que de algum modo restrinjam, ou não, as garantias constitucionais reclamadas pela Recorrente.
Assim sendo, cumpre decidir se a inadmissibilidade do recurso interposto no Tribunal ad quem, postula a invocada violação conjunta das garantias constitucionais: (i) do direito ao recurso (ii) da tutela jurisdicional efetiva; e (iii)do direito a um julgamento justo e conforme a lei;
a) Sobre a alegada violação do direito ao recurso, do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, e do direito a um julgamento justo e conforme a lei
Como suficientemente ilustram os autos, a instância precedente considerou definitivamente fixado o valor da acção indicado no requerimento inicial, isto de acordo aos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 315.º do CPC, na circunstância do referido valor não ter sido validamente alterado nem impugnado pelas partes no Tribunal a quo. 
Retira-se da fundamentação vertida no Acórdão ora escrutinado que “este valor pode ser impugnado tempestivamente pela parte interessada que não concorde com o mesmo, no respectivo incidente, devendo a parte indicar no acto outro valor, sob pena de precludir o seu direito, não podendo mais invocá-lo (316.º do CPC)”. Soma ao referido argumento, que o valor relevante para a relação da alçada com o recurso é o inicialmente fixado e não o da utilidade económica do objecto do recurso, sendo este valor imutável e que “somente ao tribunal de 1.ª instância compete fixá-lo, estando vedado esta prerrogativa aos tribunais de recurso”.
Acerca da supracitada regra, Salvador Costa assinala que, “se o juiz omitir a referida fixação do valor da causa, designadamente no despacho de interposição de recurso, propende-se a considerar que o relator do tribunal ad quem deve ordenar a devolução ao tribunal a quo a fim de se suprir aquela omissão (…). É uma solução que se conforma com as regras processuais de competência e do processo equitativo, que não comportam a substituição do juiz da acção pelo relator no recurso na fixação do valor da causa” (Os Incidentes da Instância, 12.ª ed., Almedina, 2023, p. 60).
Neste sentido, recentemente decidiu esta Corte Constitucional, precisamente no Acórdão n.º 998/2025, no âmbito do Processo n.º 1217-A/2024, que “o regime regra, não é o da fixação automática do valor da causa pelo tribunal, como pretende fazer crer a Recorrente. Na verdade, quando a petição não contenha a indicação do valor, o autor deve ser convidado para suprir esta irregularidade, logo que seja notada, sob pena de extinção da instância que se acaba de principiar. 
Usada a faculdade supra referida, é notificada a parte contrária, para querendo, impugnar o valor declarado, ao que se esta nada disser, considera-se o valor assente por acordo, salvo se o juiz entender que tal acordo nota-se desproporcional com a utilidade económica imediata do pedido, porque se assim for, socorre-se do poder que lhe é atribuído, ou seja, fixa o valor que considera adequado e só nestes casos é que deve usa-lo e não conforme a pretensão da Recorrente, de entender que o tribunal pode fixar valor da acção, sem antes convidar as partes para o fazerem. (artigo 314.º e 315.º, ambos do CPC)”. Acórdão acessível em www.tribunalconstitucional.ao. 
Não obstante, ao cotejar o presente caso, importa assinalar que não se verifica qualquer controvérsia quanto à omissão, por parte do autor, da indicação do valor da causa, tampouco quanto à eventual impugnação desse valor pela parte adversa, ora Recorrente. Assim sendo, considera-se que o valor da causa foi fixado por acordo tácito entre as partes, circunstância que, à luz do actual estágio do nosso ordenamento jurídico, obsta a intervenção oficiosa do juiz para a sua definição. Com maior razão, revela-se inadmissível o exercício dessa faculdade pelo Tribunal ad quem.
Aqui chegados, cumpre reafirmar que a admissibilidade dos recursos, para efeitos de alçada, deve ser aferida com base na legislação vigente à data da sua interposição, salvo nos casos expressamente previstos na lei – o que não se verifica na hipótese em apreço. Deste modo, considerando que o recurso ordinário foi interposto em 14 de Fevereiro de 2023, altura em que as alçadas dos Tribunais de Comarca se encontravam legalmente fixadas em Kz 3 080 000,00 (três milhões e oitenta mil kwanzas), e mantendo-se inalterado o valor da causa, mostra-se juridicamente fundada a Decisão de irrecorribilidade proferida pelo Tribunal ad quem, a qual assentou na correcta aplicação dos parâmetros legais então vigentes. (vide: Tomás Timbane, Lições de Processo Civil I, 2020, 2.ª ed., Escolar Editora, pp 145 e 154. António Jolima José, Os Labirintos do Direito Processual Civil, 2021, 2.ª ed., Coimbra Editora, p. 31.) 
Sob essa perspectiva, dispõe o n.º 2 do artigo 6.º da CRA que “o Estado subordina – se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”. Por seu turno, as decisões judiciais devem expressar, em si mesmas, a conformidade com a legalidade formal, mas também a realização da justiça material, uma vez que aos Tribunais, enquanto órgãos de soberania – incumbe garantir a aplicação efectiva do Direito, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 177.º da lei fundamental.
Importa, pois, reiterar que o direito de acesso à jurisdição, consagrado no artigo 29.º da CRA, compreende a garantia de tutela jurisdicional efectiva e de um julgamento justo e conforme. Tal direito fundamental somente pode ser restringido por expressa previsão legal, observando-se os limites constitucionais de admissibilidade. No caso em apreço, a restrição imposta encontra respaldo em norma legal especifica, não se configurando, por isso, como violadora do referido preceito constitucional.  
Nesta linha de raciocínio, a rejeição do recurso de apelação nos termos operados, não impôs restrições contrárias a lei, que se devam considerar desnecessárias, desproporcionais e irrazoável, por conseguinte não materializando a violação da garantia do direito fundamental ao recurso, e aos princípios da tutela jurisdicional efetiva e do julgamento justo e conforme a lei.
b) Sobre o dever de obediência ao princípio da adequação funcional.
A Recorrente sustenta que a aplicação supletiva do CPC ao processo constitucional deveria observar o princípio da adequação funcional. De facto, a aplicação subsidiária de normas processuais exige compatibilidade teleológica e estrutural, sendo o princípio da adequação funcional fundamental nesse juízo.
Contudo, no caso concreto, a rejeição do recurso não decorreu da aplicação supletiva de normas incompatíveis, mas sim da aplicação directa da legislação ordinária pertinente ao processo laboral. O modelo procedimental laboral, por sua natureza simplificada, justifica a limitação da recorribilidade com fundamento em critérios objectivos, como o valor da causa, visando à celeridade e eficiência da prestação jurisdicional.
Nesta perspetiva, a invocação do princípio da interpretação conforme à Constituição não se mostra suficiente para infirmar a legalidade e constitucionalidade da decisão, uma vez que não se demonstrou qualquer violação manifesta dos parâmetros constitucionais.
A jurisprudência citada pela Recorrente, designadamente o Acórdão n.º 405/2016, não se aplica ao caso concreto, por versar sobre hipóteses distintas, não sendo idónea para fundamentar a pretendida declaração de inconstitucionalidade.
Em face do exposto, e não se verificando qualquer afronta aos preceitos constitucionais invocados, considera-se que a Decisão recorrida foi proferida em estrita conformidade com os parâmetros legais e constitucionais vigentes, inexistindo qualquer vício de inconstitucionalidade
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, EM VIRTUDE DO ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO TER OFENDIDO PRINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. 
Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 7 de Agosto de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente) 
Amélia Augusto Varela 
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo 
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Lucas Manuel João Quilundo
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva (Relatora)