ACÓRDÃO N.º 1003/2025
PROCESSO N.º 1297-A/2025
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (Habeas Corpus)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Daniel Numbo Muenho, melhor identificado nos autos, veio a este Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 41.º e da alínea a) do artigo 49.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Despacho do Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Benguela, prolactado a 6 de Fevereiro de 2025, no Processo n.º 08/2025, que indeferiu a providência de habeas corpus com fundamento na legalidade da prisão do Recorrente.
Por não se ter conformado com a Decisão, o Recorrente interpôs o presente recurso tendo em síntese, alegado o seguinte:
1. O Despacho recorrido não demonstra de forma objectiva o perigo invocado, ofendendo assim o princípio da legalidade, na medida em que a Constituição e a lei exigem a demonstração do perigo de perturbação da paz e ordem pública para a aplicação da prisão preventiva.
2. Não basta apenas invocar o pressuposto da alínea c) do artigo 263.º do Código de Processo Penal Angolano (CPPA) mas também comprovar de forma objectiva um real perigo de perturbação da paz e ordem pública.
3. O referido pressuposto foi invocado de forma imaginária, violando deste modo o princípio da legalidade ínsito no n.º 2 do artigo 2.º, n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 6.º, n.º 1 do artigo 22.º, artigo 23.º, n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 23.º, n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 26.º, artigo 28.º, n.º 2 do artigo 36.º, n.º 2 do artigo 56.º, n.º 1 do artigo 57.º, n.º 1 do artigo 64.º, n.º 4 do artigo 65.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 67.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA), bem como a alínea f) do n.º 4 do artigo 290.º do CPPA.
4. O Despacho recorrido não mostra de que modo iria ocorrer o perigo sem recurso a arma, uma vez que a mesma se encontra sob controlo do Estado e sendo assim, inexiste perigo, ou seja, o perigo se afasta.
5. Goza de presunção de inocência até ao trânsito em julgado nos termos do n.º 2 do artigo 67.º da CRA, como pressuposto para beneficiar de uma medida menos gravosa, visto que a prisão preventiva é uma excepção e não uma forma de punir e muito menos uma condenação antecipada.
Termina requerendo que seja declarada a inconstitucionalidade do Despacho recorrido, dando-se provimento à presente providência e em consequência seja restituido à liberdade, nos termos do artigo 68.º da CRA e n.º 1 do artigo 284.º do CPPA.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do parágrafo único do artigo 49.º da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, dispõem de legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
O Recorrente foi parte do Processo n.º 08/25, que tramitou junto do Tribunal da Relação de Benguela, não se conformando com a Decisão prolactada, tem, pois, legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
IV. OBJECTO
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem por objecto verificar se a Decisão proferida pelo Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Benguela, em sede do Processo n.º 08/25, que indeferiu a providência extraordinária de habeas corpus, ofendeu e ou violou princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados.
V. APRECIANDO
O presente recurso foi interposto da Decisão proferida pelo Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Benguela, em sede do Processo n.º 08/25, que negou provimento à providência de habeas corpus requerida pelo Recorrente.
Decorre dos autos que o Recorrente foi detido em flagrante delito no dia 25 de Dezembro de 2024, tendo a prisão preventiva sido formalizada pelo Juiz de Garantias no dia 2 de Janeiro de 2025 e acusado pelo Ministério Público no dia 22 de Abril de 2025, dentro do prazo legal de 4 meses, previsto do artigo 283.º do CPPA, por existirem fortes indícios da prática dos crimes de detenção de arma e munições proibidas e associação criminosa, previstos e puníveis pelo n.º 1 do artigo 279.º e artigo 25.º, ambos do Código Penal Angolano (CPA), tendo os autos sido introduzidos em juízo no dia 5 de Maio de 2025.
Entretanto, por entender que a sua conduta não representa risco à ordem pública nem à instrução do processo penal, o Recorrente invocou a inexistência de pressupostos que justifiquem a manutenção da medida de coacção mais gravosa, razão pela qual, intentou uma providência cautelar junto do Tribunal da Comarca de Benguela, visando a sua libertação, sem, contudo, lograr êxito.
Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Benguela, que, igualmente, negou provimento à pretensão, sustentando que a medida privativa de liberdade havia sido decretada dentro dos prazos legais e em consonância com os requisitos previstos no artigo 263.º do CPPA.
Irresignado, veio ao Tribunal Constitucional, interpor recurso da providência requerida, entretanto, negada pelo Tribunal da Relação de Benguela.
Veja-se, pois, se lhe assiste razão;
O habeas corpus é uma providência com dignidade constitucional consagrada na Constituição da República de Angola e do ponto de vista processual traduz-se num mecanismo excepcional, contra situações anómalas de privação de liberdade, consubstanciadas no abuso de poder perpetrado por órgãos do Estado, através da imposição de prisão ou detenção ilegal de qualquer cidadão, e tem por finalidade a reposição da legalidade mediante uma decisão tuteladora do direito fundamental à liberdade física ou de locomoção dos cidadãos.
Nos termos do artigo 68.º da CRA, o interessado pode requerer, perante o Tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de detenção ou prisão ilegal. A referida providência é o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais do cidadão.
A interposição da providência de habeas corpus, todavia, deve ser fundamentada e só é possível desde que verificados os pressupostos previstos no n.º 4 do artigo 290.º do CPPA, nomeadamente “Ser a prisão ou detenção efectuada sem mandado da autoridade competente; Estar excedido o prazo para entrega do arguido detido ou preso preventivamente ao magistrado competente para a validação da detenção ou prisão preventiva; Manter-se a privação da liberdade para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial; Manter-se a privação da liberdade fora dos locais para este efeito autorizados por lei; Ter sido a privação da liberdade ordenada ou efectuada por entidade incompetente; Haver violação dos pressupostos e das condições da aplicação da prisão preventiva”.
É o legislador processual penal que indica os prazos máximos da prisão preventiva de modo a salvaguardar as designadas garantias constitucionais do arguido em processo penal, bem como, garantir o princípio da celeridade processual e fá-lo mediante a definição de prazos mínimos e máximos de prisão preventiva, que variam de 4 meses a 18 meses (n.º 1 do artigo 283.º CPPA).
Os referidos prazos podem ser alargados, desde que fundamentado, para 6 meses, 8 meses, 14 meses e até ao prazo de 20 meses, em função da qualidade ou gravidade do crime ou crimes em causa, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão superior a 5 anos ou nos processos que se revestem de especial complexidade (…), do carácter violento ou organizado do crime e do particular circunstancialismo em que foi cometido (n.º 2 do artigo 283.º do CPPA).
No caso sub judice, embora o Recorrente em sede das suas alegações, apresente fundamentos para sustentar o seu pedido à providência de habeas corpus legalmente prevista, na realidade, discorda dos fundamentos do Juiz de Garantias que considerou preenchidos os requisitos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 263.º do CPPA, tendo o Tribunal da Relação sufragado aquele Despacho somente em relação a alínea c) do mesmo artigo.
De facto, no Despacho do Juiz Desembargador Presidente, aqui em crise, é utilizada a expressão “não convence” por, no entender do mesmo, não estarem reunidos para o caso, os pressupostos das alíneas, a) e b) do artigo 263.º do CPPA, mas tão somente, o pressuposto estabelecido na alínea c) do mesmo artigo, pelo que entende que a manutenção da prisão preventiva é legal.
Ora;
A pretensão do Recorrente consiste em saber se, o conteúdo do Despacho recorrido ao ter utilizado a expressão, “não convence” padece de contradições internas e, consequentemente, se configura numa violação ao princípio da legalidade.
Será assim?
A interpretação que é dada pelo Recorrente à expressão “não convence”, de modo algum pode sugerir alguma contradição, pelo contrário, enquanto Juiz Presidente do Tribunal de recurso, àquele, não está vinculado, in totum à fundamentação do Juiz de Garantias, podendo dele discordar parcialmente, sem com isso estar em contradição. Aliás, ao afastar-se da fundamentação relativa aos pressupostos das alíneas a) e b), não se afasta da fundamentação da alínea c), do mesmo Despacho, pelo que não fica demonstrado, por isso, qualquer contraditio in terminis.
Destarte, importa recordar que a fundamentação quanto à necessidade de requisitos cumulativos refere-se à exigência da verificação conjunta do fumus commissi delicti e do periculum libertatis. Ou seja, impõem-se, por um lado, a existência de indícios suficientes da prática de um crime, bem como a imputação, ainda que provisória, da sua autoria ao arguido; e, por outro lado, a demonstração de que a manutenção da liberdade do suspeito representa um risco concreto para o processo, nos termos previstos no artigo 263.º do CPPA.
Sublinha-se, ainda, que, para o preenchimento do segundo requisito, o periculum libertatis, basta a verificação de um dos três fundamentos previstos na referida norma, não sendo exigida a sua verificação cumulativa.
Neste sentido, considera este Tribunal que o Recorrente incorre em manifesta imprecisão interpretativa ao sustentar que os pressupostos previstos no artigo 263.º do CPPA devem ser observados cumulativamente e que o Despacho ora colocado em crise se afigura contraditório. Uma leitura sistemática e conforme ao princípio da legalidade permite concluir que o legislador não exige, em nenhum momento do corpo normativo, a verificação conjunta de todos os fundamentos ali enunciados.
Com efeito, basta a verificação de apenas um dos pressupostos ali referenciados, para que a prisão preventiva seja legalmente admissível. Exigir a simultaneidade dos requisitos, importaria introduzir restricções à actuação jurisdicional não previstas na letra da lei, contrariando, deste modo, o princípio da reserva legal em matéria de direitos fundamentais. E, conforme asseveram Manuel Simas Santos e João Simas Santos, “qualquer destas condições – acentue-se – deve ser devidamente fundamentada em factos concretos, não em meras suposições ou presunções, devendo o juiz justificar devidamente a verificação da condição e não limitar-se a invocá-la” (Direito Processual Penal de Angola, Letras e Conceitos, 2022, p. 328).
Com efeito, basta a verificação de apenas um dos pressupostos ali referenciados, para que a prisão preventiva seja legalmente admissível. Exigir a simultaneidade dos requisitos, importaria introduzir restricções à actuação jurisdicional não previstas na letra da lei, contrariando, deste modo, o princípio da reserva legal em matéria de direitos fundamentais. E, conforme asseveram Manuel Simas Santos e João Simas Santos “qualquer destas condições – acentue-se – deve ser devidamente fundamentada em factos concretos, não em meras suposições ou presunções, devendo o juiz justificar devidamente a verificação da condição e não limitar-se a invocá-la” (Direito Processual Penal de Angola, Letras e Conceitos, 2022, p. 328).
De resto, não compete a este Tribunal adentrar no exame da suficiência da fundamentação ou no mérito do Despacho ora impugnado, uma vez que, nos termos da natureza própria do habeas corpus, esta via é reservada exclusivamente à análise de eventuais ilegalidades ou abusos no cerceamento da liberdade, observando se os pressupostos positivos e negativos, bem como se as condições para o decretamento da prisão preventiva se verificam, conforme artigos 279.º e 280.º, ambos do CPPA.
Com efeito, este exercício de observação deve ser auxiliado pela ponderabilidade segundo os princípios da legalidade, necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade, como estabelecem aos artigos 261.º e 262.º, ambos do CPPA, para aferir se o direito à liberdade ficou ou não ilegalmente restringido ou condicionado.
Assim, limita-se esta Corte a verificar se houve violação ao direito de locomoção do Recorrente, isto é, de ir e vir, não lhe cabendo reavaliar juízos de valor ou critérios técnico-jurídicos utilizados pela instância originária.
Em conclusão e conforme resulta dos autos, o Recorrente foi detido aos 2 de Janeiro de 2025, e deduzida acusação, a 22 de Abril de 2025, decorrendo, assim, um período de três meses, portanto, dentro do prazo legal previsto no artigo 283.º do CPPA, pelo que a prisão se mantém dentro da legalidade.
Em face do exposto o Tribunal Constitucional considera que não se verificou ofensa de princípios nem a violação de direitos, liberdades e garantias no Despacho recorrido.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO POR NÃO SE VERIFICAR NO DESPACHO RECORRIDO QUALQUER INCONSTITUCIONALIDADE.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 24 de Junho de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Amélia Augusto Varela
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo
Gilberto de Faria Magalhães (Relator)
João Carlos António Paulino
Lucas Manuel João Quilundo
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva