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ACÓRDÃO N.º 1008/2025
PROCESSO N.º 1267-C/2025
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade 
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I.  RELATÓRIO
Isabel Jepele e Sabino Inaculo, com os melhores sinais de identificação nos autos do Processo supra cotado, vieram a esta Corte Constitucional, ao abrigo da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2955/2018, que alterou a Decisão do Tribunal de primeira instância, condenando-os na pena de 7 anos de prisão, pelo crime de peculato.
Irresignados com o Acórdão prolactado e precedentemente referenciado, recorreram para esta Corte, onde apresentaram alegações, nos termos do disposto no artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional e deduziram, em síntese, o que infra se arrola:
Isabel Jepele,
 
1. A Decisão recorrida ofendeu os princípios da legalidade, da verdade material e do in dubio pro reo ao fazer uma errada qualificação jurídica dos factos ocorridos e o seu confronto com as normas mobilizadas para as sustentar, uma vez que não existe apoio factual na matéria de facto provada e não se complementam os elementos do tipo para imputar à Recorrente o crime de peculato, visto que a sua fundamentação careceu de um aturado exercício legal e jurisprudencial como é legalmente exigível.
2. O facto de terem sido os dois arguidos, ora Recorrentes, condenados na mesma pena e o Aresto recorrido ter, igualmente, confirmado o pagamento solidário de uma indeminização ao Estado angolano, sem especificar o quantum indemnizatório cabível a cada um dos co-arguidos, isto é, por não ter procedido a uma verdadeira separação de culpas e determinação concreta violou clara e inequivocamente os princípios da igualdade, da legalidade, do processo justo e equitativo.
3. Foram igualmente violados os princípios da irreversibilidade das amnistias, ao terem sido ignoradas as Leis n.ºs 11/16, de 12 de Agosto e 35/22, de 23 de Dezembro, cujas disposições amnistiam os crimes desta natureza ou as reduzam em ¼ e o da proibição da auto-incriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), ao ter sido obrigada a contribuir para a sua condenação, carreando para o processo, meios de prova que a incriminam, prejudicando amplamente a sua defesa.
4. A decisão recorrida viola ainda os princípios da presunção da inocência e o direito à imagem, pelo facto de a Recorrente ter visto serem captadas e exibidas as suas imagens, num momento em que já havia interposto recurso com efeito suspensivo.
Termina peticionando que seja concedido total provimento ao presente recurso por ofensa aos princípios da legalidade, da igualdade, da verdade material, do in dubio pro reo, do processo justo e equitativo, da separação de culpas, da pessoalização e intransmissibilidade da responsabilidade penal, da presunção da inocência e do direito à imagem, da proibição da auto incriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), da vinculação efectiva, da irreversibilidade das amnistias, do direito ao julgamento justo e conforme e da prescrição.
Sabino Inaculo, 
1. O Aresto recorrido ofende os princípios da legalidade e do in dubio pro reo, visto que não se fez prova durante o julgamento em primeira instância de que as acusações feitas pela co-arguida Isabel Jepele tinham algum fundamento, porque não foi determinada em concreto qual o grau de culpabilidade de cada um dos agentes, pelo que por falta de provas o Recorrente deveria ter sido absolvido.
2. Houve violação do direito à liberdade pelo facto do Recorrente ter sido detido sem que houvesse fortes indícios do cometimento de algum crime, sendo que foi condenado por analogia ou indução por paridade o que fere gravemente o princípio da interpretação e integração da lei penal, na medida em que a liberdade é regra e a sua privação, a excepção, o que ofende igualmente os princípios da legalidade, da presunção da inocência e do in dubio pro reo.
3. Verificou-se a violação do direito a um julgamento justo (artigo 72.º e 174.º da CRA) porque o Recorrente não teve acesso a um processo justo e equitativo, pois não foi garantido o contraditório de forma plena, e a sentença não se baseou em apreciação objectiva das provas, mas sim, em convicções infundadas do julgador.
4. Houve ofensa ao princípio da igualdade (artigo 23.º da CRA), na medida em que na condução do processo o Recorrente foi tratado de maneira distinta e desfavorável em comparação a outros casos análogos, em que se exigia a produção de prova concreta para que se verificasse a condenação.
5. Não há nos autos, quaisquer indícios que relacionam o Recorrente Sabino Inaculo e a co-arguida Isabel Jepele, configurando uma violação grave ao princípio da legalidade, previsto no n.º 2 do artigo 6.º da Constituição da República de Angola, bem como o princípio de presunção da inocência, artigo 67.º do mesmo diploma legal, na medida em que foi o arguido condenado sob um juízo de suspeita e não com provas em que se baseou a decisão.
Termina deprecando que se declare a inconstitucionalidade da decisão proferida pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, por violação dos artigos 6.º, 23.º, 67.º, 72.º e 174.º, todos da Constituição da República de Angola e com efeito seja anulada a condenação imposta ao Recorrente, com todas as consequências legais daí resultantes.
O Processo foi à vista do Ministério Público que em conclusão pugnou pelo provimento do recurso por entender que o Tribunal Supremo inobservou o dever legal de redução de ¼ na pena aplicada aos Recorrentes, a que estava obrigado pela Lei da amnistia.
Colhidos os vistos legais dos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir, já que nada a tal obsta.
II.  COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto com fundamento na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”. 
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, pelo que dispõe o Tribunal Constitucional de competência para apreciar o presente recurso.
II.  LEGITIMIDADE
A legitimidade para a interposição de um recurso extraordinário de inconstitucionalidade cabe, no caso de sentença, à pessoa que, em harmonia com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, possa dela interpor recurso ordinário, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC.
No caso sub judice, os ora Recorrentes, enquanto parte no Processo n.º 2955/2018, não viram a sua pretensão atendida, pelo que dispõem de legitimidade para recorrerem do Acórdão que alterou a decisão do Tribunal de primeira instância, condenando-os na pena de 7 anos de prisão pelo crime de peculato. 
IV.  OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é o Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, datado de 21 de Março de 2024, no âmbito do Processo n.º 2955/2018, competindo ao Tribunal Constitucional apreciar se o mesmo ofendeu os princípios da legalidade, da verdade material, do in dubio pro reo, da igualdade, da irreversibilidade das amnistias, da proibição da auto-incriminação, da presunção da inocência, da separação de culpas, da pessoalização e intransmissibilidade da responsabilidade penal, da vinculação efectiva,  bem como se violou o direito à liberdade, o direito ao julgamento justo e conforme e o direito à imagem, todos consagrados na Constituição da República de Angola.
V.  APRECIANDO
É submetida à apreciação do Tribunal Constitucional, o Acórdão prolactado pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2955/2018, que ao alterar a decisão do Tribunal de primeira instância, condenou os Recorrentes na pena de 7 anos de prisão pelo crime de peculato. 
No presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, os Recorrentes requerem a intervenção do Tribunal Constitucional, por entenderem que o Acórdão recorrido ofendeu os princípios da legalidade, da verdade material, do in dubio pro reo, da igualdade, da irreversibilidade das amnistias, da proibição da auto-incriminação, da presunção da inocência, da separação de culpas, da pessoalização e intransmissibilidade da responsabilidade penal, da vinculação efectiva, bem como violou o direito à liberdade, o direito ao julgamento justo e conforme e o direito à imagem, todos consagrados na Constituição da República de Angola.
Em linhas gerais, retira-se das alegações dos Recorrentes a ideia de que impetraram um recurso extraordinário de inconstitucionalidade por terem sido condenados de forma injusta sem que as provas carreadas ao processo demonstrassem o cometimento de quaisquer crimes por parte destes e que, por outro lado, não foram tratados de forma igual em relação aos demais co-arguidos, e que, ainda que assim não fosse, o procedimento criminal seria nulo por prescrição e, finalmente, quando muito, deveriam ter visto as suas penas reduzidas em ¼ da respectiva duração.
Veja-se, pois, se assistir-lhes-á razão face às alegadas ofensas aos princípios e violação aos direitos invocados.
Ab initio, é de referir que os Recorrentes foram julgados em primeira instância pelo então Tribunal Provincial do Huambo e condenados em co-autoria material no crime de peculato, pelo facto de serem funcionários públicos afectos ao Ministério das Finanças, nos termos dos artigos 313.º, 421.º n.º 5 e 437.º, todos do Código Penal de 1886, vigente à data dos factos, na pena de 12 anos de prisão maior, no pagamento de Kz 80 000,00 (oitenta mil kwanzas) de taxa de justiça e, em regime de solidariedade, a depositarem na Conta Única do Tesouro, a título de indemnização, a quantia de Kz 25 314 607,00 (vinte e cinco milhões, trezentos e catorze mil e seiscentos e sete kwanzas).
Inconformados, interpuseram recurso ordinário junto da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que em Acórdão proferido pela 1.ª Secção daquele órgão, no âmbito do Processo n.º 2955/2018, procedeu a alteração da decisão do Tribunal de primeira instância, tendo condenado os aqui Recorrentes na pena de 7 anos de prisão pelo crime de peculato e, no mais, confirmou a Decisão recorrida.
Nesta perspectiva, vale ressaltar que na análise do presente recurso não se procederá a uma reapreciação do processo julgado em recurso ordinário junto do Tribunal Supremo, tal como se infere da pretensão dos Recorrentes, tendo em vista que esta Corte Constitucional tem vários precedentes em que se sustenta que a finalidade do recurso extraordinário de inconstitucionalidade não visa o reexame do mérito da causa.
À guisa de exemplo, no Acórdão n.º 1000/2025, de 4 de Junho, pontificou-se que “(…) no recurso extraordinário de inconstitucionalidade não se procede a uma reapreciação da causa, mas apenas a título extraordinário, verifica-se a conformidade da Decisão recorrida com os princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição, pelo que, no caso em apreço, cabe a este Tribunal tão-somente verificar se a mesma está ou não em conformidade com a Magna Carta e não se debruçar sobre cada aspecto do processo sub examine”.
Ainda nesta lógica, são de sinalizar, entre outros, os Acórdãos n.ºs 971/2025, de 12 de Março, 906-A/2024 de 3 de Outubro, 909/2024, de 10 de Setembro, 906/2024, de 7 de Agosto, 898/2024, de 2 de Julho, 886/2024, de 14 de Maio, 974/2023, de 13 de Março, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao.
Diante dessas considerações, cabe salientar que proceder-se-á a uma análise conjunta dos princípios e direitos evocados por uma questão de conexão entre as preocupações levantadas por ambos Recorrentes. 
Apesar de se acusarem mutuamente sobre a prática do crime, constata-se que o cerne dos argumentos apresentados, por ambos, consistem em verificar se na prolacção do Acórdão recorrido foram ou não devidamente valoradas as provas em conformidade com os critérios legais e se as normas jurídicas foram ou não devidamente subsumidas aos factos.
Melius aestimanda, este Tribunal apreciará aquelas questões colocadas em referência ao Acórdão recorrido, objecto do presente recurso. 
1. Da alegada ofensa aos princípios da presunção da inocência, do in dubio pro reo, da proibição da auto-incriminação, da separação de culpas, da pessoalização e intransmissibilidade da responsabilidade penal e da irreversibilidade das amnistias
O princípio da presunção de inocência decorre no nosso ordenamento jurídico, da norma do n.º 2 do artigo 67.º da CRA, do artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de Dezembro de 1948 – DUDH, do n.º 2 do artigo 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1976 e da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, ex vi do artigo 26.º da CRA.
Umas das vertentes do princípio da presunção de inocência, é que este surge coligado com o princípio do in dubio pro reo, exprimindo a ideia segundo a qual o julgador deve valorar a prova produzida e decidir com base nela. O princípio do in dubio pro reo parte da premissa de que o Juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, ou seja, não pode abster-se de condenar ou de absolver, existindo uma obrigatoriedade da decisão, e determina que, na dúvida quanto ao sentido em que aponta a prova produzida, o arguido seja absolvido.
Ademais, parafraseando Claus Roxin e Bernd Schunemann há uma correspondência histórica entre o princípio da culpa e o princípio in dubio pro reo. Com efeito, ninguém pode ser condenado quando não há certeza de que o seu comportamento preenche um tipo criminal. Na dúvida, o arguido deve ser absolvido. (Derecho Procesal Penal, trad. de Mario Amoretti e Darío Rolón, 29.ª ed., Didot, 2019, p. 575).
Na mesma senda, Gomes Canotilho e Vital Moreira afirmam que “além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, i.e., num estado de conservação da incerteza quanto à prova do ilícito típico, não só ao réu incumbe invocar essa garantia a seu favor; o juiz, vinculado a tomar uma decisão, deve, conquanto que a título oficioso, pronunciar-se pela absolvição do arguido” (Constituição da República Portuguesa Anotada – Volume I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, p. 519).
Prosseguem os aludidos autores, apontando que “os princípios da presunção da inocência e in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena” (idem). 
Acerca do princípio da proibição da auto-incriminação, prescreve o artigo 63.º da CRA que “toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada, no momento da sua prisão ou detenção, das respectivas razões e dos seus direitos, nomeadamente: (…) g) - Não fazer confissões ou declarações contra si própria”.
Infere-se do Acórdão n.º 764/2022, de 3 de Agosto, desta Corte de Justiça Constitucional que o princípio da proibição da auto-incriminação, também conhecido como nemo tenetur se detegere, garante que ninguém pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo ou a testemunhar contra si próprio em um processo judicial. Dito de outro modo, ninguém pode ser coagido a confessar um crime ou a fornecer informações que possam incriminá-lo (disponível em www.tribunalconstitucional.ao).
Relativamente ao princípio da pessoalidade ou da intransmissibilidade da responsabilidade penal, este encontra-se estatuído no n.º 1 do artigo 65.º da CRA, segundo o qual “a responsabilidade penal é pessoal e intransmissível”.
Conclui-se desta norma que a Constituição da República de Angola não considera admissível a transmissão, quer das acções e omissões, quer da culpa, penalmente relevantes de uma pessoa para outra.
Ao debruçarem-se sobre o princípio da pessoalidade ou da intransmissibilidade da responsabilidade penal, Jorge Miranda e Rui Medeiros, elucidam que “uma das implicações deste princípio, resulta na impossibilidade de substituição ou transferência, por terceiro ʻou seja, que não o condenadoʼ no cumprimento ou na execução de uma pena – seja no caso de transmissão voluntária, seja naturalmente no caso da transmissão, legal ou forçosa, da responsabilidade penal ou sancionatória” (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 683).
O princípio da separação de culpas preconiza que cada comparticipante seja punido na medida da sua culpa, sendo esta aferida pela respectiva conduta, ou seja, pelo grau de envolvimento de cada um na actividade criminosa, segundo regras de equidade e proporcionalidade, contidas no n.º 4 do artigo 29.º da CRA e artigo 27.º do Código Penal.
Por seu turno, o princípio da irreversibilidade das amnistias, previsto no artigo 62.º da CRA, estabelece que os efeitos jurídicos dos actos de amnistia praticados ao abrigo de lei competente são considerados válidos e irrevogáveis. Isso significa que, uma vez concedida uma amnistia e produzidos seus efeitos, estes não podem ser desfeitos ou revogados, mesmo que a lei que a concedeu seja posteriormente alterada ou revogada.
Destarte, a amnistia, uma vez concedida e produzindo seus efeitos, não pode ser retirada ou anulada, garantindo a estabilidade jurídica e a confiança nas decisões judiciais e legislativas.
Decorre dos autos, a fls. 617 a 627 e verso, que o Tribunal Supremo valorou as provas produzidas e decidiu condenar os Recorrentes com base nelas, ou seja, estes não foram obrigados a produzir provas contra si mesmos, houve ligação entre a conduta dos Recorrentes e o dano causado ao Estado e apesar de terem sido condenados na mesma pena e no ressarcimento ao Estado de forma solidária, a responsabilidade de cada um deles ficou determinada e existiu um nexo de causalidade entre a acção, a culpa e o resultado danoso.
Por outro lado, e em abono da verdade, os mesmos não preenchiam os requisitos para a concessão de amnistia, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto – Lei da Amnistia.
À guisa de exemplo sublinhe-se que, no verso de fl. 626, o Tribunal Supremo teceu o seguinte comentário: “consta da matéria de facto provada e suficiente prova documental que nos conduzem à intenção dos arguidos em querer se apropriar ilicitamente de dinheiros públicos, tal como fizeram, pelo que temos de concluir que não há insuficiência da matéria de facto, porquanto, os factos integram os elementos do crime de peculato”.
Aqui chegados, não são de atender as alegações dos Recorrentes, haja vista, que da análise da Decisão recorrida, verifica-se que na sua fundamentação de facto e de direito, não se coloca em causa os princípios da presunção da inocência, do in dubio pro reo, da proibição da auto-incriminação, da separação de culpas, da pessoalização e intransmissibilidade da responsabilidade penal e o da irreversibilidade das amnistias.
2. Da alegada ofensa aos princípios da verdade material e da igualdade e da violação dos direitos à liberdade e à imagem.
A respeito do princípio da verdade material, afirma João António Raposo que este princípio, “decorre dos fins e das funções constitucionais do direito penal, na medida em que é condição indispensável de realização da finalidade de protecção de bens jurídicos fundamentais, que o Estado se compromete a assegurar, em última medida através do direito penal, que a decisão final se funde numa culpa efectivamente demonstrada, ou seja, a culpa tem que ser demonstrada no processo penal. A pena só é legítima se for indispensável para assegurar a protecção de bens jurídicos fundamentais; mas, por outro lado, só terá essa potencialidade se apenas se punirem aqueles em relação aos quais se tenha efectivamente demonstrado terem realizado os pressupostos da sanção” (O Princípio da Verdade Material, Um Contributo para a sua Fundamentação Constitucional, in Liber Amicorum de José de Sousa e Brito, em comemoração do 70.º Aniversário, org. Augusto Silva Dias et. al., Almedina, 2009, p. 837).
Sobre o princípio da igualdade, Adlezio Agostinho refere que “a igualdade de oportunidades e o uso equitativo de armas entre as partes processuais determina a existência e respeito ao direito e a tutela jurisdicional efectiva. A igualdade de oportunidades e o direito ao acesso e tutela jurisdicional efectiva não se finaliza apenas com o acesso do cidadão aos órgãos jurisdicionais, mas essencialmente que lhes seja dada a possibilidade de defender os seus direitos e interesses legalmente protegidos, através de um processo jurisdicional equitativo e com cumprimento do formalismo legal” (Manual de Direito Processual Constitucional Princípios Doutrinários e Procedimentais sobre Garantias Constitucionais, AAFDL, 2023, p. 403).
Decorrente dos artigos 36.º da CRA e 6.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, o direito à liberdade física, também conhecido como liberdade de locomoção, garante que ninguém pode ser privado da sua liberdade de movimento e circulação, excepto em casos estatuídos pela Constituição e pela lei. Isso inclui o direito de ir e vir, de não ser preso ou detido sem motivo fundamentado e de não sofrer restrições arbitrárias à sua liberdade de circulação.
Atinente ao direito à imagem, é de aludir que configura um bem jurídico pessoal por excelência, com a estrutura de uma liberdade fundamental por via do qual se reconhece ao titular do direito o domínio exclusivo sobre a sua própria imagem.
Consagra o n.º 1 do artigo 32.º da CRA que “a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à nacionalidade, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra e à reserva de intimidade da vida privada e familiar”.
Reforça o n.º 2 do mesmo artigo que “a lei estabelece as garantias efectivas contra a obtenção e a utilização, abusivas ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e às famílias”.
Depreende-se deste dispositivo constitucional que caso haja violação deste direito, o seu titular pode recorrer aos órgãos judiciais para a sua defesa, podendo solicitar a reparação de danos e a cessação do seu uso indevido. 
Assevera Carlos Alberto B. Burity da Silva sobre o direito à imagem, para quem, “a tal se impõe [as diversas formas de identificação visual de uma pessoa], desde logo, o espírito da norma, assim como o argumento por maioria de razão: se é exigido o consentimento para expor, reproduzir ou lançar no comércio o retrato de uma pessoa, então também a actividade primária de captar o retrato tem de ser acompanhada do correspondente consentimento. Não é, pois, possível retratar alguém de forma não consentida” (As Pessoas e o Direito – Reflexões Sobre o Direito das Pessoas, Artipol – Artes Gráficas, Lda., 2022, p. 334).
Na mesma senda, afirmam Jorge Miranda e Rui Medeiros que, “os direitos à palavra e à imagem são expressões típicas da autonomia pessoal constitucionalmente garantida por força do princípio da dignidade da pessoa humana. Os direitos à palavra e à imagem incluem o direito a que não sejam registadas ou divulgadas palavras ou imagens da pessoa sem o seu consentimento, conferindo assim um direito à ʻreservaʼ e à ʻtransitoriedadeʼ da palavra falada e da imagem pessoal. Garante-se, pois, a autonomia na disponibilidade da imagem e da palavra independentemente de estar ou não, de forma directa, em causa o bom nome e a reputação das pessoas e independentemente de estar ou não em causa a vida familiar” (Op. cit., p. 618).
Assim, importa frisar que no atinente à alegada violação do direito à imagem apontada pela Recorrente Isabel Jepele, pelo facto de ter visto serem captadas e exibidas as suas imagens, num momento em que já havia interposto recurso com efeito suspensivo, a verdade é que não constam dos autos quaisquer referências que apontem no sentido desta questão ter sido suscitada quer em sede da primeira instância, quer em sede de recurso ordinário que correu termos no Tribunal Supremo.
Neste diapasão, não tinha aquele Tribunal como se pronunciar sobre esta matéria, não podendo, por maioria de razão, este Tribunal Constitucional na situação em apreço, e sobretudo, em sede do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, sindicar uma questão que não foi objecto de apreciação pela Decisão recorrida. (no mesmo sentido vide o Acórdão n.º 682/2021, de 25 de Maio, disponível em: www.tribunalconstitucional.ao).
De igual modo, não são de acolher as alegações dos Recorrentes sobre a ofensa aos princípios da verdade material, da igualdade e sobre a violação do direito à liberdade, tendo em consideração que, na Decisão ora posta em crise, (fls. 617 a 627 e verso) a culpa dos Recorrentes foi suficientemente demonstrada e as restrições impostas à sua liberdade física ou de circulação foram as que visavam o cumprimento de fins de natureza penal e determinadas nos marcos da lei. 
Por fim, colhe-se dos autos que aos Recorrentes foi garantida a igualdade de oportunidades no acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva bem como tiveram a todo tempo a possibilidade de defender os seus direitos e interesses constitucional e legalmente protegidos.
3. Da alegada violação ao direito a julgamento justo e conforme e a ofensa ao princípio da legalidade 
Na perspectiva de Jónatas Machado, Paulo Nogueira da Costa e Esteves Carlos Hilário “decorre da tutela jurisdicional efectiva e do direito a julgamento justo e conforme que em consequência de um processo judicial, o órgão jurisdicional tem o dever de pronunciar-se mediante uma decisão fundamentada. A tutela jurisdicional efectiva manifesta-se na exigência de uma solução para o caso em tempo útil, com observância de um processo equitativo, (…) garantido o duplo grau de jurisdição e o direito a uma decisão judicial sem atrasos indevidos, dentro de um lapso temporal adequado, necessário e proporcional à complexidade da causa” (Direito Constitucional Angolano, 4.ª ed., Petrony, 2017, pp. 77 e 78).
Nessa mesma linha de raciocínio, traz-se à liça jurisprudência desta Corte Constitucional, fixada no Acórdão n.º 787/2022, de 13 de Dezembro, segundo a qual, “o primado do julgamento justo e conforme está compenetrado com a dimensão axiológica do processo penal de a todo tempo assegurar-se um equilíbrio entre a acusação e a defesa, impedindo que o arguido seja relegado a uma posição de desvantagem relativamente à acusação, por outro lado, impõe-se que o tribunal seja constituído e funcione regularmente segundo o direito” (similarmente os Acórdãos n.ºs 862/2023, de 5 de Dezembro, 741/2022, de 3 de Maio, 707/2021, de 3 de Novembro, 606/2020, de 14 de Março, todos disponíveis em: www.tribunalconstitucional.ao).
O princípio da legalidade decorre do Estado de Direito, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º da CRA. Do mesmo resulta que o poder do Estado nas suas várias funções só pode ser exercido dentro dos marcos estabelecidos pela lei e que todos devem obediência, evitando-se assim o arbítrio.
Na óptica de Raul Carlos Araújo e Elisa Rangel Nunes “o Estado de Direito não é apenas um Estado constitucional. Ele é na sua essência um Estado de Direito que se funda no respeito da legalidade pelo que a sua actividade e dos seus órgãos e agentes se deve pautar pelo estrito cumprimento da lei” (Constituição da República de Angola Anotada, Vol. I, 2014, pp. 200 e 201).
Pese embora, ressalte dos autos que, no Acórdão recorrido, o Tribunal Supremo tenha lançado mão a vários dispositivos legais para fundamentar a sua decisão, e se tenha escudado no princípio da livre apreciação da prova para condenar os ora Recorrentes, a apreciação do mérito ou demérito não cabe à esta jurisdição constitucional.
Não obstante, o que ficou referido sobre a inaplicabilidade do disposto no artigo 1.º da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto – Lei da Amnistia, por não se encontrarem preenchidos os requisitos para o efeito, em razão de à data da condenação em primeira instância, a moldura abstracta aplicável ao crime de peculato ter como limite mínimo 12 e como limite máximo 16 anos de prisão e, bem assim a nova moldura aplicável ao crime em causa, nos termos do CPA, ter como limite máximo 14 anos de prisão, facto é que seria aplicável aos arguidos o previsto no n.º 1 do artigo 2.º da Lei supra referida, isto é, o perdão de ¼ da pena concretamente aplicada.
Assim sendo, esta Corte entende que o Tribunal ad quem deixou de aplicar uma norma a que estava obrigado por força do n.º 2 do artigo 2.º e do artigo 72.º, ambos da CRA, isto é, a norma contida no artigo 2.º da supracitada lei, o que, in casu, resultaria numa redução da pena efectivamente aplicada aos aqui Recorrentes.
Face ao supra dilucidado, o Tribunal Constitucional considera que, efectivamente, o Acórdão recorrido ofendeu o princípio da legalidade e violou o direito ao julgamento justo e conforme, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 2.º e do artigo 72.º, ambos da Constituição da República de Angola. 
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: 
a) DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE, POR OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E VIOLAÇÃO AO DIREITO AO JULGAMENTO JUSTO E CONFORME, NOS TERMOS DO N.º 2 DO ARTIGO 2.º E O ARTIGO 72.º, AMBOS DA CRA.
b) DETERMINAR, NOS TERMOS DO N.º 2 ARTIGO 47.º DA LPC, A BAIXA DOS AUTOS AO TRIBUNAL DA CAUSA, PARA EFEITOS DE CONFORMAÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA COM A PRESENTE DECISÃO, BENEFICIANDO OS RECORRENTES DO PERDÃO DE ¼ DA PENA. 
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 1 de Julho de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente e Relatora) 
Carlos Alberto B. Burity da Silva 
Carlos Manuel dos Santos Teixeira 
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo 
Gilberto de Faria Magalhães 
João Carlos António Paulino 
Lucas Manuel João Quilundo 
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva