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ACÓRDÃO N.º 953/2025

 

PROCESSO N.º 1024-B/2022

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

José Henriques, com os demais sinais de identificação nos autos, veio ao Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolactado pelo Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 133/13 que correu os seus termos naquela instância.

O Recorrente havia interposto, na Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, recurso contencioso de impugnação do Despacho Conjunto n.º 98/99, de 9 de Julho, que decretou o confisco de um prédio urbano de que era proprietário, o qual foi julgado improcedente, por terem sido observados os pressupostos necessários para o efeito (fls. 219-221).

Inconformado, interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, que confirmou a decisão recorrida, por entender não serem os documentos carreados aos autos hábeis a justificar a ausência prolongada, do território nacional, do Recorrente ou dos seus Procuradores no período de vigência das leis sobre o confisco (fls. 352 a 368).

Nesta Corte, notificado para apresentar alegações, veio, a fls. 637 a 705, fazê-lo nos seguintes termos, em síntese:

1. O Tribunal Supremo deixou de apreciar algumas das questões suscitadas pelo Recorrente, designadamente: o vício material do acto confiscatório; o vício formal do acto administrativo; a insuficiência instrutória do procedimento administrativo; e a insuficiência substantiva do procedimento administrativo, considerando que tal apreciação ficou prejudicada pela questão da irreversibilidade do confisco.

2. A doutrina e a jurisprudência de Direito Constitucional comparado são de entendimento que as normas constitucionais, relativas a direitos fundamentais, têm eficácia retroactiva.

3. O abandono, visto pela perspectiva dos direitos fundamentais, deixou de merecer qualquer sanção, inclusive uma sanção como a do confisco.

4. O Tribunal recorrido fez uma interpretação desacertada ao concluir que o inciso “irreversível” tem o alcance de “absolutamente intocável”.

5. O incumprimento de obrigações fiscais não é, e nem pode ser, causa de confisco de um bem. Outro argumento aduzido pelo Tribunal recorrido assenta no facto de a autenticação das fotocópias dos documentos médicos apresentados nos autos ter sido feita por uma sociedade de advogados, em vez de um Notário.

6. Ora, como consta dos próprios termos de certificação dos documentos, a certificação foi feita ao abrigo do Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de Março, que, em Portugal, confere aos Advogados e Solicitadores, e às respectivas sociedades, muitos dos poderes próprios da competência dos Notários, entre os quais o de certificar a conformidade de fotocópias com os respectivos originais.

7. Impressionou-se o Tribunal Supremo com o pretenso facto de "o atestado médico passado pelo médico José Luís Rosa de Brito apresentar indícios de ter a data inicial sido rasurada de 2002 para 1993", e com o facto de "o atestado médico passado pelo Dr. Salomão Amam ser datado a 2002, data posterior ao confisco". Sem razão alguma, data vénia.

8. Pois, os relatórios clínicos juntos ao procedimento administrativo foram feitos pelos médicos que acompanharam e trataram a doença do foro cardiológico do Recorrente e cobrem todo o período da doença, que revelou os primeiros sintomas em 1983, antes da sua ausência prolongada em Lisboa iniciada em 1984. Com o agravamento progressivo, o Sr. José Henriques passou a ser considerado cardíaco de alto risco, tendo, portanto, passado a ficar sob permanente e rigorosa vigilância médica.


9. Ao Tribunal Supremo estava vedado, razoavelmente, fazer, como fez, ao desconsiderar toda a documentação médica, inclusive esse atestado, para, nessa base, se permitir a conclusão de que o ora Recorrente não estava afectado por uma doença cardíaca grave, que o proibisse clinicamente de se manter em Luanda, longe dos cuidados médicos e exames de especialidade que tinha ao seu dispor em Lisboa.

10. No atestado do Dr. José Luis Rosa de Brito, datado de 16 de Novembro de 1993, estão apostos o carimbo de reconhecimento notarial do atestado, o carimbo de autenticação do Consulado Geral de Angola em Lisboa e o carimbo de autenticação do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, carimbos esses de 16 e 17 do mesmo mês do atestado e, portanto, posteriores à data acima referida.

11. Se o ora Recorrente, como é o caso, nunca teve motivos para prever o confisco da sua vivenda; não tinha, logicamente, de se munir de atestados médicos contra um confisco consentaneamente imprevisto e imprevisível.

12. O ora Recorrente, pois, mesmo que, por hipótese, não tivesse o direito de se deslocar a Portugal e de aí se fixar em 1984 por ordens médicas (o contrário seria aguardar a morte em Angola, que à data não tinha meios técnicos e humanos da especialidade de cardiologia), direito que ficou reconhecido em sede jusconstitucional desde 1991, mas com retroacção a 1984 - tinha, obviamente, o direito (e a obrigação) de evitar um suicídio por omissão de tratamento médico especializado.

13. O Recorrente, não só não abandonou Angola, como ficou a colaborar, activa e empenhadamente, como amigo de Angola, na própria empresa de que era administrador, até 1984, ano em que passou a ser-lhe humanamente impossível continuar.
14. Em Junho de 1984, o ora Recorrente, ainda se mantinha em Angola, de onde saiu apenas por períodos não superiores a 45 dias, apesar de em 1983 ter tido sintomas de doença cardíaca que o levaram a ser observado e tratado em Portugal.

15. Em Julho de 1984, com a agravação do seu estado clínico, o ora Recorrente, sem alternativa, saiu de Angola para tratamento, previstamente prolongado, que acabou por retê-lo em Portugal, com deslocações ainda assim feitas por períodos prolongados, várias vezes ao ano, a Angola, como estrangeiro com estatuto de residente. Além de problemas da próstata e de hipertensão, o Recorrente veio a ser tratado de "doenças coronárias crónicas, com fibrilação auricular, e desde 1983 sofreu um enfarte coronário e dois acidentes isquémicos cerebrais, o último dos quais, recente, com consequente hemiplasia direita de que se encontra em recuperação".

16. O mesmo atestado proibia clinicamente o ora Recorrente de permanecer permanentemente em Angola. Esse atestado médico foi instruído com cinco relatórios que constituem, mais do que suficientemente, o historial clínico do Recorrente no foro cardiológico.

17. Em 20 de Outubro de 2002, por sua vez, o cardiologista catedrático, Dr. Salomão Sequero Amram atestou que o Recorrente, por si observado, desde há muitos anos, tem doença cardíaca crónica, incapacitante e instável, que impossibilita e contra-indica a sua permanência em Angola.


18. Toda esta bateria de factos, por força da inversão do ónus da prova, deveria ter sido dada como provada a benefício da versão factual do Recorrente, o que não aconteceu.
19. O confisco assentou em pressupostos factuais presumidos. A douta contestação do Recorrido, Ministro da Justiça, limita-se a dizer que "o Recorrente não prova inequivocamente que não se ausentou injustificadamente do país por período superior a 45 dias, e a douta contestação do Ministério Público limita-se a dizer que "a ausência do Requerente/impugnante é injustificada, pois não apresenta qualquer prova que a justifique".

20. Os Recorridos não negaram a doença do Recorrente, não negaram a sua natureza e gravidade e não negaram a necessidade de tratamento médico fora de Angola. O único facto, a que se agarram como boia salvífica da sua tese sem respaldo, foi fabricado com o detalhe da emenda de 1983 para 1993 feita no relatório do médico Dr. Rosa de Brito. Ora, se não negaram, aceitaram os factos. Se os aceitaram, cai pela base o confisco baseado na ausência do Recorrente a partir de 1984, independentemente da inversão do ónus da prova.

21. No fundo, os Recorridos pretendem sacudir o ónus da prova para o Recorrente, quando milita contra eles, no caso concreto, a regra da inversão do ónus da prova, já que a estes competia tirar a limpo todas as dúvidas na fase procedimental da reclamação e, em vez disso, omitiram todas as diligências instrutórias que pudessem confirmar ou infirmar os pressupostos factuais do confisco, de modo a suprirem o défice instrutório da pré-reclamação, com isso criando dificuldades de prova ao ora Recorrente.


22. À data em que foi preparado e proferido o Despacho confiscatório n.º 98/99, vigorava o Decreto-Lei n.º 16-A/95, de 15 de Dezembro, cujo artigo 30.º, epigrafado como "Comunicação dos Interessados" determinava a obrigatoriedade de notificação de iniciação de procedimento administrativo confiscatório ao titular do bem investigado nesse procedimento.

23. O Recorrente devia ter sido notificado pelos serviços competentes da então Secretaria do Estado da Habitação, mas essa notificação não foi feita nem sequer tentada. Ou seja, o Recorrente não foi ouvido nem achado, nem para isso procurado, de perto ou de longe, ao longo do procedimento confiscatório relativo à sua casa.
24. Foram violados, assim, os princípios constitucionais do acesso ao Direito e tutela jurisdicional efectiva, incluso o direito ao contraditório e à fundamentação e o direito à inversão do ónus da prova, do direito à propriedade privada, do direito a julgamento justo e conforme.

Termina pedindo que se dê provimento ao presente recurso, supra-se e decrete-se a inversão do ónus da prova a favor do Recorrente e, consequentemente, dê-se como provados todos os factos, directos ou adminiculares, documentados ou não, que integram a versão factual integral do Recorrente.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE

Nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC, conjugado com a alínea a) do artigo 84.º do Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril (Regulamento do Processo Contencioso Administrativo), em vigor à data dos factos, tem o Recorrente, legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por ter ficado vencido no Processo n.º 133/13, que correu os seus termos no Tribunal Pleno e de recurso do Tribunal Supremo.

 

IV. OBJECTO

O presente recurso tem como objecto analisar se a decisão do Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, prolactada à margem do Processo n.º 133/13, que confirmou a decisão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro daquele Tribunal e validou o confisco efectuado sobre o prédio urbano do Recorrente, é inconstitucional por contender com os princípios da tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme e o direito à propriedade privada.

V. APRECIANDO

No caso vertente, o Recorrente interpôs, por não conformação, na Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, recurso contencioso de anulação de acto administrativo do Despacho Ministerial Conjunto n.º 98/99, de 9 de Julho, dos Ministros da Justiça e das Obras Públicas e Urbanismo, publicado em Diário da República n.º 28, I Série, com a mesma data, que decretou o confisco e reverteu a favor do Estado o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da Comarca de Luanda, sob o n.º 10468, a fls. 34 verso, do Livro B-34, inscrito na matriz predial urbana do 2.º Bairro Fiscal de Luanda, sob o n.º 13925, sito nas ruas Jaime de Amorim n.º 264 e Camilo Castelo Branco n.º 25/27, lavrado em nome do Recorrente.

Apreciados os autos naquela instância, o aresto, datado a 20 de Abril de 2007 (fls.219-221), julgou improcedente a acção, por terem sido observados os pressupostos para o decretamento do confisco, dado que o Recorrente não logrou a prova de que não se encontrava, injustificadamente, ausente do território nacional, por período superior a 45 dias, conforme dispunha o artigo 1.º da Lei n.º 43/76, de 19 de Junho.

Inconformado, deste Acórdão interpôs recurso para o Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo que confirmou, a fls. 352 a 368 dos autos, a Decisão recorrida, considerando que: a) o Recorrente não pagava o imposto predial relativo ao imóvel em causa havia cerca de 12 anos; b) os documentos médicos juntos aos autos não tinham sido autenticados por entidade competente e continham datas posteriores à do decretamento do confisco; c) e que, embora o confisco tivesse sido decretado após a entrada em vigor da Lei Constitucional de 1992, este seria sempre válido, na medida em que, em razão do princípio constitucional da irreversibilidade do confisco, os imóveis, cujos proprietários ausentaram-se injustificadamente do território nacional antes da entrada em vigor da aludida Lei Constitucional, encontravam-se em situação de confiscabilidade e os seus efeitos operavam-se ope legis, em conformidade com o estabelecido no n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 7/95, de 1 de Setembro.

Uma vez mais, irresignado e esgotada que foi a cadeia recursória ordinária, veio, o Recorrente, interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, evocando como razões de inconstitucionalidade: a) ter o Tribunal recorrido confirmado um confisco contrário à ordem constitucional então vigente, isto é, ostensivo ao direito fundamental à propriedade privada; e b) ter o Tribunal deixado de valorar, a favor do Recorrente, os documentos médicos juntos aos autos, facto que, alegadamente, posterga os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme.

Conforme emerge do precedente relato, além das questões relacionadas com os elementos de prova carreados aos autos, a irresignação do Recorrente com o Acórdão pretexto reside no facto de o confisco do imóvel ter sido decretado no âmbito de vigência da Lei Constitucional de 1992, concretamente no ano de 1999, na medida em que entende que o regime jurídico de confisco previsto nas Leis n.ºs 43/76 e 7/95, de 1 de Setembro, não se compaginava com os princípios estruturantes consagrados no referido texto fundamental.

Isto é, na esteira do que foi exposto e da análise minuciosa dos fundamentos de inconstitucionalidade esboçados pelo Recorrente verifica-se que este pretende que se afira a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido e, consequentemente, do acto de confisco, tendo como parâmetro a Lei Constitucional de 1992, na medida em que o Despacho Conjunto que decretou o confisco é datado de 1999, anterior à promulgação e entrada em vigor da Constituição vigente, a Constituição da República de Angola de 2010.

No entanto, considerando a sua própria natureza, enquanto documento supremo e acto inaugural do Estado, posta em vigor uma nova Constituição, nenhum acto jurídico anterior poderá ter a pretensão de subsistir com carácter de norma suprema. A Constituição de 2010 revogou globalmente a Lei Constitucional de 1992, e só aquela poderá ser a premissa elementar para a construção do silogismo jus-constitucional que se impõe, facto que subjaz a opção do legislador constituinte em ter consagrado a tese da inconstitucionalidade superveniente, ínsita no n.º 2 do artigo 231.º da Constituição, em que se prevê a possibilidade de se julgar inconstitucionais normas cuja entrada em vigor retrotrai a um momento anterior ao da entrada em vigor da Constituição.

Assim, para os efeitos aqui pretendidos pelo Recorrente, o Tribunal Constitucional apreciará a questão de inconstitucionalidade suscitada nos presentes autos tendo como parâmetro a Constituição de 2010, o que faz, no caso vertente, nos seguintes termos:

O Tribunal Constitucional tem jurisprudência firmada sobre a conformidade constitucional dos confiscos efectuados à luz dos referidos textos legais, com destaque, para os Acórdãos n.ºs 441/2017, 484/2018, 817/2023 e 822/2023, tendo sido a questão objecto de decisões similares (todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.ao).

Como se sabe, a política angolana de confiscos (e nacionalizações) remonta ao período a seguir à proclamação da independência e implementação da República Popular de Angola, a 11 de Novembro de 1975, atenta a sua opção socialista, consubstanciada na edificação de um sistema de direcção económica central e planificada, no âmbito da qual destacam-se os regimes previstos na Lei n.º 3/76, de 3 de Março, que estabelecia as regras relativas à política económica de resistência, e na Lei n.º 43/76, de 19 de Junho, relativa ao confisco de bens destinados à habitação, ambas aprovadas pelo Conselho da Revolução.

O confisco, nos termos dos referidos textos legais, era uma medida administrativa eminentemente sancionatória, privativa de bens corpóreos ou incorpóreos do titular destes direitos que se encontrasse nas circunstâncias de se ter ausentado injustificadamente, por um período superior a quarenta e cinco (45) dias.

No caso dos autos, o confisco decretado teve como fundamento o disposto no artigo 1.º da Lei n.º 43/76, de 19 de Junho, e n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 7/95, de 1 de Setembro, que previam a reversão, em benefício do Estado, passando a constituir seu património e sem direito a qualquer indemnização, de todos os prédios de habitação, ou partes deles, propriedade de cidadãos nacionais ou estrangeiros, cujos titulares se encontrassem injustificadamente ausentes do território nacional há mais de 45 dias, independentemente de quaisquer formalismos.

Assim, constituíam pressuposto para o confisco de bens imóveis, nos termos dos supracitados dispositivos legais, a ausência, injustificada, do País, de uma pessoa singular, por mais de 45 dias. Os titulares de bens imóveis destinados à habitação, nacionais ou estrangeiros, perdiam-nos, ope legis, a favor do Estado, passando, os bens confiscados, a integrar o seu acervo patrimonial.

O direito à propriedade privada encontra-se previsto no artigo 37.º da CRA, no qual se estabelece, no seu n.º 1, que “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão, nos termos da Constituição e da lei”. A norma estabelece uma dupla garantia da propriedade privada: uma garantia institucional, que se traduz na protecção da propriedade como instituto jurídico; e uma garantia individual, que protege como direito fundamental posições jurídicas individuais sobre bens de valor patrimonial.

Inserto no Capítulo relativo aos direitos, liberdades e garantias – Capítulo II da Constituição –, o direito à propriedade privada beneficia de um regime específico, previsto no n.º 1 do artigo 28.º da CRA, contendo, a Constituição, regras e princípios que, na sua globalidade, consagram uma disciplina jurídico-constitucional singular para esta categoria de direitos fundamentais.

Com efeito, para que se verificasse tal compressão ao direito à propriedade privada, hodiernamente, dever-se-ia respeitar o preceituado no artigo 57.º da Constituição, que condiciona a restrição dos direitos, liberdades e garantias à demonstração da sua necessidade, proporcionalidade, razoabilidade, bem como à observância dos princípios da reserva de lei e da salvaguarda do núcleo essencial do direito.

Deste modo, à luz do actual contexto jurídico-constitucional e, pela função social que o referido direito assume, os confiscos efectuados, tendo como fundamento o disposto nos aludidos diplomas, não se compaginam com o sistema vigente de protecção de direitos fundamentais que, caracterizado pela existência de regras e princípios orgânico-materiais inexoráveis, é particularmente de índole conservadora e garantística.

Entretanto, não obstante ao expendido, os confiscos efectuados regularmente, ao abrigo das leis sobre o confisco e nacionalizações, tornaram-se irreversíveis ao se ter consagrado, no artigo 97.º da CRA, o princípio constitucional da irreversibilidade dos confiscos e das nacionalizações (vide, a propósito e para outros desenvolvimentos, o Acórdão n.º 816/2023, disponível em www.tribunalconstitucional.ao).

Atento ao contexto e às suas exigências, entendeu o legislador constituinte, assegurar, do ponto de vista constitucional, a imutabilidade das decisões públicas, relativas aos confiscos regularmente decretados, a fim de proteger a confiança e a expectativa legítima de particulares, directamente interessados, de que as situações jurídicas constituídas ao abrigo das Leis de Confisco e Nacionalizações seriam estáveis e prolongar-se-iam no tempo.

Nos termos do artigo 97.º, sob epígrafe “irreversibilidade das Nacionalizações e dos Confiscos”, são considerados válidos e irreversíveis todos os efeitos jurídicos dos actos de nacionalização e confisco praticados ao abrigo de lei competente, sem prejuízo do disposto em legislação específica sobre reprivatizações”.

Esta estatuição visa, segundo Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, na anotação que fazem ao artigo, a salvaguarda dos efeitos jurídicos das nacionalizações e confiscos, que podem ser centrais e periféricos. O efeito central seria a transferência para o Estado, por força da lei, dos bens objecto de confisco ou nacionalização, por sua vez, os efeitos periféricos corresponderiam à parte ou a universalidade de bens, direitos e obrigações de que o Estado seria titular, como consequência do confisco ou da nacionalização efectuada (Constituição da República de Angola - Anotada, Tomo I, 2014, pp. 494 e 495).

Assim, tal como assevera Carlos Feijó “se as leis sobre o confisco e a nacionalização foram respeitadas, nomeadamente, se houve ausência injustificada do País pelos proprietários por tempo superior a quarenta e cinco dias ou sabotagem económica, o confisco é irrevogável e intocável, não podendo ser anulado, sob pena de a anulação ser inconstitucional, por violação do artigo 97.º da CRA” (A Constituição Económica da República de Angola, - FEIJÓ, Carlos [et al.] – in Constituição da República de Angola: Enquadramento Dogmático – A Nossa Visão, Vol. III, 2015, p. 116).

Ora, no caso vertente, compulsada a fundamentação aduzida pelo Tribunal recorrido verifica-se que o Recorrente não logrou a prova de que não se encontrava injustificadamente ausente do território nacional por período superior a 45 dias, ou seja, não ficou sobejamente demonstrado que o confisco foi decretado sem que tivessem sido observados os seus pressupostos.

O Aresto em crise, dá como assente que o Recorrente se ausentou de Angola em 1984, fixando residência permanente em Portugal, que os justificativos médicos apresentados continham datas posteriores à do decretamento do confisco e foram autenticados por um serviço incompetente (fls. 358 e 359).

De facto, houve um equívoco por parte do Tribunal recorrido ao ter considerado que os documentos juntos aos autos foram certificados por uma entidade incompetente, por terem sido confirmados por uma advogada, em vez de um serviço notarial. No ordenamento jurídico português, com o objectivo de simplificar e desburocratizar a prática de actos notariais, os advogados têm competência para certificar a conformidade de fotocópias com os documentos originais que lhes sejam apresentados para esse fim, tal como decorre dos n.ºs 1 e 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de Março, publicado em Diário da República n.º 61/2000, Série I-A, com a mesma data, tendo tais documentos a mesma força jurídica e valor probatório que os documentos reconhecidos pelos notários.

Todavia, os aludidos documentos, datados de entre 1995 e 2005 (fls. 174-177, e 189 e ss), não fazem prova de que tais condições de saúde estiveram na base da sua ausência do território nacional desde 1984, na medida em que não se referem à doença prolongada que abranja o período de 45 dias de ausência necessários para o decretamento do confisco, contados desde a data de saída do País, tal como estabelece o artigo 1.º da Lei n.º 43/76, de 19 de Junho.

Contrariamente ao asseverado pelo Recorrente, o ónus da prova, neste caso, cabia ao próprio, que deveria ter demonstrado, através de prova contundente, que a sua condição de saúde justificava a sua ausência do território angolano em 1984, pois que a regra, no que à distribuição do encargo probatório diz respeito, é simples: a quem invoca um direito cabe demonstrar o respectivo título. E pertence a quem intente inviabilizar a pretensão assente no direito alegado a prova dos factos (grosso modo, impeditivos, modificativos ou extintivos) susceptíveis de a paralisar ou de lhe diminuir o alcance ("reus excipiendo fit actor”;"reus inexceptione actor est”).

Isto é, sobre o ónus da prova opera o preceituado no artigo 342.º do Código Civil, aquele que invoca um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo (n.º 1) e a prova dos factos extintivos do direito compete àquele contra quem a invocação é feita (n.º 2). Assim, segundo o axioma latino "secundum probata decidere debet", donde resulta que "ei incumbit probatio qui dicit, non qui negat” ou "onus probandi incumbit actori”, deveria ser o Recorrente a fazer prova de que se encontrava ausente por razões atendíveis, o que não ocorreu no caso dos autos.

Na verdade, tal como se pode constatar pela natureza dos pedidos impetrados pelo Recorrente, em que pretende que o Tribunal Constitucional determine a inversão do ónus da prova e declare provados todos os factos por si alegados, é patente que este pretende que o Tribunal Constitucional se substitua ao Tribunal recorrido, apreciando a prova e dando como provadas as circunstâncias justificadoras da sua ausência.

Como se sabe, ao Tribunal Constitucional não compete, em regra, interpretar e aplicar normas de direito ordinário, nem decidir, ele próprio, o litígio em causa, visto que o seu poder de análise das decisões recorridas é específico e limitado ao confronto dessas com os preceitos da Constituição (Adlezio Agostinho, Manual de Direito Processual Constitucional – Princípios Doutrinários e Procedimentais sobre as Garantias Constitucionais, Parte Geral e Especial, AAFDL, Lisboa, 2023, p. 773). As suas competências são estritamente as de administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional, escalpelizadas nas disposições conjugadas dos artigos 181.º da CRA e 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, com a redacção dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 24/10, de 3 de Dezembro (vide, entre outros, os Acórdãos n.ºs 613/2020, 621/2020, 777/2022, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao).

Assim sendo, face ao acima expendido, improcede a pretensão do Recorrente, por não se verificar no Acórdão recorrido as inconstitucionalidades que lhe assaca o Recorrente.
Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO.
Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 14 de Janeiro de 2025.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Carlos Alberto B. Burity da Silva

Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)

Gilberto de Faria Magalhães

João Carlos António Paulino

Josefa Antónia dos Santos Neto

Lucas Manuel João Quilundo

Maria da Conceição de Almeida Sango

Vitorino Domingos Hossi