ACÓRDÃO N.º 954/2025
PROCESSO N.º 1077-A/2023
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Namkwang International Engenheering, Lda., melhor identificada nos autos, veio ao Tribunal Constitucional impetrar recurso extraordinário de inconstitucionalidade (REI) no Processo n.º 2634/19, da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, datado de 15 de Abril de 2021, que negou provimento ao seu recurso.
Em observância ao disposto no artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), foi a Recorrente notificada para apresentar as suas alegações de recurso, junto deste Tribunal Constitucional, conforme se vê a fls. 263 a 268 dos autos, alegando, em síntese, que:
1. A Recorrente apresentou recurso sobre a sentença proferida em primeira instância, em virtude de ter sido condenada a pagar uma indemnização no valor de Kz. 250 000 000,00 (duzentos e cinquenta milhões de Kwanzas).
2. O Tribunal Supremo entendeu revogar parcialmente a decisão do Tribunal a quo, ordenando que este fixe a indemnização, nos termos dos critérios legais em execução de sentença, e que a Ré ceda a título temporário um imóvel para que a Autora possa habitar condignamente.
3. O Acórdão, ao condenar a Recorrente a conceder temporariamente um imóvel, violou o disposto no n.º 3 e n.º 1 do artigo 661.º do Código de Processo Civil, porquanto condenou além do pedido, violando assim a lei e concomitantemente a Constituição.
4. O Acórdão viola o princípio da legalidade, ao condenar para além do pedido, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º da CRA.
5. Por isso, viola os artigos 6.º 23.º 29.º e 72.º todos eles com dignidade constitucional.
Termina pedindo ao Tribunal Constitucional, que ante aos factos narrados, revogue o Acórdão recorrido por violação dos princípios da legalidade, da igualdade, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e do direito a julgamento justo e conforme.
O processo foi à vista do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional, que se pronunciou nos seguintes termos:
i. O Acórdão em crise ao apreciar a matéria controvertida teve em consideração o facto de a habitação ser um direito fundamental consagrado no artigo 85.º da CRA, que merece protecção privilegiada do Estado em defesa da dignidade humana.
ii. Embora a autora não tenha suscitado a necessidade de uma habitação para a sua acomodação com a dignidade que merece, o Tribunal, compreendendo essa necessidade, pronunciou-se oficiosamente, e bem, no sentido de ser acautelada, porquanto a isso era obrigado considerando a natureza do direito em causa, direito fundamental.
iii. Deste modo o Acórdão recorrido não violou princípios e direitos alegados pela Recorrente. O Ministério Público pugna pelo não provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) do artigo 49. ° da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, garantias e liberdades constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos. Esta faculdade está igualmente prevista na alínea m), do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
A Recorrente tem legitimidade para interpôr o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, por ser parte no processo n.º 2634/19, que correu trâmites na Câmara do Cível e Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo. Tem direito a contradizer, segundo dispõe o n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional, por força do artigo 2.º da LPC.
IV. OBJECTO
O objecto do presente Recurso incide sobre o Acórdão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, datado de 15 de Abril de 2021, proferido no Processo n.º 2634/19, que terá alegadamente incorrido em inconstitucionalidade, violando direitos fundamentais da Recorrente, a saber: princípio da legalidade, princípio da igualdade, acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o direito ao julgamento justo e conforme.
V. APRECIANDO
Em autos proferidos, em sede do Tribunal a quo, mediante Despacho Saneador-Sentença, viu a Recorrente as suas pretensões goradas na medida em que, foi condenada a indemnizar à Autora, no valor de Kz. 250 000 000,00 (duzentos e cinquenta milhões de Kwanzas).
Inconformada com a decisão, interpôs recurso junto do Tribunal ad quem, que revogou parcialmente a decisão, ordenando uma indemnização, obedecendo critérios legais e que a Recorrente ceda a título provisório, um imóvel para que a Autora pudesse realizar o seu direito à habitação.
Não satisfeita com aquela decisão na instância sub judice, vem a Recorrente a esta Corte de Justiça Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, alegando, dentre outros, a violação dos seus lídimos direitos, liberdades e garantias fundamentais nos termos da Constituição. Dos autos e à luz da Constituição e da dogmática constitucional, veja-se se lhe assistirá razão.
A Recorrente alega ter sido violado o princípio da legalidade, porquanto, no seu entender, o Acórdão recorrido decidiu além do pedido, ao ordenar que a mesma diligenciasse no sentido de ceder um imóvel para que autora, efectivando-se, deste modo, o seu direito a habitação.
O princípio da legalidade constitui em si um corolário do Estado de direito democrático, é um princípio estruturante e, por essa razão, a sua espinha dorsal. Este princípio limita a acção punitiva do poder estadual, na medida em que impõe sanção dos actos em desconformidade constitucional e legal. A doutrina dominante, vê o princípio da legalidade, como baliza de actos e condenações arbitrárias.
O constituinte autonomiza a consagração do princípio da legalidade no n.º 2 do artigo 6.º, dizendo “o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”. Ora, a exegese permitida aqui à luz do rigor hermenêutico resulta do facto de que um Estado democrático e de direito como tal tem a Constituição como sua lei orientadora, ou seja, os marcos e meandros de toda sua dinâmica.
O sobredito princípio empresta ao processo jurisdicional uma linha orientadora, passando em revista os princípios da igualdade, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, todos com dignidade constitucional, nos seus artigos 23.º e 29.º da CRA, respectivamente.
Esta linha orientadora, que se resume em olhar para a Constituição como norma suprema, em que as suas normas e princípios concatenados direccionam o limite de actuação, in casu, em sede de uma acção judicial, impõe cumprimento rigoroso do legalmente previsto, atentando para a concretização de uma justiça adequada e proporcional.
José Afonso da Silva, entende que “o princípio da legalidade é também um princípio basilar do Estado Democrático de direito. É da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 35.ª ed., Malheiros Editores, p. 121).
Ora, a fls. 19 dos autos, verifica-se um contrato de arrendamento, em que a Recorrente, enquanto parte, firma o compromisso de cobrir gastos com arrendamento de um imóvel a favor da Autora em sede da jurisdição a quo. O que a Recorrente designa como julgar além do pedido, é a observância do estipulado na cláusula n.º 3 do sobredito Contrato. E, para sustentar isto faz-se referência ao Acórdão objecto de sindicância que sinaliza de fls. 228 a 232 dos autos, o que se segue.
“Assim, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, devendo as partes proceder de boa-fé, enquanto dever acessório da conduta (art. 762.º do Código Civil). O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação, torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor (artigo 798.º do CC).
In casu, o Acórdão que ora se reclama não condenou ultra petita, porquanto, o direito a propriedade tem consagração constitucional, enquanto um direito, liberdade e garantia fundamentais. O Apelante, veio interpor recurso da decisão do Tribunal “a quo” por entender que segundo o princípio compensatio lucri cum damno a indemnização não deve colocar o lesado em situação mais benéfica do que aquela em que se encontrava antes da lesão.
Bem verdade é esta afirmação do Apelante, ora Reclamante, porém, na mesma proporção que a indemnização não deve colocar o lesado em situação mais benéfica do que se encontrava, também não deve colocar o lesado em situação menos benéfica do que aquela em que se encontrava antes da lesão”.
O acima referido deixa cair por terra a alegação da Recorrente, porquanto, o que se verifica no Acórdão recorrido, é, tão somente, a conformidade dos termos celebrados naquele contrato, em obediência ao princípio pacta sunt servanda. Do que se vê nos autos, a Recorrente foi chamada para deduzir oposição a todo tempo.
Assim, este Tribunal entende que o alegado pela Recorrente, no que a violação do princípio da legalidade diz respeito, não procede, pois goza o Acórdão recorrido de plena harmonia com a Constituição, sendo em tudo salvaguardado.
A Recorrente faz, ainda, alusão a violação dos princípios da igualdade e do direito a julgamento justo e conforme.
O princípio da igualdade tem dignidade constitucional no artigo 23.º. Celso Bandeira de Melo, traz à liça a lógica aristotélica, que consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais (Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 2008, p. 10), entendendo-se esta dimensão valorativa como discriminação positiva.
Numa perspectiva adjectiva, Adlézio Agostinho sustenta que “não se exige uma igualdade absoluta em todas as situações, nem se proíbe diferenciações de tratamento, o que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça, da solidariedade e não se fundamentem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio” (Manual de Direito Processual Constitucional, Edições Académicas, 2023, p. 412) Ou seja, todos os que acorrem aos tribunais têm a garantia constitucional e legal, de obter um tratamento, imparcial, isento, independente e igualitário, porquanto, é este princípio, um corolário do princípio da legalidade.
Do alegado pela Recorrente, não se consegue extrair a violação do princípio em causa, na medida em que lhe foram dadas oportunidades em iguais circunstâncias, nos mesmos termos da contraparte. A questão discordante é assente na linha de pensamento em que seguiu o Acórdão recorrido, por não atribuir razão à Recorrente. Assim, este Tribunal entende que não se verifica no Acórdão recorrido violação do princípio da igualdade.
Por seu turno, o direito a julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA, dispõe que “a todo o cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei.” A conformidade do julgamento tem que ver com o princípio de igualdade de armas, o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva que, sem muito esforço hermenêutico, vão todos desembocar no princípio da legalidade.
O direito a um julgamento justo e conforme a lei, implica que toda a actuação processual deve obediência ao plasmado na lei, ou seja, ao princípio da legalidade e ao princípio da igualdade. O direito ao julgamento justo e conforme deve estar em harmonia com o espírito da Constituição.
Adlézio Agostinho sinaliza, ainda, que, “o julgamento justo como princípio do Direito Constitucional é um dos princípios que decorre do Código de Processo Civil em conexão com o princípio do Estado de Direito, e protege a pessoa, em princípio, contra a sua objectivação no processo. De acordo com este princípio, eles devem ter a oportunidade de influenciar o andamento e o resultado do processo, a fim de proteger os seus direitos” (Ob. Cit. p. 401).
Os cânones da ciência jurídica ensinam que o direito não deve estar desprovido de justiça, sob pena de produzir decisões injustas. Os tribunais devem pautar as suas decisões aliadas ao princípio da legalidade, à certeza jurídica, às decisões providas de soluções equitativas, pressupostos estes que foram acautelados no Acórdão recorrido.
Em observância aos autos, esta Corte Constitucional considera que o Acórdão de que aqui se recorre, não violou os direitos, liberdades e garantias fundamentais da Recorrente, pois que o Tribunal recorrido, bem ciente das suas competências, enquanto juiz constitucional, proferiu uma decisão integradora e acautelatória dos direitos da Autora do processo principal, até a definição sobre o quantum da indemnização pelo Tribunal a quo, e o efectivo pagamento, estando em tudo em conformidade com a Constituição e a lei, sendo por isso de negar provimento ao recurso interposto.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO.
Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 15 de Janeiro de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)
Lucas Manuel João Quilundo
Vitorino Domingos Hossi