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ACÓRDÃO N.º 955/2025

 

PROCESSO N.º 1226-B/2024

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (Habeas Corpus)

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Fredy Ngola Zua, melhor identificado nos autos, veio a este Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 41.º e da alínea a) do artigo 49.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade da Decisão do Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Luanda, prolactada a 30 de Setembro de 2024, no Processo n.º 357/2024, que indeferiu a providência de habeas corpus, com fundamento na legalidade da prisão do Recorrente.

Inconformado com a decisão jurisdicional, o Recorrente interpôs o presente recurso e, em síntese, alegou o seguinte:

1. A razão da interposição do presente recurso, prende-se com o facto do douto Despacho recorrido, proferido pelo Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Luanda, não ter dado provimento à providência de Habeas Corpus requerida pelo Recorrente em sede de recurso, pois;

2. Considera que a decisão proferida violou de forma flagrante e ostensiva os artigos 6.º, n.º 2, 29.º, 36.º, n.º 2, 56.º, n.º 1, 57.º, n.º 1, 64, n.º 1, 67.º, n.º 2, 68.º, n.º 1, 72.º e n.º 3 do 200.º, todos da Constituição da República.

3. É acusado da prática do crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punível pela alínea c) do n.º 1 do artigo 405.º, em concurso real com o crime de associação criminosa previsto e punível pelo n.º 1 do artigo 269.º, ambos do Código Penal e de fraude fiscal, previsto e punível pelo n.º 1 do artigo 172.º do Código Geral Tributário.

4. Encontra-se detido preventivamente desde o dia 05 de Março de 2024, estando internado no Estabelecimento Prisional de Viana.

5. A 30 de Abril de 2024, deu entrada do pedido de habeas corpus com fundamento na prisão fora de flagrante delito, sem qualquer mandado, não tendo sido submetido ao primeiro interrogatório nos prazos previstos nos artigos 250.º e 254.º do Código do Processo Penal Angolano (CPPA).

6. O referido pedido foi indeferido pelo Tribunal a quo com fundamento na falta de informação da entidade responsável pela detenção do Recorrente, sobre as circunstâncias e em que condições se mantinha a prisão, decisão de que foi notificado no dia 26 de Agosto de 2024.

7. Inconformado com a decisão proferida pelo Juiz Presidente do Tribunal a quo, interpôs recurso ao Tribunal ad quem, por excesso de prisão preventiva, com fundamento na violação das disposições dos artigos 68.º e 29.º da Constituição da República e 290.º, 291.º, 293.º e 294.º, todos do Código de Processo Penal e do artigo 17.º da Lei n.º 29/22, de 29 de Dezembro.

8. No decurso das providências anteriores interpostas, os prazos de prisão preventiva já se mostravam exauridos, pois, volvidos mais de 4 meses desde a sua detenção, o Recorrente não havia sido notificado de qualquer acusação.

9. Apenas foi deduzida acusação contra si, no dia 22 de Outubro de 2024, da prática do crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punível pela alínea c) do n.º 1 do artigo 405.º, em concurso real com os crimes de associação criminosa p.p pelo n.º 1 do artigo 296.º, ambos do CPA e fraude fiscal, p.p pelo n.º 1 do artigo 172.º, ambos do Código Geral Tributário (CGT).

10. Deste modo, encontra-se em prisão preventiva há 10 meses, desde a data da sua detenção, ultrapassando completamente os prazos, nos termos do disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 283.º do CPPA.

11. O Despacho recorrido violou as normas do n.º 2 do artigo 6.º (princípio da legalidade), do artigo 175.º (sujeição dos Tribunais à Constituição e à lei) e do n.º 1 do artigo 177.º (dever dos tribunais observarem a Constituição, as leis e demais disposições normativas vigentes), todas da CRA.

12. Violou igualmente o n.º 1 do artigo 68.º da CRA, que garante a todos o direito à providência extraordinária do habeas corpus contra o abuso de poder em virtude de prisão ou detenção ilegal, bem como não respeitou o direito fundamental do Recorrente a um processo equitativo e a um julgamento conforme a lei, contrariando as normas dos artigos 29.º e 72.º da CRA, enquanto corolário do princípio do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva.

O Recorrente, em conclusão, termina requerendo que seja declarada a insconstitucionalidade da decisão recorrida, dando-se provimento ao presente recurso e que, em consequência, seja restituido à liberdade.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do parágrafo único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n. º2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, dispõem de legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
O Recorrente foi parte do Processo n.º 357/2024, que tramitou junto do Tribunal da Relação de Luanda, não se conformando com a Decisão prolactada, tem, pois, legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

IV. OBJECTO

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem por objecto verificar se a Decisão proferida pelo Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Luanda, em sede do Processo n.º 357/2024, que indeferiu a providência extraordinária de habeas corpus, ofende princípios, viola direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados.

V. APRECIANDO

O Recorrente veio a este Tribunal por considerar que o Despacho exarado pelo Juiz Desembargador Presidente que negou provimento ao recurso recaído sobre a providência de habeas corpus ofende princípios, direitos e liberdades constitucionalmente consagrados.
Veja-se, pois, se lhe assiste razão;

A Constituição e a lei estabelecem princípios, direitos e garantias que asseguram a existência de um processo (penal) justo e equitativo.

De entre as várias garantias e providências a que o arguido tem direito em sede de um processo, encontra-se aquela que é considerada a única garantia específica extraordinária constitucionalmente consagrada para a defesa do direito à liberdade, ou seja, a providência de habeas corpus, como meio excepcional de situações anómalas que coloquem em causa à liberdade.

O habeas corpus é uma providência com dignidade constitucional e visa proteger contra o abuso de poder em virtude de prisão ou detenção ilegal, a interpor perante o tribunal competente, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 68.º da Constituição da República de Angola (CRA), e tem por finalidade a reposição da legalidade mediante uma decisão tuteladora do direito fundamental à liberdade física ou de locomoção dos cidadãos.

É, portanto, uma providência a ser decretada exclusivamente nas situações em que se verifique um grave atentado à liberdade individual de ir e vir, consubstanciando-se nas situações da ilegalidade da detenção ou da prisão, conforme o estatuído no artigo 290.º do CPPA.

Decorre dos autos, que o Recorrente foi preventivamente detido a 05 de Março de 2024, por existirem indícios da prática do crime de abuso de confiança qualificado, tendo sido detido sem a existência de um mandado de prisão e não ter sido submetido ao primeiro interrogatório dentro do prazo legal de 48 horas para o efeito, ocorrendo somente 9 dias após a detenção, tendo sido formalmente acusado apenas em Outubro de 2024, ou seja, 7 meses depois.

Considerando a gravidade do sucedido, interpôs uma providência de habeas corpus junto do Tribunal da Comarca de Luanda (TCL) tendo sido negado provimento. De igual modo interpôs recurso junto do Tribunal da Relação de Luanda (TRL) que negou provimento com fundamento na falta de requisitos legais para a concessão da mesma.

Importa referir e como atestam as fls. 6, 7, 9 e 10 dos autos, que o Tribunal da Comarca de Belas realizou diligências junto da entidade responsável pela detenção do Recorrente, no sentido de se obterem informações adicionais sobre o estado do processo e da legalidade da detenção sem qualquer resposta plausível durante mais de cinco (5) meses.

Ora, nos termos da Constituição e da Lei, a constituição de arguido (n.º 2 do artigo 63.º do CPPA), mediante despacho lavrado por autoridade competente confere ao cidadão detido a possibilidade de gozar de direitos processuais autónomos.

Um dos direitos autónomos de que goza o arguido é a faculdade da interposição da providência de habeas corpus que deve ser sempre fundamentada e admissível sempre e quando verificados os presupostos previstos no n.º 4 do artigo 290.º do CPPA..

Ao abrigo do n.º 4 da disposição normativa supra, há lugar a providência de habeas corpus sempre que exista prisão ou detenção sem mandado da autoridade competente, quando se tenha excedido o prazo para o arguido detido ou preso preventivamente ser presente ao Magistrado competente para a validação da detenção ou aplicação da prisão preventiva, quando se mantenha a privação da liberdade para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial, e a referida prisão seja feita fora dos locais para este efeito autorizados por lei, quando a privação da liberdade tenha sido ordenada ou efectuada por entidade incompetente e, finalmente, quando se esteja em presença de uma clara violação dos pressupostos e das condições da aplicação da prisão preventiva.

Como podemos aferir pelos pressupostos acima, na providência de habeas corpus, o conceito de prisão ou privação de liberdade ilegal reveste-se de especial atenção, pois, constituí o cerne do bem jurídico lesado, ou seja, a liberdade constitucional de ir e vir.

Sendo assim, daqui decorre a ideia de que a detenção do arguido para fins processuais deve ser sempre fundamentada, e é imperativo que quem a ordene tenha poderes para o efeito, estando a entidade responsável pela detenção ao corrente de todas as informações respeitantes ao mesmo e disponível para eventuais esclarecimentos, sendo que o aplicador da medida (restritiva de liberdade) ao fazê-lo, deverá ter em conta um equilíbrio entre o valor constitucional a proteger e a medida restritiva imposta ao detido/arguido em obediência ao princípio da proporcionalidade.

Confirmada a prisão preventiva, é a própria lei que indica os prazos máximos da sua duração com o objectivo de salvaguardar as garantias constitucionais do arguido em processo penal, bem como garantir o princípio da celeridade processual, e fá-lo mediante a definição de prazos mínimos e máximos de prisão preventiva que variam entre 4 a 18 meses (n.º 1 do artigo 283.º CPPA), podendo os referidos prazos serem alargados, desde que fundamentado, para 6 meses, 8 meses, 14 meses e até ao prazo de 20 meses em função da qualidade ou gravidade do crime ou crimes em causa, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão superior a 5 anos ou nos processos que se revestem de especial complexidade (…), do carácter violento ou crime organizado e do particular circunstancialismo em que foi cometido (n.º 2 do artigo 283.º do CPPA), podendo ainda serem alargados para mais 4 meses em atenção ao que vem estatuído no n.º 4 do mesmo artigo.

A liberdade física é uma das componentes mais importantes do que se considera a liberdade humana e quaisquer medidas que a restrinja, requer uma clara e objectiva previsão legal, bem como, uma justa razão fáctica e em consequência a existência de um sistema legal de controlo e prevenção de excessos. Daqui deriva a condição de se considerar a prisão preventiva como a medida de coacção pessoal mais gravosa e excepcional entre as medidas processuais de natureza cautelar a nível do direito.

No mesmo sentido avulta a doutrina de Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, segundo a qual “a prisão preventiva consiste, assim, numa medida excepcional, razão pela qual não deve ser ordenada ou manter-se quando não existam razões que a justifiquem ou quando seja desnecessária. Ela deve ser substituída por caução ou por outra medida mais favorável que não seja privativa de liberdade” (Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, A Guerra-Viseu, 2014, pág. 378).
O que resulta dos autos:

Compulsados estes, constata-se que o Recorrente foi detido sem qualquer mandado de prisão e sem direito a primeiro interrogatório dentro dos prazos legalmente previstos, em flagrante violação do disposto no n.º 1 do artigo 169.º e artigo 250.º, ambos do CPPA.

Não obstante, este encontra-se detido fora dos prazos legalmente previstos no CPPA na medida em que não tendo sido detido na base de um mandado de prisão, manteve-se preso por um período superior a 4 e 6 meses até a sua acusação que só veio a ocorrer sete (7) meses após a sua detenção, violando-se, assim, o prazo de prisão preventiva previsto na alínea a) e b) do n.º 1 do artigo 283.º do CPPA.

Assim, esta Corte Constitucional não pode deixar de notar com preocupação a falta de diligência e zelo do Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Luanda que, ao apreciar o pedido do Recorrente, não se pronunciou sobre as anteriores diligências efectuadas e se tanto bastasse, ordenar outras, no sentido de se obter elementos probatórios bastantes que justificassem a manutenção da prisão do Recorrente e o facto do mesmo se manter em prisão preventiva para além dos limites legais.

Mais, ainda, entende esta Corte que a actuação quer do Tribunal a quo, quer do Tribunal ad quem, in casu, não se compaginam com os comandos impostos por lei, pois, quer um quer outro, com gravidade e espanto, deixaram de fundamentar as suas respectivas decisões em flagrante violação do que vem estabelecido no n.º 3 do artigo 417.º em conjunção com a alínea a) do n.º 1 do artigo 426.º, ambos do CPPA.
Outrossim, no processo penal é regra fundante deste que o ónus da prova é de quem acusa, ou seja, do Ministério Público, pelo que, não se compreende que tendo sido notificado o órgão que possuía o detido, por mais de uma vez e não obtendo deste qualquer informação, os dignos Magistrados, Ministério Público e Judicial se tenham conformado com aquela atitude em desrespeito ao Tribunal e mantiveram a condição carcerária do Recorrente sem fundamentarem a razão da manutenção desta, vide fls. 16 dos autos, em flagrante violação do princípio da presunção de inocência.

Aliás, este tem sido o entendimento da jurisprudência firmada por esta Corte, conforme o Acórdão n.º 668/2021, de 3 de Março, que nesta matéria é claro e inequívoco ao asseverar que “as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que as sustenta. A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial, na medida em que o dever de o Juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se não pudesse ser sindicado ou se, por alguma forma, essa sindicância fosse afectada”.

E mais ainda, importa referir que das várias ocasiões em que este Tribunal foi chamado a decidir, pronunciou-se sobre o cumprimento rigoroso dos prazos fixados por lei, em sede de prisão preventiva, com o propósito de se assegurar a observância integral dos direitos, garantias e liberdades dos arguidos, vide Acórdãos n.ºs 445/2017, de 28 de Junho, 620/2020, de 21 de Maio, 887/2024, de 15 de Maio, disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao.

Assim e aqui chegados, esta Corte Constitucional conclui que a Decisão recorrida viola o princípio da legalidade (n.º 2 do artigo 6.º), o direito ao devido processo legal (n.º 4 do artigo 29.º), bem como o direito fundamental à liberdade (artigo 36.º), todos da CRA.
Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO RECURSO AO ABRIGO DO ARTIGO 68.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE ANGOLA E ORDENAR A IMEDIATA RESTITUIÇÃO DO RECORRENTE À LIBERDADE.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 11 de Fevereiro de 2025.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Carlos Alberto B. Burity da Silva

Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Gilberto de Faria Magalhães (Relator)

João Carlos António Paulino

Josefa Antónia dos Santos Neto

Lucas Manuel João Quilundo

Maria da Conceição de Almeida Sango

Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva

Vitorino Domingos Hossi