ACÓRDÃO N.º 957/2025
PROCESSO N.º 994-D/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Elizângela Joaquina Pereira Lopes Calado, melhor identificada nos autos, veio ao Tribunal Constitucional impetrar recurso extraordinário de inconstitucionalidade no Processo n.º 953/20, da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, datado de 26 Novembro de 2021, que julgou procedente o recurso e, em consequência, revogou a decisão recorrida, absolvendo a Apelante dos pedidos.
Admitido o recurso e notificada para apresentar alegações, em observância ao disposto no artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), conforme se vê a fls. 241 a 247 dos autos. Alega em síntese que:
1. Na verdade, ao aplicar a medida disciplinar de despedimento, a Apelante não agiu em conformidade com as provas obtidas no processo disciplinar e não observou os fundamentos legais e doutrinários sobre a justa causa.
2. Resultou provado que a trabalhadora não obedeceu aos regulamentos da empresa, no que concerne a recolha parcial dos valores, previsto no manual de procedimentos operacionais. A trabalhadora tem se ausentado do local de trabalho sem autorização prévia, pelo facto de se encontrar em estado de gestação.
3. Dispõe o artigo 51.º da LGT, que na determinação da medida disciplinar devem ser consideradas e ponderadas todas as circunstâncias em que a infracção foi cometida, atendendo-se a sua gravidade e consequências, ao grau de culpa do trabalhador, aos seus antecedentes disciplinares e todas as circunstâncias que agravem ou atenuem a sua responsabilidade.
4. A Recorrente nunca antes fora submetida a qualquer outro tipo de medida disciplinar. O comportamento da trabalhadora ao não obedecer os regulamentos da empresa no que concerne a recolha dos valores no cofre, em momento algum causou prejuízos a empresa, conforme resultou provado.
5. Assim, nos termos do n.º 4 do artigo 76.º da Constituição da República de Angola, o despedimento sem justa causa é ilegal, constituindo-se a entidade empregadora no dever de justa indemnização ao trabalhador despedido, nos termos da lei.
Termina pedindo inteiro provimento ao presente recurso e por via dele que se revogue o Acórdão recorrido por estar em desacordo com a Constituição, designadamente, por violação, entre outros, dos seguintes princípios e direitos constitucionais:
i) violação do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, artigo 29.º da CRA;
ii) princípio da conformidade das decisões dos tribunais com a Constituição e a lei;
iii) princípio da legalidade;
iv) princípio da supremacia da Constituição.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, garantias e liberdades constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos. Esta faculdade está igualmente prevista na alínea m), do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.
III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é parte legítima no Processo n.º 953/20, que correu seus trâmites na Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo. Tem direito a contradizer, segundo dispõe o n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional, por força do artigo 2.º da LPC.
A legitimidade para interpôr o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, cabe-lhe, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC.
IV. OBJECTO
O objecto do presente Recurso é saber se o Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, datado de 26 de Novembro de 2021, proferido no âmbito do Processo n.º 953/20, incorreu, ou não, em inconstitucionalidade.
V. APRECIANDO
A Recorrente, Elizângela Joaquina Pereira Lopes Calado, veio ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por ser parte vencida no processo que correu trâmites na Câmara de Trabalho do Tribunal Supremo, que revogou a decisão recorrida.
O que se vê nos autos a fls. 223, o Tribunal ad quem, revogou a Decisão e, em consequência, absolveu a Apelante dos pedidos, com sustentação no facto de que o Tribunal a quo, valorou erradamente as provas.
Dos autos, constata-se (fls. 209) que o Aresto em crise, apesar de confirmar que a decisão recorrida não está ferida de nulidade, por insuficiência de fundamentação, nos termos do n.º 2 do artigo 659.º e 158.º, alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º, todos do CPC e do artigo 177.º da CRA.
Verifica-se, ainda (fls. 212), na Decisão objecto deste recurso, a conclusão segundo a qual a decisão do Tribunal a quo não está ferida de nulidade, nos termos das alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC.
Outrossim, ainda em sede da Decisão em sindicância, extrai-se (fls. 216) que a Sentença recorrida não violou o princípio do contraditório, estipulado no n.º 1 do artigo 3.º do CPC e no n.º 2 do artigo 174.º da CRA.
Entretanto, surpreendentemente, em sede de apreciação do quesito sobre se o Tribunal a quo valorou ou não erradamente as provas, concluiu, e deu por provado, que do processo disciplinar, junto aos autos, resulta o cometimento efectivo de uma infracção por parte da Recorrente, constituindo justa causa para o despedimento.
Nos termos do disposto no artigo 11.º da LPC, entende-se prejudicado o pronunciamento sobre os outros princípios alegados pela Recorrente, dado que, grande parte deles, foram considerados, na Decisão recorrida, não terem sido violados pelo Tribunal a quo. Por isso, evoca-se, aqui, apenas, o princípio da legalidade, por ofensa ao princípio da estabilidade do emprego, nos termos do n.º 4 do artigo 76.º da CRA.
O direito ao trabalho é um direito fundamental de natureza social, consagrado em vários instrumentos de direito internacional, tais como as Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (artigo 15.º), a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 33.º) e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (artigo 6.º), todos acolhidos no ordenamento jurídico interno.
Sobre esta temática, Adlezio Agostinho, sustenta que, “os princípios jurídicos constitucionais são os princípios informadores da ordem jurídica nacional e decorrem de certas normas e constituem um desdobramento dos princípios fundamentais. Fazem parte destes princípios, o da supremacia da legalidade, igualdade, do contraditório, da protecção dos trabalhadores, entre outros” (o sublinhado é nosso) (Manual de Direito Processual Constitucional, Edições Académicas, 2023, p. 374).
O princípio da estabilidade do emprego ou da protecção dos trabalhadores, como refere a doutrina acima citada, serve de parâmetro da acção do julgador, em sede de processos laborais, bem como da harmonia da relação jurídico laboral, desde o momento inicial a elaboração e efectivação do contrato de trabalho até ao seu término ou extinção.
A propósito do princípio da estabilidade do emprego, a jurisprudência desta Corte Constitucional salienta que “a tipificação deste princípio do direito do trabalho não repousa apenas na Constituição merecendo, também, especial destaque na LGT e demais legislação laboral. Como é sabido o contrato de trabalho resulta de uma mera igualdade formal que coloca uma das partes (trabalhador) numa posição de subordinação jurídica em relação a contraparte (empregador). Daqui deriva, a preocupação patente na CRA em esbater essas assimetrias, estabelecendo, em matéria de despedimentos, uma relação de co-originariedade intrínseca entre o princípio da segurança do emprego e o princípio da justa causa de despedimento cuja ratio predominante, se funda na plena protecção do direito ao trabalho e no princípio da estabilidade contratual” (Acórdão n.º 669/2021). No mesmo sentido estão os Acórdãos n.ºs 798/2023 e 899/2024, todos disponível em www.tribunalconstitucional.ao.
Nos presentes autos, a Recorrente sinaliza que o Acórdão objecto de sindicância do Tribunal ad quem, andou na contra-mão em relação à a Constituição da República de Angola, por violação dos princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, de conformidade das decisões dos tribunais à Constituição e a lei, da supremacia da Constituição e da legalidade.
É mister frisar que esta Corte de justiça constitucional, na sua vertente de Tribunal de direitos humanos, não é, no ordenamento jurídico angolano, mais uma instância da jurisdição comum, estando as suas competências balizadas no artigo 181.º da CRA. Assim sendo, a análise fica reservada, tão-só, à defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais da Recorrente.
De fls. 223 dos autos, o Tribunal ad quem, pontua que o Tribunal a quo valorou erradamente as provas ao julgar o despedimento improcedente da Recorrente. Vejamos então se à luz dos diplomas já citados procede esse entendimento.
Ora, nos termos da doutrina dominante, o despedimento disciplinar é a cessação do contrato de trabalho laboral efectuado pelo empregador, por facto imputável ao trabalhador, desde que se verifique justa causa. Este despedimento disciplinar só será efectivado ou válido, se observar rigorosamente o artigo 50.º da LGT. Sendo certo que, para aplicação da medida disciplinar, não se resume tão somente invocar justa causa, é imperioso, que se verifiquem infracções disciplinares graves do trabalhador, nos termos do artigo 225.º da LGT.
Norberto Capeça, assinala que, “Para que haja justa causa disciplinar é necessário um comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho. Decisivo é averiguar se esse comportamento foi de tal forma grave que tenha por consequência tornar impossível a prossecução da relação de trabalho. Na mesma senda, necessário se torna reconduzir os factos que estão na base da justa causa - o comportamento culposo do trabalhador – a uma dada situação de impossibilidade de subsistência da relação de trabalho”. (Os despedimentos à luz da Nova Lei Geral do Trabalho, 2015, pp. 114 e 115).
No dizer de Palma Ramalho “só se configura uma situação de justa causa de despedimento se do comportamento do trabalhador decorrer a impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral – é o denominado requisito objectivo da justa causa. Fica assim claro que o comportamento do trabalhador, ainda que constitutivo de infracção disciplinar, não é, por si só, justa causa para despedimentos” (Tratado de Direito do Trabalho Parte III – Situações Laborais Individuais, 2014, p. 956 e 957).
No mesmo sentido Glória Rebelo reforça o entendimento acima expendido, asseverando que “a proibição de despedimentos sem justa causa aponta, prima facie, para a consagração de um sistema que privilegia a reintegração em detrimento dos meios meramente ressarcitórios, considerando-se que esta tutela é a que melhor responde ao interesse de um trabalhador despedido ilicitamente” (Estudos de Direito Privado, 2019, p. 76).
Pelo acima exposto, é comum dizer-se que o trabalhador é o hipossuficiente da relação jurídico-laboral mas, tal não significa que o mesmo está desprovido de protecção constitucional e legal. Nos termos do n.º 4 do artigo 76.º da CRA, o despedimento sem justa causa é ilegal, impondo a necessidade da garantia do princípio da estabilidade do emprego.
Por sua vez, a legislação ordinária densifica aquela disposição constitucional, ao estabelecer que “o trabalhador tem direito a estabilidade de emprego, sendo proibido ao empregador extinguir a relação jurídico-laboral, com cessação do contrato de trabalho, por fundamentos não previstos na lei ou com inobservância das disposições deste capítulo” (n.º 1 do artigo 211.º da LGT).
No mais, esta Corte Constitucional considera que o Acórdão recorrido não andou em harmonia com a Constituição nos seus precisos termos, porquanto deixou de observar elementos essenciais para a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais da Recorrente.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO RECURSO, EM VIRTUDE DE O ACÓRDÃO RECORRIDO TER OFENDIDO OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA ESTABILIDADE DO EMPREGO.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 11 de Fevereiro de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)
Lucas Manuel João Quilundo
Maria da Conceição de Almeida Sango
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Vitorino Domingos Hossi