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ACÓRDÃO N.º 963/2025

 

PROCESSO N.º 1091-C/2023

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

António Paulo Lima dos Santos e Constância de Carvalho da Costa Bárber dos Santos, melhor identificados nos autos, vieram ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, que julgou improcedente o pedido de impugnação da decisão da 1.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal da Comarca de Luanda, proferida no âmbito de uma Acção de Reivindicação do Direito de Superfície, impetrada pela Sociedade Tecnidata, Ldª contra os aqui Recorrentes.

Em sede do Tribunal de 1.ª instância, os Recorrentes foram condenados a reconhecer o direito de superfície sobre uma parcela de terreno sita, em Luanda, na Rua Lopes de Lima, e a restituírem-na à Tecnidata, Ldª, livre de pessoas e bens, decisão confirmada pelo Tribunal Supremo e ora objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

Nas alegações submetidas a esta Corte Constitucional, consideram que o Aresto posto em crise violou o princípio da legalidade e o direito à propriedade privada, consagrados, respectivamente, nos n.ºs 2 e 3 do artigo 6.º e no n.º 1 do artigo 37.º, ambos da Constituição da República de Angola (CRA), bem como no artigo 17.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).

Para tanto, alegam, em síntese, o seguinte:

1. Ocupam o terreno em disputa desde o longínquo ano de 1993, local em que edificaram uma moradia familiar, um tanque de água e anexos em alvenaria para escritórios, onde funciona a sociedade APLS, Ldª.

2. Infere-se do Acórdão recorrido que, apesar da posse dos Recorrentes, o Governo da Província de Luanda celebrou com a Tecnidata, Ldª, a 9 Novembro de 2004, um contrato de concessão do direito de superfície sobre a parcela de terreno em litígio, mesmo antes da vigência da Lei n.º 09/04, de 9 de Novembro, Lei de Terras, que só entraria em vigor 90 dias após a sua aprovação.

3. Não estando em vigência a Lei de Terras, o contrato de concessão é nulo, sendo que não foi respeitada a lei, nem observada uma actuação conforme à Constituição.

4. O Tribunal Supremo violou flagrantemente o disposto sobre o exercício do direito de preferência dos Recorrentes para aquisição do direito de superfície, quando alega que estes (Recorrentes) não observaram o disposto no n.º 1 do artigo 84.º da Lei de Terras, que, por sinal, não estava em vigor aquando da concessão do terreno à Tecnidata, Ldª.

5. O Tribunal Supremo não considerou, também, a aquisição pelos Recorrentes do direito de superfície por usucapião, nos termos do artigo 1528.º do Código Civil (CC), uma vez que tinham a posse do terreno onde construíram a citada habitação e anexo.

6. O direito de superfície da Tecnidata, Ldª há muito se extinguiu, pelo facto de esta não ter feito qualquer obra no prazo de 10 anos (vide alínea a) do n.º 1, do artigo 1536.º do CC.), sendo que o aludido direito de superfície não podia ter sido reconhecido pelo Tribunal Supremo.

7. O Estado protege a propriedade privada das pessoas singulares e colectivas, mas o Acórdão recorrido privou os Recorrentes do seu direito à propriedade privada ao fazer prevalecer o contrato de concessão do direito de superfície da Tecnidata, Ldª, apesar de reconhecer que os Recorrentes edificaram, no ano de 1993, uma moradia (onde residem com os filhos e netos), um anexo (escritório onde trabalham) e um tanque de água.

Em face do acima exposto, os Recorrentes terminam pedindo a este Tribunal que declare a inconstitucionalidade do Acórdão posto em crise por ofensa a princípios e regras constitucionais.

O processo foi à vista do Ministério Público que propugnou pelo não provimento do recurso, tendo considerado que o aresto recorrido procedeu a uma apreciação objectiva e clara, fundamentada na melhor doutrina e na legislação reguladora das matérias suscitadas pelos Recorrentes no seu recurso de Apelação, acentuando que estes não conseguiram provar, em sede própria e mediante título legalmente válido, a posse do terreno que alegaram deterem há muitos anos.

Colhidos os vistos legais dos Juízes Conselheiros cumpre, agora, apreciar, para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é, de harmonia com a alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que violem princípios, direitos, garantias e liberdades previstos na Constituição, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente cabíveis, faculdade igualmente estabelecida na alínea m), do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, LOTC.

A decisão proferida pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro Tribunal Supremo esgota, deste modo, a cadeia de recursos ordinários da jurisdição comum.

III. LEGITIMIDADE

Estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC que têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade “(…) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

Os Recorrentes são parte vencida no processo cujo Acórdão é objecto da presente sindicância. Têm, como tal, legitimidade processual activa para recorrer, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 293.º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional em decorrência do disposto no artigo 2.º da LPC.

IV. OBJECTO

Constitui objecto deste recurso verificar se o Acórdão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo n.º 2401/17, viola princípios e direitos constitucionais, nomeadamente, o princípio da legalidade e o direito à propriedade privada.


V. APRECIANDO

Inconformados com o facto de terem sido condenados a reconhecer o direito de superfície sobre uma parcela de terreno e de a restituírem ao superficiário, Tecnidata, Lda, os Recorrentes consideram que o Aresto objecto da presente impugnação, que neste sentido decidiu, viola, nos seus termos e fundamentos, o princípio da legalidade e o seu direito à propriedade privada.

Cabe, assim, ajuizar se lhes assistirá razão.

a) Da alegada ofensa ao princípio da legalidade.

O princípio da legalidade, consagrado no n.º 2 do artigo 6.º da CRA e com reflexo nos artigos 175.º, no n.º 1 do 177.º e 179.º, também da Constituição da República de Angola (CRA), constitui um dos alicerces do Estado Democrático de Direito, materializa a exigência de submissão da acção dos poderes públicos à lei, à ordem jurídica estabelecida, sendo garante de protecção de direitos fundamentais e pressuposto de segurança jurídica, como tem acentuado esta Corte Constitucional.

Aplicado à função jurisdicional, decorre deste enunciado que os actos que têm por objectivo resolver questões jurídicas incidentes sobre um caso concreto, devem, como condição da sua validade, encontrar o devido amparo na lei e na Constituição, por forma à realização da justiça e do direito. Assim não acontecendo, resultará violado o princípio em causa.

Ora, ao apreciar a Apelação interposta pelos aqui Recorrentes, o Tribunal Supremo, estando em causa a reivindicação do direito de superfície, circunscreveu o seu objecto a quatro questões relacionadas com este direito, a que procurou dar resposta. Foram estas, a questão referente à eventual extinção do direito de superfície detido pela Tecnidata, Lda, por caducidade do direito de demandar a sua atribuição, a relacionada com a aquisição, pelos Recorrentes, do direito de superfície por usucapião, a relativa à invalidade do contrato que concede o direito de superfície à Tecnidata, Ldª e a respeitante à alegada violação do direito de preferência dos Recorrentes como consequência da concessão do direito de superfície à empresa Tecnidata.

Para tanto, deu como provado o seguinte: o facto de, em Novembro de 2004, ter sido celebrado entre a Tecnidata, Lda e o Governo da Província de Luanda um contrato de constituição do direito de superfície sobre o terreno sito na Rua Lopes de Lima, em Luanda; o facto de este direito ter sido registado pela Tecnidata, Ldª na 1.ª Secção da Conservatória do Registo Predial, sob o n.º 915; o facto de os aqui Recorrentes ocuparem parte considerável do terreno, onde construíram anexos e colocaram tanques de água e o facto de os Recorrentes ocuparem o terreno em causa sem qualquer título.

Com base na factualidade provada e em resultado do processo de aplicação dos dispositivos legais convocados para a resolução da contenda, conforme o sentido e o alcance que lhes foram atribuídos, o Tribunal recorrido concluiu pela não caducidade do direito da Tecnidata, Ldª de propor a acção de reivindicação do direito de superfície, por se tratar de um direito real sujeito ao regime jurídico previsto nos artigos 1311.º e 1315.º do Código Civil. A este respeito, é enfatizado que ante um contrato celebrado e com a vigência de 25 anos, renováveis, torna-se falacioso alegar que o direito de acção caducou, uma vez que continua o decurso do prazo contratualmente estabelecido.

Relativamente à questão da aquisição pelos Recorrentes do direito de superfície por usucapião, o Tribunal Supremo, amparado no artigo 1287.º do CC e no nº 4.º do artigo 6.º da Lei de Terras, que estabelece que “não podem adquirir-se por usucapião quaisquer direitos sobre terrenos integrados no domínio privado do Estado”, conclui no sentido de não se verificar a pretendida aquisição.

Quanto à invalidade do contrato de constituição do direito de superfície, estava em causa o fundamento de ter sido celebrado antes da entrada em vigor da Lei de Terras. A este respeito lê-se no aresto posto em crise, a fls. 178, o seguinte: “(…) dizer que conceder um título de concessão de direito de superfície antes da entrada em vigor da Lei de Terras de 2004 é contrário à lei, traduzir-se-ia numa afirmação sem fundamento, pois estipula o n.º 1 do artigo 83.º da referida lei que “os direitos de superfície constituídos ao abrigo da Lei n.º 21-C/92, de 28 de Agosto (…) ficam sujeitos ao direito de superfície previsto na presente lei.” Isto indica que antes da Lei de Terras de 2004 havia contratos de constituição de direitos de superfície e os seus registos, ao abrigo da Lei de Terras de 1992 e do direito de superfície previsto no Código Civil. Em face do exposto, deve concluir-se que não deve ser declarado inválido o contrato de constituição do direito de superfície e o seu respectivo registo (…)”.

Com relação à alegada violação do direito de preferência dos Recorrentes em virtude da atribuição à Tecnidata, Ldª do direito de superfície, é acentuado, no Acórdão impugnado, o facto de os Recorrentes ocuparem o terreno, propriedade do Estado, sem qualquer título legítimo que justifique a referida ocupação, contrariamente à Tecnidata, Ldª, que é detentora do contrato de constituição do direito de superfície, o que, à luz do disposto no n.º 2 do artigo 84.º da Lei de Terras, implica a não aquisição de qualquer direito fundiário pelo ocupante, por força da inexistência do título.

Em face do que antecede, parece ser de admitir que a justificação legal em que se sustenta a decisão tomada pelo Tribunal recorrido não contende com o princípio da legalidade, tendo em atenção o entendimento do julgador relativamente ao âmbito de protecção das normas legais que foram aplicadas na resolução do litígio submetido à apreciação da Câmara do Civil, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo. E isto, não obstante se considere que a decisão judicial apropriada à solução do caso concreto pode não resultar, apenas, da subordinação dos factos à norma legal, mas igualmente de outros elementos tendentes à realização do direito e da justiça, como os princípios fundamentais ou os valores que conformam um dado ordenamento jurídico, o que também reflecte uma outra dimensão do princípio da legalidade.

Em concreto, a solução jurídica adoptada pelo Tribunal recorrido e vertida no Acórdão objecto da presente impugnação não evidencia violação à lei substantiva, quer se tenha em conta a qualificação dos factos, a determinação dos preceitos legais aplicados e a interpretação que lhes foi dada, quer, ainda, a determinação das consequências jurídicas resultantes da aplicação da lei.

Nesta medida, considerando a relação entre a factualidade provada e a solução jurídica decorrente do regime legal aplicado, não é de inferir que a decisão prolactada, ainda que desfavorável aos Recorrentes, seja contrária à lei e, consequentemente, à Constituição, não configurando, por isso, violação ao princípio da legalidade.

Ademais, não será despiciendo reiterar, como espelhado na jurisprudência deste Tribunal, que esta instância Constitucional não “é um tribunal supervisor da veracidade e das constatações fácticas efectuadas à interpretação das leis e à aplicação da lei ao caso concreto” (Adlezio Agostinho, Manual de Direito Processual Constitucional: Princípios Doutrinários e Procedimentais sobre as Garantias Constitucionais, Parte Geral e Especial, AAFDL Editora, Lisboa, 2023, p. 776). Enquanto instância de recurso, não possui poderes substitutivos aos da jurisdição comum, não lhe competindo, por essa razão, “apreciar a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo principal.” (Carlos Blanco de Morais, Justiça Constitucional, o Direito do Contencioso Constitucional, Tomo II, 2.ª ed., Coimbra Editora, p. 619).

 

Na perspectiva de conferir protecção a princípios, direitos e garantias fundamentais, este Tribunal tem igualmente entendido que é chamado a intervir, apenas quando “as vias ordinárias de protecção não obtiverem êxito ou produzirem resultados insatisfatórios (…) ou quando a própria justiça ordinária for causadora da situação de vulnerabilidade do direito fundamental, através das suas acções ou omissões.” (Adlezio Agostinho, obra supra citada, p. 764).

Atentos ao caso vertente, impor-se-á, assim, concluir que a Decisão impugnada se situa dentro dos parâmetros de interpretação e aplicação da legislação infraconstitucional a que o Acórdão recorrido faz recurso.

b) Da alegada violação do direito de propriedade privada

A violação do direito de propriedade (propriedade privada) é arguida pelos Recorrentes por considerarem que o Acórdão impugnado fez prevalecer o direito de superfície atribuído à Tecnidata, Ldª sobre o seu direito de propriedade aos anexos construídos no terreno sobre o qual recaiu o referido direito de superfície. Pelo facto, alegam que colide quer com o estabelecido nos artigos 14.º e 37.º da CRA, quer com o previsto no artigo 17.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que dispõe que “toda a pessoa, individual ou colectivamente, tem direito à propriedade e que ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade”.

Enquanto direito fundamental, é atribuído ao direito de propriedade um sentido mais amplo do que aquele que resulta da concepção civilística, prevista no Código Civil, sendo, nesta sua dimensão, percebido como “qualquer direito de conteúdo patrimonial, económico, tudo o que possa ser convertido em dinheiro, alcançando créditos e direitos pessoais (…).” (Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, p. 301).

Ainda assim e para o que ora releva, o direito de propriedade pode ser compreendido como o que confere ao seu titular um conjunto de amplos poderes que envolvem o uso, a fruição e a disposição de determinado bem, a sua transmissão em vida e por morte e a faculdade de reavê-lo de quem injustamente dele se tenha apossado. Como referem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “um elemento essencial deste direito consiste no direito de não se ser privado da propriedade, nem do seu uso (…) e de ser indemnizado no caso de desapropriação (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 3.ª ed., revista, Vol. I, p. 805). Aliás, é também neste sentido que dispõem os artigos 1308.º e 1310.º do CC, estando em conformidade com a previsão do n.º 2 do artigo 37º da CRA.

No caso sub judice, o direito de propriedade reivindicado pelos Recorrentes incide sobre bens implantados em terreno sobre o qual foi concedido, pelo Governo da Província de Luanda, um direito de superfície a um ente terceiro, a Tecnidata, Ldª, ao abrigo da Lei n.º 21-C/92, de 28 de Agosto, que, entretanto, viria a ser revogada pela Lei n.º 09/04, a Lei de Terras actualmente em vigência.

Nos termos destes dois diplomas, e ainda que a Lei n.º 21-C/92 não se referisse especificamente ao direito de superfície, o regime legal estabelecido para este direito, mesmo que subsidiariamente, era e continua a ser, também, o que decorre do Código Civil. Não está, assim, afastada, com as devidas excepções resultantes das especificidades estabelecidas na Lei n.º 9/04, a aplicação das normas de direito civil, mormente as do Código Civil, a alguns dos direitos reais nela consagrados, como o direito de superfície, (vide n.º 2 do artigo 39.º da Lei n.º 9/04), fazendo-se valer neste domínio, se necessário for, as regras básicas que possibilitam a articulação da Lei de Terras com o Código Civil.

Assim, conforme assinala José Alberto Vieira, se houver norma jurídica ou princípio na Lei de Terras que regule a situação, ela aplica-se com exclusão do Direito Civil. Caso a situação não se encontre regulada normativamente pela Lei de Terras, nem coberta por um princípio acolhido por esta, o Direito Civil, nomeadamente, o Código Civil será aplicável, contanto que a isso não se oponha a excepcionalidade da primeira (Direitos Reais de Angola, Petrony Editora, 2.ª ed., p. 736).

Destarte, o conceito a ter em conta de direito de superfície é o que consta do artigo 1524.º do CC, que o define como a “faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações”, o que José de Oliveira Ascensão enuncia, resumidamente, como “o direito real de ter coisa própria incorporada em terreno alheio.” (Direito Civil, Reais, Coimbra Editora, 5.ª ed., Reimpressão, 2011, p. 525).

Para o titular deste direito decorre, pois, o poder de construir ou fazer plantação em terreno alheio, o poder de manter a obra ou a plantação no solo alheio e o poder de disposição, que passa, por força da titularidade, a deter dois direitos com um objecto incidente sobre bens jurídicos diferentes. O direito sobre o solo, relativamente ao qual recai o direito de superfície propriamente dito, e o direito de propriedade sobre o “implante material (obra) ou vegetal (plantação)”. Por outro, enquanto o direito de superfície não se extinguir, o proprietário do solo não possui qualquer direito sobre a obra implantada no terreno.

A par disso, e tendo em atenção o estabelecido na segunda parte do artigo 1528.º do CC, importará, ainda, anotar que na situação em que sobre o terreno existir já implantada qualquer obra ou plantação, o superficiário (no caso vertente, o Apelado) passa a deter, igualmente, o direito de propriedade sobre esses bens, também designado por direito de propriedade superficiária.

Nos presentes autos, o direito de superfície reivindicado pelos Recorrentes não foi reconhecido pelo Tribunal recorrido, a nenhum título, nem por aplicação das normas do Código Civil, nem pelas constantes da legislação especial sobre a matéria, como a Lei de Terras em vigência ou Lei n.º 21-C/92. Logo, os argumentos expedidos pelos Recorrentes não encontraram respaldo na legislação aqui mencionada e, até mesmo, na situação em que se poderia fazer aplicar ou a Lei de Terras ou o Código Civil.

A exemplo, no caso da reclamada aquisição do direito de superfície por usucapião, o Tribunal Supremo julgou improcedente esta pretensão dos Recorrentes estribado no artigo 6.º da Lei de Terras, conforme já antes assinalado. Todavia, ainda que por mera hipótese, tivesse feito recurso às normas do Código Civil, a decisão não seria diferente. É que não tendo os Recorrentes nenhum título de registo da aquisição do direito e nem da mera posse sobre o terreno, como supra espelhado, a reivindicada aquisição do direito de superfície por usucapião, de que decorreria a constituição do direito de propriedade, não seria reconhecida tendo em conta a data de registo do contrato de concessão do direito de superfície à Tecnidata, Ldª.

Nos termos do artigo 1296.º do CC, não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse for de boa-fé, e de 20 anos, se for de má-fé. Ora, a posse por ocupação do terreno ocorreu em 1993 e a atribuição do direito de superfície à Tecnidata, Ld.ª verificou-se em 2004.

Acresce que, afastada a constituição do direito de superfície e não havendo, in casu, qualquer autorização para edificar obra ou plantação em solo alheio, o proprietário do terreno, por força do princípio de acessão, reflectido no artigo 1325.º e seguintes do CC, e do disposto no artigo 1316.º, também do Código Civil, passa a ser o proprietário da construção, sem prejuízo da obrigação de indemnizar o autor delas do valor que tinham ao tempo da incorporação, nos termos do n.º 3 do artigo 1340.º do CC.

Assim compreendendo, é de concluir que não se consuma a alegada violação ao direito de propriedade privada dos Recorrentes que construíram em terreno alheio, integrado no domínio privado do Estado, uma moradia destinada à habitação, anexos e um tanque de água.
Nestes termos,

DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PEDIDO, TENDO EM CONTA QUE O ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO ENFERMA DO VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE, POIS NÃO OFENDE O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE NEM VIOLA O DIREITO DE PROPRIEDADE.

Custas pelos Recorrentes, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 12 de Fevereiro de 2025.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Carlos Alberto B. Burity da Silva

Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Gilberto de Faria Magalhães

João Carlos António Paulino

Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)

Lucas Manuel João Quilundo

Maria da Conceição de Almeida Sango

Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva

Vitorino Domingos Hossi