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ACÓRDÃO N.º 964/2025

 

PROCESSO N.º 1178-B/2024

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Grupo Desportivo Sagrada Esperança, melhor identificado nos autos do processo supra cotado, veio, por manifesta dissensão, interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade (REI) à esta Corte, em virtude da prolacção do Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, em sede do Processo n.º 969/2020, que negou provimento ao recurso de apelação e, em consequência, manteve a Sentença lavrada pelo Tribunal a quo.

Com efeito, tomou como suporte os fundamentos constantes nos artigos 180.º, alínea d) da Constituição da República de Angola (CRA) e alínea a) do 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), tendo aduzido, em síntese, o que abaixo se extrai das respectivas alegações.
1. O Recorrente celebrou com o trabalhador um contrato de trabalho desportivo, destinado a vigorar por duas épocas desportivas, respeitante aos anos de 2018 e 2019.

2. O trabalhador auferia o valor mensal correspondente a Kz 500 000,00 (quinhentos mil kwanzas) e a título de luvas o montante de Kz 5 000 000,00 (cinco milhões de kwanzas).

3. Finda a época desportiva de 2018, o atleta ausentou-se por motivo de gozo de férias. Porém, até a data de abertura da segunda época desportiva não se apresentou na sede do Recorrente. Esteve ausente desde o mês de Outubro de 2018 a Fevereiro de 2019.

4. A ausência injustificada e prolongada do atleta impeliu o Recorrente a declarar o abandono de trabalho em Fevereiro de 2019, sabendo que o contrato conheceria termo em Maio do mesmo ano.

5. Ao contrário do que postula o atleta e corrobora o Aresto recorrido, a relação laboral não foi extinta por meio de uma ligação telefónica.

6. A petição inicial não expõe os factos sobre os quais este fundamenta os pedidos que formulou, sendo, portanto, omissa quanto à causa de pedir, ocasionando a sua ineptidão e consequentemente a prossecução da excepção dilatória.

7. O Recorrente foi condenado a pagar os salários ao atleta até ao trânsito em julgado do processo, pese embora o contrato e as disposições legais prevejam outra solução.

8. Não se pode concordar com a Decisão, pois negligencia importantes princípios constitucionais. Em primeiro lugar, o direito a um julgamento justo, equitativo e conforme, foi ignorado, violando o artigo 29.º, n.º 5 e o artigo 72.º da Constituição.

9. A Decisão não considerou o princípio da igualdade, estabelecido no artigo 23.º, n.º 1 e o princípio da legalidade, que está presente nos artigos 6.º, 174.º, n.º 2, 175.º e 177.º n.º 1, da Constituição, cuja omissão compromete a legitimidade do Aresto.

10. O Acórdão recorrido falha ao não cumprir a alínea c) do n.º 1 do artigo 467.º do Código de Processo Civil (CPC), que exige a exposição dos factos e razões jurídicas que fundamentam a acção. A petição inicial omitiu factos concretos para justificar pedidos como Kz 5 000 000,00 (cinco milhões de kwanzas), a título de luvas, Kz 680 000,00 (seiscentos e oitenta mil kwanzas), de impostos devidos, Kz 10 000 000,00 (dez milhões de kwanzas), como compensação liberatória e Kz 2 000 000,00 (dois milhões de kwanzas) para honorários de advogado e juros de mora, ferindo o princípio constitucional do direito a um processo equitativo.

11. A falta de apresentação desses factos configura uma inexistência de causa de pedir, resultando na nulidade do processo, conforme o n.º 1 do artigo 193.º do CPC. Tal nulidade é uma excepção dilatória, que, segundo o artigo 495.º do CPC, deve ser reconhecida oficiosamente, impedindo o tribunal de julgar o mérito da questão e implicando a absolvição da instância. Ao não respeitar esses preceitos processuais, a decisão violou o princípio constitucional da legalidade e do direito a julgamento justo e conforme.

12. O Acórdão em questão apresenta nulidade, conforme a alínea d) do artigo 668.º do CPC, por não se pronunciar sobre a questão relevante de saber se o praticante desportivo foi efectivamente despedido em Setembro de 2018. Houve violação do princípio do processo devido, consagrado no artigo 72.º da Constituição, ao não se organizar um questionário adequado nos termos do artigo 511.º do CPC, comprometendo a base para a produção de provas. A decisão também desconsiderou a obrigatoriedade de juntar provas com a petição inicial, conforme exigido pela legislação laboral aplicável (n.º 2 do artigo 67.º da Lei n.º 2/24), o que infringe o direito a um processo justo e equitativo.

13. A Decisão em questão violou o princípio da igualdade, previsto no n.º 1 do artigo 23.º da Constituição, ao não garantir uma adequada fixação da matéria de facto no processo, conforme exigido pelo artigo 511.º do CPC. O Tribunal se limitou a seleccionar alguns factos com base nas alegações das partes, ao invés de considerar os essenciais para uma decisão justa, conforme estipulado pelo artigo 664.º do CPC, comprometendo a igualdade na aplicação da lei e o devido processo legal.

14. A Decisão recorrida violou o princípio da legalidade, estabelecido nos artigos 6.º, n.º 2 do 174.º, 175.º, e n.º 1 do 177.º da Constituição, ao condenar o Grupo Desportivo Sagrada Esperança a pagar Kz 4 000 000,00 (quatro milhões kwanzas) como crédito salarial, além do período de caducidade do contrato. A Decisão desconsiderou a necessidade de deduzir valores provenientes de novo emprego do atleta, infringindo nomas do Código Civil (artigo 562.º e da antiga Lei Geral do Trabalho (artigos 208.º, n.º 3 e 209.º, n.º 3), bem como o Decreto Presidencial n.º 238/19.

15. A compensação liberatória, prevista no contrato de trabalho desportivo, não se aplica ao Clube e caso tenha algum valor deve ser considerada como uma cláusula penal, conforme disposto no artigo 562.º do Código Civil e no Decreto Presidencial n.º 238/19, o que significa que o valor da indemnização deve ser ajustado e não pode incluir adicionalmente os juros de mora e multa liberatória. O pagamento de honorários de advogado viola o artigo 193.º, n.º 3 da Constituição e o artigo 18.º da Lei n.º 8/17, que atribuem essa responsabilidade ao beneficiário dos serviços jurídicos, não ao empregador.

Termina pedindo a revogação do Acórdão recorrido, por considerar que o mesmo viola os preceitos constitucionais respeitantes ao direito a julgamento justo e conforme, à igualdade e à legalidade.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, apreciar e decidir.

II. COMPETÊNCIA

Nos precisos termos figurados na alínea a) do artigo 49.º e do artigo 53.º ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC) – combinados com a alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) – esta Corte é competente para conhecer do mérito do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade (REI).
Foi observado o esgotamento prévio da cadeia recursória, pressuposto grifado no parágrafo único do artigo 49.º da Lei do Processo Constitucional (LPC).

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente possui legitimidade para demandar em sede desta instância constitucional, o presente REI, porquanto litigou na qualidade de Apelante durante a pendência do Processo n.º 969/2020 que tramitou junto da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, facto que encontra amparo legal na alínea a) do artigo 50.º da LPC.

IV. OBJECTO

Este recurso tem o seu mérito encerrado no conteúdo decisório que radica no Acórdão proferido pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, sob o Processo n.º 969/2020, cujo fulcro consiste em aferir se o mesmo está ou não inquinado das inconstitucionalidades invocadas, nomeadamente, a violação do direito a julgamento justo e conforme, a ofensa dos princípios da igualdade e da legalidade.

V. APRECIANDO
1. Da ofensa ao princípio da igualdade
Da leitura feita às alegações do Recorrente, extrai-se o protesto de que o Acórdão recorrido não observou o princípio da igualdade, posto que, decorre do mesmo a desconsideração dos argumentos que ofereceu em sua defesa, comparativamente aos prestados pelo atleta (Apelado em sede daquela instância ad quem).

Com vista ao melhor discernimento do tópico introduzido, sobrelevam duas teses que vozeiam por ajuizamento prévio. A primeira consiste em saber se o Secretário-Geral do GDSE detinha legitimidade para representar o Recorrente em juízo (vide fls. 43-44). A segunda, compreende aferir se gozava do necessário regalo legal para praticar actos processuais em nome do GDSE, para em seguida reflectir se o documento de fls. 25-26 está apto para produzir os devidos efeitos jurídicos almejados pelo Recorrente.
O n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 22B/92, de 9 de Setembro, estabelece que, no tocante à constituição de mandatário judicial em matéria laboral, as partes a isso não são obrigadas, podendo, no entanto, ser constituídos em qualquer fase do processo ou instância em que o mesmo tramita.

É chamado à colação o mérito que se esgota da hermenêutica feita à parte introdutória do n.º 2 do artigo 32.º do CPC – aplicável ex vi do artigo 9.º da Lei n.º 7/15, de 15 de Junho, doravante LGT, vigente a data dos factos – que nesse particular concorre com o supradito, expondo que os candidatos à advocacia, os solicitadores e as próprias partes podem apresentar os seus próprios requerimentos.
Por força da confluência dos artigos referidos, concretamente o n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 22-B/92, de 9 de Setembro, e a parte introdutória do n.º 2 do artigo 32.º do CPC, nada obstava que o Secretário-Geral, membro do Conselho de Direcção do Grupo Desportivo Sagrada Esperança, actuasse em representação do Recorrente, praticando actos de relevo em sede do processo.

Nesta órbita, preceitua ainda o legislador no artigo 258.º do CC, que os efeitos jurídicos resultantes da actuação do representante em nome do representado, dentro dos limites que lhe competem, se repercutem na esfera jurídica deste último. Contanto que é o próprio estatuto do GDSE que confere ao Secretário Geral poderes amplos de representação e não se tendo assistido à falta ou vício da vontade decorrentes da actuação do Recorrente, a arguição da litigância ilegítima configura uma situação postiça (artigo 23.º e a alínea a) do artigo 24.º, ambos do Estatuto do GDSE – Diário da República, II Série, n.º 137, de 24 de Julho de 2008).

De resto, por muito que se queira cogitar um cenário eventual em que a actuação do Secretário-Geral se tenha materializado alheada das vigas legitimadoras previstas pelo Estatuto do respectivo grupo desportivo, a verdade é que, sem grandes óbices, tais actos poderiam, a posteriori, ser ratificados pelo Presidente do Clube, na qualidade de expoente máximo da agremiação em causa, com produção retroactiva dos seus efeitos. Essa ratificação é, verdadeiramente, uma forma de convalidação (cfr. artigo 268.º do CC).

A propósito, a norma do artigo 260.º do CC estabelece que “se uma pessoa dirigir em nome de outrem uma declaração a terceiro, pode este exigir que o representante, dentro do prazo razoável, faça prova dos seus poderes, sob pena de a declaração não produzir efeitos”.
Sendo verdade consabida que a intervenção do Secretário-Geral do GDSE dotada estava de eficácia jurídica para o vislumbre dos desideratos que propugnava em sede do libelo – em nome do Recorrente – e, não tendo se verificado nenhum dos impedimentos descortinados nos artigos 259.º, n.º 1, 260.º, 268.º e 269.º, todos do CC, não procede o juízo por via do qual se pautou o Acórdão recorrido, ao conferir arrimo a Sentença a quo.

Como fica claro de ver, a ratio decidendi ao qualificar como ilegítima a representação do Secretário-Geral do GDSE, inquinou de ineficácia as declarações que prestou no documento de fls. 25-26, beliscando não apenas a garantia da plenitude de defesa que ao Recorrente legalmente assistia, assim como configura flagrante desvio aos princípios da igualdade e do direito a julgamento justo e conforme.
Versado no artigo 23.º da Magna Carta, o axioma da “égalité” constitui a substrução do Estado de Direito e Democrático, ao qual se atribui a qualidade de um direito fundamental e também de um princípio, vinculando tanto o legislador na feitura da lei, quanto o julgador no exercício da respectiva subsunção aos casos concretos.

No mesmo diapasão, Gilmar Ferreira Mendes assevera que “a concepção que identifica os direitos fundamentais como princípios objetivos, legitima a ideia de que o Estado se obriga não apenas a garantir os direitos fundamentais contra agressão ensejada por actos de terceiros, mas também a observar os direitos de qualquer indivíduo em face das investidas do Poder Público (direito fundamental enquanto direito de proteção ou de defesa)” (Os direitos fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional, in Revista Eletrônica de Direito do Estado, Número 23 – Julho/Agosto/Setembro de 2010 – Salvador – Bahia – Brasil - ISSN 1981-187X p. 10).

Assevera ainda Jorge Miranda que “o acesso aos Tribunais, requer, sobretudo, a subordinação da tutela do direito ao devido processo, ao qual a lei fundamental se refere como equitativo” (Manual de Direito Constitucional: Direitos fundamentais, Tomo IV, 5.ª ed., Coimbra Editora, 2012, p. 357). Este é claramente o entendimento que se colhe do n.º 4, parte final, do artigo 29.º, sendo tido como equitativo, o processo que se paute, em toda a sua extensão, pelas traves das garantias de defesa, do contraditório (n.º 1 do artigo 67.º da CRA e artigo 3.º CPC), da igualdade (artigo 23.º, parte final do n.º 4 do artigo 29.º, ambos da CRA), da preclusão (artigo 489.º CPC), entre outros.

Não subsiste dúvida, tal como enfatizado, que a Decisão sob escrutínio ofendeu a garantia que ao Recorrente assistia, de pleitear na lide velado em todo decurso pelo dever de tratamento isonómico.

No que concerne à pretensa deficiência na elaboração do questionário, factor que comprometeu o processo de produção das provas, nos termos do artigo 511.º do CPC, vale sublinhar que, se coteja dos autos fundamentos que justificam tal protesto, posto que, com recurso a fls. 49, se afere que foram consignados apenas os factos descritos pelo Apelado (Autor naquela instância). Esteve na base desta fixação menos assertiva, o facto de o Tribunal a quo não ter conferido ao documento de fls. 25 e 26 a dignidade de contestação, em virtude de ter sido assinado pelo Secretário-Geral do GDSE, derrapando para o desvalor do conteúdo do mesmo, facto que obstou ao respectivo aproveitamento visado por parte do Recorrente.

Assim, atento aos fundamentos já expostos, esta Corte conclui que o Acórdão recorrido ofendeu o princípio da igualdade, pelo que, razão assiste ao Recorrente.

2. Da violação do direito a julgamento justo e conforme.
Do conjunto arrazoado pelo Recorrente, se extrai também que o Aresto sob escrutínio postergou a garantia constitucional epigrafada, visto que considera ser ininteligível a causa de pedir do Apelado, asseverando não ter este exposto a causa bastante sobre a qual estriba os pedidos que formulou no final do respectivo articulado e sequer juntou os concernentes elementos probatórios. Assistirá razão ao Recorrente? Veja-se.

Após a narração factual e jurídica no articulado, “é essencial a formulação da causa de pedir, (...) donde resulta o pedido formulado. Considerando que a causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido; Assim, se o autor (...) não mencionar o facto concreto que lhe serve de fundamento (...), a petição será inepta” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio E Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, pp. 245 e 249).

O artigo 467.º expõe o esboço do esquema da petição inicial à que se encontra adstrito o autor no acto da sua elaboração, sob pena de ser declarada inepta, em harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 193.º, advento que implica o indeferimento liminar da mesma nos termos da alínea a) do artigo 474.º e, consequentemente, a nulidade de todo o processo, ocasionando a absolvição do réu da instância conforme o n.º 1, alínea b) do artigo 288.º, todos do CPC.

Partindo da premissa de que “a causa de pedir deve estar para com o pedido na mesma relação lógica em que, na sentença, os fundamentos hão-de estar para com a decisão” (Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 18.ª ed. Actualizada, Ediforum Edições, 2004, p.272);
Após o escrutínio minucioso, é dominante o reflexo por meio do qual se projecta com limpidez o nexo estrutural entre os pedidos formulados pelo Apelado e a respectiva causa de pedir que os viriliza, porquanto, do conteúdo exposto no articulado em questão se destaca com bastante precisão a descrição dos factos, não se vislumbrando qualquer abordagem omissa, ambígua e ininteligível, que comprometesse uma segura aferição da causa de pedir (fls. 3-7).

Neste particular, importa referir que não se deve, sob hipótese alguma, confundir a inexistência dos fundamentos que amparam a causa de pedir do autor, com o juízo de valor que do mesmo se extrai pela contraparte. Na verdade, a cada litigante cabe alegar os factos conforme a percepção que tiver sobre o realismo factual e jurídico da causa – oposição frontal entre duas ideias – ainda que tais argumentos se mostrem improcedentes à vista do oponente.

Cumprirá, às instâncias jurisdicionais, aferir a veracidade destes, com suporte nas provas carreadas aos autos, com vista à concretização de um julgamento que mais do que se pautar pela lógica impingida nas alegações oferecidas em juízo, se auspicie ponderado, equitativo e justo. Deste modo, estará o julgador a “prestar um papel assistencial que garanta às partes uma efectiva tutela jurisdicional (...)” (José Igreja Matos, Um Modelo de Juiz para o Processo Civil Actual, Coimbra Editora, 2010, pp. 64 e 74).

Outrossim, encorpam os autos que o atleta (Apelado) declara ter sido despedido sem justa causa, por intermédio de uma ligação telefónica perpetrada por um trabalhador afecto ao GDSE (Recorrente), sendo na verdade este o mote do dissenso entre os litigantes e o fulcro da presente demanda.

Ora, do cotejo dos autos, não se extrai sob qualquer forma, prova alguma respeitante à referida comunicação via telefónica entre o alegado trabalhador pretensamente mandatado pelo Recorrente e o jogador de futebol (Apelado). A verdade sobre o aludido telefonema, que não se recorta provada nos autos, corresponde à uma mera alegação do Apelado e que fez pelugem, sem indagação, na convicção que ficou sedimentada na Sentença a quo e que mereceu o alinhamento do Acórdão sob escrutínio. Dito de modo diverso, não se conferiu ao Tribunal a quo os meios probatórios bastantes e manifestamente concludentes, a ponto de servirem de base para a formulação da motivação da decisão judicial no sentido que àquele aproveitaria e, concomitantemente, a instância ad quem trilhou o mesmo diapasão.

Assim, não sendo notório ou de conhecimento oficioso o facto em questão, arguido e declinado pelo Recorrente, nos termos do artigo 514.º do CPC, teria de ser provado em juízo. Alias, como bem assevera o legislador, em caso de dúvidas sobre a realidade de um facto, o ônus de prova recai sobre o sujeito a quem aproveita (artigo 516.º do CPC). Além do mais, tendo sido a respectiva parte notificada para juntar documento, a inércia implica a livre apreciação do facto pelo Tribunal (artigos 529.º e 655.º, ambos do CPC) e esta deve encontrar a sustentação e o limite unicamente nas provas carreadas aos autos.

Ponderando o facto de se tratar de uma ligação telefónica, elemento probatório cuja aferição em juízo, à data dos factos, poderia se mostrar de difícil evidenciação, embora não se possa olvidar que é no confronto directo da exposição argumentativa das partes que se potencializa a desenvoltura do processo e consequentemente o esclarecimento dos factos, à esta tese sobreleva a de que a descoberta da verdade na lide sempre será o fim último da actuação dos Tribunais, e por isso, o elemento nevrálgico.

Sendo os Tribunais guardiões da justiça (cfr. artigo 174.º da CRA e 156.º do CPC), desiderato cristalizado por via de um modelo centralizado de gestão e resolução de conflitos, a estes cabe a incumbência de realizar as diligências necessárias, com vista ao esclarecimento dos factos introduzidos em juízo, primordialmente quando dos autos se afigure insuficiência probatória. Assim, não tendo o Apelado juntado prova de que recebera a ligação telefónica, a falta desta representa uma lacuna probatória que podia ser suprida pelo Tribunal mediante declaração, acareação ou documento, em vista a lograr prova bastante e com base nesta decidir, de modo a obviar a indagação do Recorrente quanto à insuficiência de meios probatórios.

Subordinada que está a actuação das partes litigantes ao dever de cooperação para a descoberta da verdade da lide (vide artigo 519.º do CPC) e atento ao conteúdo normativo espargido no artigo 664.º do CPC, a formulação da convicção do Tribunal deve transpor o panorama que se extrai exclusivamente da letra das alegações das partes, pelo que, pese embora delas se sirva directamente, o âmbito de indagação, interpretação e aplicação do emolduramento legal é mais vasto, em homenagem aos princípios constitucionais da tutela jurisdicional efectiva e do direito a julgamento justo e conforme, preditos nos artigos 29.º e 72.º da CRA, respectivamente.
Não basta o uso da faculdade de acesso aos Tribunais com vista ao exercício do direito de acção, é indispensável que as partes sejam submetidas ao processo devido e justo nos termos da Constituição e da lei. Em face do que se deixa sedimentado supra, entende esta Corte que ao Recorrente assiste razão.

3. Da ofensa ao princípio da legalidade.
Protesta o Recorrente, que a omissão de pronúncia patente na sentença recorrida violou o princípio da legalidade, nos termos da alínea d) do artigo 668.º do CPC.

Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, elucidam que “o Estado de Direito não é apenas um Estado Constitucional. Ele é na sua essência um Estado de direito que se funda no respeito da legalidade pelo que na sua actividade (…) seus órgãos e agentes se devem pautar pelo estrito respeito da lei” (Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, Luanda 2014, pp. 200 e 201).

Não obstante o pendor descritivo e fundamentado das decisões judiciais exposto no n.º 2 do artigo 659.º do CPC, o artigo 660.º determina que o Juiz da causa deve resolver todas as questões submetidas à sua apreciação pelas partes, salvo as que tenham o conhecimento prejudicado pela solução dada a outras. Tais questões, são as que, via de regra, preencherão o domínio interventivo processual do julgador, sob rego ulterior de nulidade da sentença, formulada sobre os fundamentos do n.º 1, alínea d) do artigo 668.º do CPC.

Ora, não colhe a presente inquirição do Recorrente, porquanto o Acórdão recorrido bem vincou seu pronunciamento sobre a questão posta, centralizando-a, inclusive, como o ponto fulcral sobre o qual orbitou o mérito da decisão ora perscrutada. Aliás, limitou-se convenientemente a decidir sobre a existência ou não do abandono de trabalho, conforme a petição extraída das conclusões formuladas pelo próprio Recorrente (fl. 77) em esguardo do que prevê a norma processual adjectiva neste particular, sendo, portanto, dispensável a análise de outras questões adjacentes, porquanto têm já o seu mérito prejudicado pelo remédio jurídico administrado pelo Acórdão recorrido.
Vale acrescer, que coexistem dois vieses que não se cruzam. O primeiro deles é aferir se o Acórdão recorrido foi realmente omisso, defraudando a legítima expectativa dos litigantes e comprometendo a justa apreciação do libelo; enquanto o outro, e em sentido cabalmente avesso, é induzir que a decisão judicial é omissa pelo facto de não se ter guiado pela mesma bússola que norteou o sentido perfilado pela parte vencida – concepção inadmissível.

Outrossim, pugna o Recorrente que ao ser condenado a pagar Kz 4 000 000,00 (quatro milhões de kwanzas) a título de créditos salariais ao trabalhador (Apelado), para além do período de vigência do contrato, isto é, até ao trânsito em julgado da sentença, corresponde a um veemente golpe aos direitos fundamentais.

Para tal, vale endossar, a respeito, a natureza dos contratos de trabalho, para a posterior, referir sobre a referida indagação. Às relações de trabalho desportivo são conferidas o atributo de relações jurídico-laborais de carácter especial, conforme elucida a alínea c) do artigo 11.º da Lei n.º 7/15, de 15 de Junho. O contrato de trabalho, nas versões gerais e especiais, “assume a forma de um contrato sinalagmático, atribuindo onerações e proveitos recíprocos às partes”, como informa o n.º 1 do artigo 76.º da CRA (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito do Trabalho de Angola, Edições Almedina SA, 2010, p. 76).

O capítulo IV do Decreto Presidencial n.º 238/19, de 29 de Julho, que aprova o Regime Jurídico do Contrato de Trabalho do Praticante, Empresários Desportivos e Formação Desportiva, ocupa-se da fixação das formas de cessação do contrato de trabalho desportivo. Neste sulco, sobre a extinção contratual, afirma Pedro Romano Martinez que “o contrato de trabalho, não obstante, ser de execução continuada, só pode cessar por vontade da entidade patronal se existir um motivo atendível” (Direito do Trabalho, 5.ª ed., Almedina, 2010, p. 960).
Considerando que a complementaridade que reside na alternância entre direitos e obrigações mútuas entre as partes conhece a sua maturação durante o período de vigência do contrato, só faz sentido que estas sejam cobradas ou cumpridas, via de regra, enquanto o vínculo contratual não caducar, posto que, o advento da cessação põe termo às obrigações decorrentes da celebração do negócio jurídico outrora celebrado pelos contraentes.

Sem embargo de os trabalhadores serem alvo de protecção especial, condescendência decorrente da hipossuficiência do trabalhador face ao empregador; em boa verdade, nos átrios em que governa a justiça juslaboral, compelir judicialmente o Recorrente a arcar com as despesas nos termos em que se pontuou no Acórdão recorrido, mais do que o onerar para além do que predizia o contrato de trabalho celebrado, decerto configuraria uma crassa injustiça que não pode passar despercebida à lente desta Corte de justiça constitucional.

Considerando que o contrato de trabalho é um negócio jurídico oneroso, caracterizado pela existência de uma contraprestação da parte do empregador – efectuada nos moldes descritos na alínea c) do artigo 41.º da Lei n.º 7/15, de 15 de Junho – porquanto a temática salarial se aduz como sendo uma das mais relevantes do direito do trabalho, entende esta Corte Constitucional que a condenação do Recorrente no pagamento de salários ao trabalhador (Apelado) até ao trânsito em julgado da Sentença, quando o deveria ter fixado até data de caducidade do contrato, isto é, Maio de 2019 (cfr. fls. 19), configura o uso indevido da condenação extra vel ultra petita, potenciadora no caso em apreço de enriquecimento sem causa do trabalhador e, concomitantemente, uma mácula ao principio da legalidade.

Para que seja declarado o abandono de trabalho, não basta a ausência prolongada do trabalhador, é mister que haja juízo de certeza formulado que ateste a intenção declarada ou presumível de não mais regressar ao trabalho (artigo 229.º da LGT). Tendo a ausência do Apelado se prolongado para além de 10 dias, estava habilitado, o Recorrente, a presumir a intenção deste de não regressar ao posto de trabalho (cfr. alínea c) do n.º 2 do artigo 229.º da LGT).

Entretanto, pecou, porquanto, embora tenha remetido o documento de fls. 79 a 83 à FAF, desrespeitou o formalismo tendente à eficácia do despedimento por abandono de trabalho, mormente a informação ao trabalhador sobre a situação de abandono de trabalho mediante afixação da respectiva comunicação – de modo que, querendo, o mesmo pudesse documentalmente provar, nos cinco (5) dias úteis seguintes as razões da ausência (n.º 3 do artigo 229.º da LGT), comprometendo a validade da rescisão contratual.

Em consequência da inobservância dos trâmites legais, não se tendo vislumbrado qualquer impossibilidade objectiva nos termos do n.º 1 do artigo 790.º do CC, tampouco se tenha, oportunamente, instaurado o competente processo disciplinar com fundamento em faltas injustificadas ao trabalho, pode estar o Recorrente, vinculado legalmente a pagar as prestações vincendas a que teria direito o trabalhador (atleta), posto que lhe são legítimas.

Tendo sido, o Recorrente, responsável pela rescisão embasada nos termos já recitados, apesar de o contrato de trabalho celebrado regular a aplicabilidade da cláusula rescisória aplicada quando solicitada apenas pelo atleta – Apelado (fl. 16, cláusula VIII, ponto &), atento à premissa do julgamento justo, da qual decorre que ambas as partes sejam tratadas de forma equitativa – porquanto o direito do trabalho assim reconhece – cabe igualmente, satisfazer o valor correspondente à cláusula penal, não podendo exceder o montante correspondente às prestações vincendas, em reverência à natureza compensatória da cláusula penal, e sobretudo à protecção do trabalhador em caso de rescisões desprovidas de eficácia jurídica. Deverão, ainda, ser deduzidos a favor do atleta (Apelado), o montante indemnizatório devido nos termos do n.º 3 do artigo 208.º e do n.º 3 do artigo 209.º, ambos da LGT, e os juros de mora, por se tratar de figuras jurídicas de cujos escopos apesar de distintos, serem legalmente harmonizáveis e cabíveis ao caso.

Neste sentido, concorre o animus legislativo acentuado nos artigos 562.º, 777.º, 785.º, n.º 1, 798.º, 799.º, 804.º, 806.º, 807.º, n.º 1, 810.º e 811.º, todos do Código Civil, combinados com o artigo 23.º do Decreto Presidencial n.º 238/19, de 29 de Julho e o n.º 3 do artigo 209.º da LGT.
Por fim, esbate o Recorrente, que o Acórdão sob escrutínio viola a lei, à guisa do que contrariamente estabelece o n.º 3 do artigo 193.º da CRA e o artigo 18.º da Lei n.º 8/17, de 13 de Março, por o ter condenado a pagar os honorários de Advogado devidos pelo Apelado.

Ora, o pedido de condenação nos honorários, apesar de não resultar de uma norma injuntiva, corresponde a uma menção usual assimilável do conteúdo do artigo 454.º do CPC. Entretanto, a especificidade do processo laboral, à época em que os factos ocorreram, atento aos normativos que o regulavam, não obrigavam a constituição de mandatário judicial. Tal como se extrai do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 22-B/92, de 9 de Setembro “as partes não são obrigadas a fazê-lo, mas poderão constituir mandatário judicial em qualquer instância”.

Dito de modo diverso, na jurisdição laboral, à luz da mencionada norma, as partes podiam pleitear sem a constituição do mandatário judicial e isso em nada prejudicava a tramitação do processo, sendo que, o princípio da sucumbência, que rege a distribuição das despesas processuais, garantindo que a parte que deu causa ao litígio ou que não teve sucesso na acção judicial suporte os custos do processo, não encontra aqui racionalidade e amparo; termos em que, razão assiste ao Recorrente.
Nestes termos,

DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO RECURSO E DECLARAR INCONSTITUCIONAL O ACÓRDÃO RECORRIDO EM VIRTUDE DE TER OFENDIDO OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE, DA IGUALDADE E O DIREITO A JULGAMENTO JUSTO E CONFORME.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 13 de Fevereiro de 2025.

OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Carlos Alberto B. Burity da Silva

Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Gilberto de Faria Magalhães

João Carlos António Paulino (Relator)

Josefa Antónia dos Santos Neto

Lucas Manuel João Quilundo

Maria da Conceição de Almeida Sango

Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva

Vitorino Domingos Hossi