ACÓRDÃO N.º 965/2025
PROCESSO N.º 1005-C/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Ana Adelaide Mimosa Narciso, melhor identificada nos autos, veio ao Tribunal Constitucional impetrar recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo n.º 22/19, datado de 23 de Novembro de 2021, a fls. 59 a 63 dos autos, que negou a interposição de recurso de agravo por extemporaneidade.
Admitido o recurso e notificado para apresentar alegações em observância ao disposto no artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), fê-lo tempestivamente, conforme se vê a fls. 125 a 135 dos autos. Alega em síntese que:
1. A Recorrente interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade em impugnação do Despacho proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, nos autos de reclamação pela não admissão de recurso de agravo, que manteve a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
2. O Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, sufragou a Decisão de primeira instância, proferida pela Meritíssima Juíza a quo, que não admitiu um recurso de agravo contra a sua decisão que não aceitou a invocação de justo impedimento.
3. Além do argumento da peremptoriedade do prazo processual, o Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, como fundamento da sua recusa em admitir o recurso, acresceu dois fundamentos sem correspondência efectiva ao conteúdo e alcance do artigo 146.º do CPC.
4. Rejeitou a admissão do recurso com considerações subjectivas e violadoras do princípio da legalidade que deve acompanhar todas as decisões judiciais. No exercício da função jurisdicional os Tribunais estão sujeitos à Constituição e a lei e não foi o que se verificou no caso vertente.
5. Como consequência da violação do dever de legalidade, a Decisão recorrida que configurou denegação de justiça, também se traduz na violação do direito a um processo justo e conforme a lei e ao direito ao duplo grau de jurisdição.
Termina pedindo inteiro provimento ao presente recurso e, por via, dele que se ordene a admissão do recurso rejeitado, por julgar o Despacho sobredito em desacordo com a Constituição, nomeadamente, por violação dos seguintes princípios e direitos constitucionais:
i) do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, artigo 29.º da CRA.
ii) do Estado de direito e dever de legalidade, artigo 6.º da CRA.
iii) do direito a julgamento justo e conforme, à luz do artigo 72.º da CRA.
O processo foi à vista do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional, que se pronunciou nos seguintes termos:
i) Do Despacho recorrido verificamos que o Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo socorre-se da lei para fundamentar a sua decisão.
ii) De igual modo, respondeu às questões que foram suscitadas na reclamação interposta pela Recorrente, utilizando para o efeito a doutrina que julgou ser adequada.
iii) Das questões de legalidade e respeitantes ao princípio do Estado de Direito, a julgar pela justificação legal utilizadas e pela competência e legitimidade do órgão que proferiu o Despacho, não parece enfermar o Despacho recorrido.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora, apreciar, para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, garantias e liberdades constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos. Esta faculdade está igualmente prevista na alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, LOTC.
III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é parte legítima no Processo n.º 22/19, que correu seus trâmites no Tribunal Supremo. Tem direito a contradizer, segundo dispõe o n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional, por força do artigo 2.º da LPC.
A legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, cabe-lhe, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é apreciar se o Despacho proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, datado a 23 de Novembro de 2021, terá alegadamente incorrido em inconstitucionalidade, violando os direitos fundamentais da Recorrente.
V. APRECIANDO
A Recorrente, melhor identificada nos autos, foi condenada pela 1.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda, a restituir o imóvel ao Senhor Caetano Pio do Amaral Gourgel, na sequência da Acção Declarativa de Condenação, sob a forma ordinária, conforme se vê nos autos a fls. 43 a 49.
Foram as partes notificadas do Despacho Saneador-Sentença para, querendo, dele deduzir oposição, vide fls. 78 e 79 dos autos. Volvidos 12 dias, o autor interpôs uma acção executiva, visando garantir a restituição da posse. Notificada, a Recorrente, requereu a nulidade do embargo da execução, dando nota que houve lapso no acto de notificação. Em sede do Tribunal a quo o referido embargo foi indeferido.
Gozando do seu direito, interpôs recurso de agravo nos termos do artigo 734.º do CPC, que mereceu este despacho de indeferimento por extemporaneidade, com fundamento no artigo 685.º do CPC.
Daquele indeferimento, apresentou a Recorrente Reclamação junto do Tribunal Supremo com fundamento no artigo 688.º do CPC, que mereceu indeferimento mantendo o despacho reclamado.
Vem a Recorrente, a esta Corte de Justiça Constitucional, arguir a inconstitucionalidade do Despacho de indeferimento de reclamação, proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, em autos registados sob a Reclamação n.º 22/19.
Em sede deste Tribunal Constitucional, notificada para apresentar alegações, vide fls. 125 a 135 dos autos, vem a Recorrente evocar a violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, princípio do Estado de direito e dever de legalidade, direito a julgamento justo e conforme, princípio da conformidade das decisões dos tribunais com a Constituição e a lei.
Vejamos, então se assistirá razão a Recorrente.
a) Princípio do Estado de direito e dever de legalidade
O princípio da legalidade orienta que sejam observados os actos processuais segundo os ditames constitucionais e legais. Dito de outro modo, não é conferido ao julgador poder algum para conduzir o processo conforme lhe aprouver. Aliás, o Estado de direito funda-se na legalidade. Há toda uma construção constitucional e legal, em seguir ao rigor, estabelecido na norma, quer no plano constitucional como infraconstitucional. O princípio da legalidade é o garante da materialização plena da justiça.
A Recorrente vem, no processo em sindicância, arguir a violação do princípio da legalidade. Do que se pode deduzir das alegações da mesma, há uma nítida intenção de obter deste Tribunal Constitucional, uma reapreciação da questão, ou seja, do mérito ou demérito do Despacho exarado pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, a fls. 59 a 63 dos autos, e não aponta, efectivamente, em que medida o dito princípio teria sido violado, prejudicando os direitos fundamentais da Recorrente.
Sobre isso Gomes Canotilho, sublinha que “o objecto do recurso não é a decisão do tribunal a quo, sobre o mérito da questão ou do efeito submetido a julgamento, mas apenas o segmento da decisão judicial relativo à questão da inconstitucionalidade” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição 7.ª ed., p. 989). O juízo incide sobre as sobreditas inconstitucionalidades. Da conclusão da existência de violação à Constituição, resultará a observância do disposto nos autos, na medida em que respondem às exclamações e interrogações do processo em si.
O Tribunal não se vincula à vontade das partes, pois tem a obrigatoriedade de pautar as suas decisões com respaldo na Constituição e na lei, sem olvidar a doutrina e a jurisprudência. O que não se pode confundir com a obrigatoriedade de decidir nos mesmos termos que as partes alegam. Assim, do que se lê, não se consegue aferir em que medida o supramencionado princípio está ferido de inconstitucionalidade no Despacho objecto de sindicância.
b) Sobre o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva
O princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva está consagrado no artigo 29.º da CRA e “reconduz-se fundamentalmente ao direito a uma solução jurídica de actos e relações jurídicas controvertidas, a que se deve chegar num prazo razoável e com garantias de imparcialidade e independência possibilitando-se, designadamente, um concreto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de causas e outras” (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, 2003, p. 433).
O princípio do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva assume uma abrangência excessivamente larga, abarcando um rol de subprincípios conexos (…)” A tutela jurisdicional, permite aceder em termos iguais que os demais, a obter um tratamento da questão em litígio em tempo útil e fundada na justiça e no direito. A fls. 134 dos autos, a Recorrente alega no articulado 110 que “por imperativo constitucional, processualmente as partes têm direito a um duplo grau de jurisdição, por meio dos recursos que poder”. E, é, em obediência a isto, que foi concedido o direito a Recorrente de interpor recurso, quer em sede do Tribunal ad quem, como nesta Corte de Justiça Constitucional, se traduzindo isto na obtenção de ver sua causa apreciada, sem que o efeito seja necessariamente conforme o alegado.
Atente-se que o princípio de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva assegura uma ampla panóplia de garantias processuais de defesa das partes, que permitem esbater desigualdades e promover a equidade na lide. Do que se depreende dos autos, teve a Recorrente, tempestivamente, oportunidade para intervir em todas as fases processuais em que foi chamada a deduzir oposição.
A Recorrente teve a todo tempo o exercício do seu direito constitucional de se defender em obediência ao princípio sobredito. Teve oportunidades iguais para deduzir oposição. Não há nos autos nenhum impedimento da actuação da Recorrente nas distintas fases processuais.
Ademais, este Tribunal Constitucional, desde os primórdios da sua existência, tem já uma farta jurisprudência sobre o sobredito princípio que se pode ver nos Acórdãos n.ºs 799/2023, 800/2023, 826/2023, 828/2023 e 906/2024 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao). Em tudo julgamos que bem andou o Acórdão recorrido.
c) Direito a julgamento justo e conforme
O direito a um julgamento justo e conforme é entendido na doutrina dominante como o garante do devido processo legal, que permite a realização plena do direito e resulta da necessidade de as decisões judiciais pautarem-se sobre os princípios da legalidade, certeza e segurança jurídicas e direito de defesa. Um julgamento justo, obedece a materialização do Estado de direito, cujos pilares se alicerçam na justiça.
A observância de um julgamento justo e conforme a lei, não decorre da mera vontade do julgador, e sim de um imperativo que resulta da Constituição, da lei e de outros diplomas de cariz internacional ratificados pelo Estado angolano. A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP) refere no n.º 1 do artigo 7.º, que “toda pessoa tem o direito a que sua causa seja apreciada. Esse direito compreende: a) o direito de recorrer aos tribunais nacionais competentes contra qualquer ato que viole os direitos fundamentais que lhe são reconhecidos e garantidos pelas convenções, leis, regulamentos e costumes em vigor”.
Independentemente das circunstâncias que o caso conheça, toda a pessoa tem direito que a sua questão seja apreciada, em observância ao disposto na lei. A qualificação de um processo justo, legal e adequado, deve conter os mais elementares princípios de justiça. O julgamento justo e conforme, tem de obedecer à lei e esta compreensão resulta do princípio da legalidade.
Do Despacho objecto de Reclamação, a Recorrente vem arguir justo impedimento porquanto da notificação da decisão do Tribunal a quo, não se encontrava no País e, por isso mesmo, não interpôs recurso tempestivamente. Ora, constata-se dos autos que a Recorrente constituiu mandatário, assim sendo, da interpretação a contrario sensu do disposto no n.º 1 do artigo 146.º do CPC, não se vislumbram factos que configurem o justo impedimento e, consequentemente, in casu, a Decisão revidada não fere a Constituição.
Em tudo o que se depreende dos presentes autos, não assiste, pois, razão à Recorrente, na medida em que, não se vê no Despacho reclamado, violação dos direitos, liberdades e garantias fundamentais da Recorrente.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, POR JULGAR O DESPACHO RECORRIDO EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO E A LEI.
Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 11 de Março de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)
Lucas Manuel João Quilundo
Maria da Conceição de Almeida Sango
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Vitorino Domingos Hossi