ACÓRDÃO N.º 966/2025
PROCESSO N.º 1232-D/2024
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (Habeas Corpus)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Telma André Neto, com os melhores sinais de identificação nos autos do processo supra cotado, veio a esta Corte Constitucional, ao abrigo da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Despacho proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 23/2024, que negou provimento a providência de habeas corpus e manteve a situação carcerária da Recorrente, com fundamento no perigo real que a liberdade da Arguida representa à paz social, por inferir que o mesmo ofende princípios previstos na Constituição da República de Angola (CRA).
Do Despacho prolactado e precedentemente referenciado, recorreu para esta Instância Jurisdicional, onde, notificada para apresentar alegações, nos termos do disposto no artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional, deduziu, em síntese, o que infra se arrola:
1. Encontra-se em excesso de prisão preventiva em virtude da decisão que a condenou não ter transitado em julgado por conta do recurso interposto junto do Tribunal Supremo, estando assim privada da sua liberdade, desde 22 de Dezembro de 2019, há mais de 5 anos, sem ser notificada para que seja definida a sua situação carcerária.
2. Tal situação é violadora do princípio da tutela jurisdicional efectiva, com previsão constitucional nos termos do n.º 4 do artigo 29.º da Constituição da República de Angola.
3. Foi julgada e condenada a 24 anos de prisão pelos crimes de descaminho de menor e infanticídio, previstos e puníveis pelos artigos 344.º e 356.º, ambos do Código Penal, no dia 30 de Dezembro de 2020, tendo recorrido desta decisão, por existirem circunstâncias concretas não valoradas, logo, a decisão ainda não transitou em julgado.
4. No Despacho recorrido não se consegue identificar em que medida os fundamentos estão de acordo com as circunstâncias do caso, há inadequação de outras medidas ou insuficiência das mesmas, assim como, não se consegue justificar as razões que o Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo encontrou para considerar inadequadas ou insuficientes para o caso concreto as medidas previstas no n.º 2 do artigo 279.º do Código de Processo Penal.
5. Não tem uma personalidade de extrema perigosidade de acordo com a sua idade e condição primária de implicação criminal, sendo certo, que é a primeira vez que está a ser indiciada na prática de um crime e, não há razões concretas que a mesma apresenta um estado de delinquência por tendência ou de difícil correcção.
6. A decisão recorrida ignora o princípio da legalidade, pois devia apenas cingir-se à apreciação da legalidade ou ilegalidade da prisão e não emitir um juízo de certeza, porque ainda goza do direito a presunção de inocência de uma decisão que o Tribunal recorrido devia propalar e até ao momento não propalou, levando com que aquela instância esteja em falta perante a Recorrente.
7. O Ministério Público enquanto fiscal da legalidade promoveu a procedência da providência de habeas corpus por entender que a privação da sua liberdade excedeu o prazo legal da alínea d) do n.º 1 do artigo 283.º do Código de Processo Penal Angolano.
Termina peticionando que se atente as circunstâncias dos factos, bem como os fundamentos de facto e de direito invocados, se revogue o Despacho recorrido e que seja substituída a medida de prisão preventiva por uma menos gravosa em harmonia com os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais dos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir, já que nada a tal obsta.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto com fundamento na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, pelo que dispõe o Tribunal Constitucional de competência para apreciar o presente recurso.
II. LEGITIMIDADE
A legitimidade para a interposição de um recurso extraordinário de inconstitucionalidade cabe, no caso de sentença, à pessoa que, em harmonia com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, possa dela interpor recurso ordinário, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC.
No caso sub judice, a ora Recorrente, enquanto parte no Processo n.º 23/2024, não viu a sua pretensão atendida, pelo que dispõe de legitimidade para recorrer do Despacho de improcedência da providência de habeas corpus.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é o Despacho proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, datado de 30 de Outubro de 2024, no âmbito do Processo n.º 23/2024, competindo ao Tribunal Constitucional apreciar se o mesmo ofendeu os princípios da tutela jurisdicional efectiva e da legalidade e o direito à liberdade, todos consagrados na Constituição da República de Angola.
V. APRECIANDO
É submetido à apreciação do Tribunal Constitucional, o Despacho proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 23/2024, que negou provimento à providência de habeas corpus com fundamento no perigo real que a liberdade da ora Recorrente representa à paz social, mantendo-se, assim, a situação carcerária da mesma.
A Recorrente, no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, requer a intervenção do Tribunal Constitucional, por entender que o Acórdão recorrido ofendeu os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, tutela jurisdicional efectiva e da legalidade, todos consagrados na Constituição da República de Angola.
Extrai-se das alegações da Recorrente que impetrou uma providência de habeas corpus por se encontrar em excesso de prisão preventiva em virtude da Decisão que a condenou não ter transitado em julgado devido ao recurso interposto para o Tribunal Supremo, estando, assim, privada da sua liberdade, desde 22 de Dezembro de 2019, há mais de 5 anos, sem ser notificada para que seja definida a sua situação carcerária.
Veja-se, pois, se assistir-lhe-á razão face à alegada ofensa aos princípios e violação ao direito invocados.
Nas suas alegações a Recorrente traz à liça o facto de se encontrar em prisão preventiva há mais de 5 anos, sem ter sido prolactada decisão final com trânsito em julgado, situação que, como destaca, conflitua com o seu direito à liberdade, cujas restrições devem obedecer ao previsto na Constituição e limitar-se ao necessário, adequado e proporcional, violando, desta feita, os princípio da tutela jurisdicional efectiva e da legalidade previstos nos artigos 64.º, n.º 4 do 29.º e 6.º, todos da CRA.
É sabido que a providência extraordinária de habeas corpus, consagrada no artigo 68.º da Constituição da República de Angola, configura, em face de prisão ou detenção ilegal, um mecanismo excepcional e célere para protecção do direito à liberdade, um direito de primeira grandeza na conjuntura do Estado democrático de direito e inerentemente associado à dignidade da pessoa humana.
Como refere Gumesindo García Morelos, “el hábeas corpus puede definirse como un procedimento especial y preferente por el que se solicita del órgano jurisdiccional competente la satisfación de una pretensión de amparo nacida con ocasión de la comisión de una detensión ilegal; aunque en um primer plano omite la amplitud de su objeto tutelador, se reposiciona, reconociendo que este processo tutela, además de la libertad, cualquier outro derecho fundamental o garantía constitucional en el curso de una detención” (El Processo de Hábeas Corpus e los Derechos Fundamentales – Estudios de Derecho Comparado, UBIJUS, 2010, p. 90).
No essencial, do acima dito se extrai que o habeas corpus é um mecanismo especial e preferencial pelo qual se solicita ao tribunal competente que satisfaça um pedido na sequência de uma prisão ilegal, embora, numa primeira instância, omita a amplitude do seu objecto de protecção, reposiciona-se, reconhecendo que este processo protege, para além da liberdade, qualquer outro direito fundamental ou garantia constitucional no decurso de um detenção.
A liberdade é um direito que, a ser restringido, deve sê-lo em conformidade com o previsto na Constituição e na lei, devendo as eventuais restrições limitar-se ao necessário, adequado e proporcional (artigos 64.º da CRA e 262.º do Código de Processo Penal). Deste direito decorre, concomitantemente, um dever de protecção por parte dos poderes públicos, que pode ser assegurado através do instituto do habeas corpus.
Após o escrutínio minucioso dos presentes autos, é dominante a constatação de que a Recorrente se encontra detida desde o dia 22 de Dezembro de 2019, julgada e condenada a 24 anos de prisão no dia 30 de Dezembro de 2020 e interpôs um recurso de apelação para o Tribunal Supremo, por não conformação com a decisão.
Atentando para os prazos previstos na alínea d) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 283.º do CPPA, a prisão preventiva, enquanto medida de coacção de última ratio, extingue-se na ausência de condenação com trânsito em julgado no prazo de 18 meses ou 20 meses havendo prorrogação.
Entretanto, ancora nos presentes autos uma correspondência do Digníssimo Magistrado do Ministério Público junto desta instância, que traz aos autos a informação que o Processo principal e autuado sob o n.º 5451/2021, já foi decidido no dia 22 de Outubro de 2024, que mantém a condenação da aqui Recorrente, não obstante a redução da pena de prisão aplicada pelo Tribunal a quo, para 8 anos de prisão, decisão esta já notificada à aqui Recorrente e transitada em julgado.
Para tal, vale endossar que, com a decisão proferida pelo Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 5451/21, verifica-se a extinção da prisão preventiva, como facto de especial relevância processual, tornando, in casu, inútil conhecer o presente pedido de habeas corpus, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do CPC, aplicado ex vi do n.º 2 do artigo 3.º do CPPA, pois o fim e o objectivo já foram realizados. (Vide Acórdãos n.º 937/2024 e 939/2024, ambos de 5 de Dezembro e disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao).
Como discorrem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se, “quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência requerida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar - além, da impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio” (Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 3.ª ed., 2014, p. 546).
José Alberto dos Reis reforça tal entendimento ao defender que está-se perante uma situação de impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, quando devido a novos factos, verificados na pendência do processo, não existe qualquer efeito útil na decisão a proferir, quando já não é possível o pedido ter acolhimento ou quando o fim visado com a acção foi atingido por outro meio (Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, Coimbra, 1946, pp. 368-369).
Destarte, a continuação da presente acção inerente à providência de habeas corpus, torna-se escusada, por virtude do desaparecimento do objecto do processo, determinando a impossibilidade de se atingir o resultado visado, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do CPC, subsidiariamente aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC, posição esta que faz jurisprudência nesta Corte Constitucional (neste sentido vide, entre outros, os Acórdãos n.ºs 939/2024 e 936/2024, ambos de 5 de Dezembro, 683/2021, de 26 de Maio, 549/2019, de 21 de Maio, 544/2019, de 16 de Abril, 485/2018, de 10 de Julho e 422/2017, de 10 de Maio, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.ao).
Face ao supra dilucidado, o Tribunal Constitucional considera que efectivamente, com a superveniência decorrente do julgamento do processo principal ancorado no âmbito do Processo n.º 5451/21, a condenação da Recorrente torna-se definitiva, afigurando-se desnecessária a apreciação da questão controvertida e, consequentemente, inútil a presente lide.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DECLARAR A EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA, POR INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE, NOS TERMOS DA ALÍNEA E) DO ARTIGO 287.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, SUBSIDIARIAMENTE APLICÁVEL EX VI DO ARTIGO 2.º DA LPC.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 11 de Março de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente e Relatora)
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Josefa Antónia dos Santos Neto
Lucas Manuel João Quilundo
Maria da Conceição de Almeida Sango
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Vitorino Domingos Hossi