ACÓRDÃO N.º 968/2025
PROCESSO N.º 1181-A/2024
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Abílio Bumba Kimba e Outros, devidamente identificados nos autos, interpuseram no Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional (LPC), recurso extraordinário de inconstitucionalidade da decisão proferida pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 395/2016.
Os Recorrentes haviam intentado, na Sala do Trabalho do Tribunal Provincial da Lunda-Norte, uma acção emergente de conflito laboral contra a Empresa Sociedade Mineira do Uari, motivada por um despedimento colectivo, na qual requeriam a reintegração nos respectivos postos de trabalho, bem como o pagamento de créditos laborais vencidos. A Requerida, à data, não apresentou contestação, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente, com a subsequente condenação daquela ao pagamento dos aludidos créditos (fls. 64-69).
Inconformada com tal decisão, a Requerida interpôs recurso de apelação para o Tribunal Supremo, invocando a sua ilegitimidade nos autos, porquanto sustentava a inexistência de qualquer vínculo jurídico-laboral entre as partes. O recurso veio a ser julgado procedente, sendo reconhecida a excepção dilatória de ilegitimidade da Requerida (fls. 318-334).
Não se conformando com o decidido, os então Apelados, ora Recorrentes, interpuseram o presente recurso extraordinário, alegando, em síntese, o que se segue:
1. Compulsados os autos, verifica-se que o Tribunal recorrido baseou a sua decisão apenas e tão-só nas declarações da Requerida, ignorando por completo o contraditório que era assistido aos Recorrentes, não sendo permitido fazer prova dos factos controvertidos.
2. Quando a gestão da Sociedade Mineira do Lucapa, cuja mina os Recorrentes garantiam a segurança, passou à gestão da então Apelante, Sociedade Mineira do Uari, deslocou-se à respectiva mina o engenheiro Fernando Teixeira Amaral, na qualidade de Director-Geral da empresa e, durante uma reunião com os trabalhadores, informou que, a partir daquela data, todos passariam a prestar trabalho à Sociedade Mineira do Uari.
3. Os contratos com os membros do corpo de segurança industrial do sistema de auto-protecção da aludida mina foram celebrados de forma verbal.
4. Passados alguns dias, por ordem do referido engenheiro, foram levados até à mina mantimentos, designadamente tendas e alimentos.
5. No entanto, passado quase quatro meses, os trabalhadores não receberam os respectivos salários, tampouco qualquer explicação da entidade empregadora.
6. Deste modo, considerando a situação de total miséria que vivenciavam, decidiram recorrer às instituições competentes, após várias tentativas fracassadas de diálogo com a entidade empregadora, a fim de verem os seus direitos salvaguardados.
7. Havia, de facto, entre os Recorrentes e a então Requerida, uma relação jurídico-laboral estabelecida, embora os contratos tenham sido celebrados verbalmente. A ausência de contratos escritos criou uma convicção subjectivista no Tribunal recorrido e levou-o a produzir uma decisão surpresa e atabalhoada, violando os direitos fundamentais dos Recorrentes, dado que teve em atenção apenas os elementos carreados pela Requerida.
8. O Tribunal recorrido não agiu com imparcialidade ou equidistância, violando os direitos ao contraditório e ao julgamento justo e conforme.
9. A falta de contestação produz os efeitos previstos nos artigos 483.º e 484.º do Código do Processo Civil e ficou provado nos autos que a Apelante foi, em todas as fases do processo, devidamente citada para exercer o contraditório.
10. O Tribunal recorrido, ao ter abraçado, em jeito de adesão irreflectida, única e exclusivamente as alegações apresentadas pela Requerida em sede de recurso, violou gravemente os aludidos princípios.
11. Diante dos argumentos, de facto e de direito, acima expostos, dúvidas não há de que o Acórdão recorrido está eivado de vícios e inúmeras inconstitucionalidades.
Concluíram pedindo que seja o Acórdão recorrido julgado inconstitucional, por ter postergado os direitos ao contraditório e ao julgamento justo e conforme.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
Nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC, conjugado com os artigos 680.º do Código de Processo Civil (CPC) e 90.º do Código de Processo do Trabalho (CPT), os Recorrentes possuem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, uma vez que foram vencidos no âmbito do Processo n.º 395/2016, que correu os seus termos na Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem como objecto apreciar se a Decisão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, proferida no âmbito do Processo n.º 395/2016, é inconstitucional por violar os direitos ao contraditório e ao julgamento justo e conforme.
V. APRECIANDO
No caso sub judice, conforme resulta do relato precedente, os Recorrentes interpuseram o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por entenderem que a Decisão recorrida padece de vício de inconstitucionalidade, na medida em que preteriu o direito a um julgamento justo e conforme. Alegam que o Tribunal recorrido, ao formar a sua convicção, não assegurou aos Recorrentes o pleno exercício do contraditório, comprometendo, assim, um princípio basilar do processo equitativo.
O direito a julgamento justo e conforme, também caracterizado como princípio fundamental a um processo equitativo, encontra-se previsto no artigo 72.º da Constituição da República de Angola (CRA), bem como em instrumentos internacionais de que Angola é parte, designadamente nos artigos 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP).
Este princípio constitui, pois, um pilar essencial do Estado de Direito democrático, assegurando uma administração da justiça imparcial, independente e transparente, com efectiva observância das garantias de defesa (Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, FDUAN, 2014, p. 398).
A sua concretização é amplamente desenvolvida pela jurisprudência, sendo que, conforme reiteradamente decidido por este Tribunal (Acórdãos n.ºs 650/2020, 822/2023 e 851/2023, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao), o princípio do julgamento justo e equitativo é um pilar fundamental de qualquer sociedade democrática, não admitindo interpretação restritiva. O seu objectivo primordial é proteger os interesses das partes e da administração da justiça, garantindo que os litigantes possam apresentar o seu caso de forma efectiva perante o tribunal.
Do mesmo modo, o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos interpreta esse princípio como um conceito aberto e dinâmico, aplicável a todas as situações em que a estrutura do processo não assegure, de maneira materialmente adequada, uma tutela jurisdicional plena e efectiva (ComADHP c. Líbia, n.º 002/2013, de 3 de junho de 2016, § 86 e ss., Diocles William c. República Unida da Tanzânia, n.º 016/2016, de 21 de setembro de 2018, § 62 e ss., e Ajaye Jogoo c. República Unida da Tanzânia, n.º 014/2018, todas acessíveis em https://www.african-court.org).
Com efeito, o direito ao devido processo legal abrange, entre outros aspectos, o direito ao contraditório e à ampla defesa, exigindo que todas as partes tenham a oportunidade de se pronunciar sobre os elementos essenciais dos autos. Tal direito concretiza-se através de normas processuais que impõem a igualdade de armas e garantem que cada parte possa contestar efectivamente os argumentos e provas apresentados pela parte adversa.
Assim, no âmbito de um Estado de direito, os processos judiciais devem pautar-se pela equidade e lealdade. Para tal, é essencial que cada uma das partes tenha a oportunidade de expor as suas razões, tanto de facto como de direito, perante o tribunal, preferencialmente antes da tomada de decisão.
Ora, no caso concreto, compulsados os autos, verifica-se, a fls. 244 a 343, que o Tribunal recorrido deu provimento ao recurso interposto pela então Apelante, julgando procedente a excepção dilatória de ilegitimidade da entidade patronal, sem que os Recorrentes tivessem sido previamente notificados para se pronunciarem sobre tal excepção ou para contraditar os documentos supervenientemente juntos aos autos, destinados a infirmar o vínculo jurídico-laboral por eles invocado.
O Tribunal recorrido estava, porém, adstrito ao dever de notificação, nos termos do artigo 526.º do CPC (aplicável ao processo laboral por força das alíneas c) e d) do artigo 11.º e do artigo 90.º do CPT), o qual estabelece que a parte contrária àquela que junta documentos aos autos deve ser notificada para sobre os mesmos tomar posição, garantindo-se, assim, o exercício do direito ao contraditório.
A omissão deste dever processual revelou-se gravosa, pois comprometeu significativamente o equilíbrio entre as partes e o direito de defesa dos Recorrentes. Com efeito, a excepção de ilegitimidade, não tendo sido suscitada em primeira instância, foi introduzida apenas na fase recursória, o que tornava ainda mais imperioso o respeito pelo contraditório, de modo a permitir aos Recorrentes contestar os argumentos e provas apresentados pela Apelante.
Tal omissão gerou uma manifesta desigualdade de armas, favorecendo indevidamente uma das partes em detrimento da outra e violando os princípios estruturantes de um processo equitativo. Acresce que o acolhimento da excepção dilatória sem prévia audição dos Recorrentes determinou a extinção da instância quanto à entidade patronal demandada, impedindo o conhecimento do mérito da causa e privando os Recorrentes da possibilidade de influenciar a decisão final com os meios de prova ao seu alcance.
O princípio do contraditório, enquanto dimensão essencial do devido processo legal, impõe que todas as partes tenham a oportunidade de se pronunciar sobre os elementos relevantes dos autos, participando activamente na formação da decisão judicial. Este direito, que se materializa através de normas processuais destinadas a assegurar a igualdade de armas, constitui o cerne da garantia de defesa, devendo as partes dispor de condições efectivas e paritárias para expor as suas posições de facto e de direito.
Neste contexto, incumbe ao juiz zelar pelo cumprimento do contraditório ao longo de todo o processo, abstendo-se de decidir questões de facto ou de direito – ainda que de conhecimento oficioso – sem que as partes tenham tido oportunidade de se pronunciar, salvo nos casos em que tal se revele manifestamente desnecessário (cfr. artigo 3.º do CPC). A inobservância deste dever não se limita a uma mera irregularidade formal, antes assume natureza substantiva, comprometendo a validade da decisão e configurando uma violação do direito a um julgamento justo, susceptível de determinar a sua nulidade, nos termos do artigo 201.º do mesmo diploma.
Tal entendimento alinha-se com a orientação deste Tribunal, expressa, entre outros, no Acórdão n.º 392/2016 (disponível em www.tribunalconstitucional.ao), onde considera que a omissão de notificação das partes para o exercício do contraditório constitui uma transgressão flagrante das garantias processuais fundamentais. Esta conclusão ganha especial relevo à luz do espírito do legislador constitucional, para quem um julgamento só pode ser reputado justo quando todas as garantias das partes sejam rigorosamente observadas.
Retomando o consignado no Acórdão n.º 650/2020 (acessível em www.tribunalconstitucional.ao), o princípio do julgamento justo e conforme traduz-se, em essência, no direito das partes a apresentar todas as observações que entendam pertinentes, cabendo ao tribunal proceder a uma análise diligente e imparcial das pretensões e meios de prova submetidos. A justiça, neste sentido, deve ser não apenas substancialmente justa, mas também ostensivamente justa, conforme o adágio segundo o qual “a justiça não deve apenas ser feita, mas também parecer que foi feita”.
Face ao exposto, é inequívoco que a falta de notificação dos Recorrentes violou o exercício dos seus direitos processuais, comprometendo o princípio do julgamento justo e equitativo e afectando a integridade do processo judicial. Tal irregularidade assume gravidade bastante para justificar a procedência do recurso.
Deste modo, procede a pretensão dos Recorrentes.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
a) DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO;
b) JULGAR INCONSTITUCIONAL A DECISÃO RECORRIDA, POR VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DO DIREITO AO JULGAMENTO JUSTO E EQUITATIVO;
c) DETERMINAR, NOS TERMOS DO N.º 2 DO ARTIGO 47.º DA LPC, A BAIXA DOS AUTOS À CÂMARA DO TRABALHO DO TRIBUNAL SUPREMO, A FIM DE ASSEGURAR A NOTIFICAÇÃO DOS RECORRENTES PARA QUE SE PRONUNCIEM SOBRE A EXCEPÇÃO DE ILEGITIMIDADE INVOCADA PELA APELANTE, BEM COMO SOBRE OS RESPECTIVOS DOCUMENTOS DE PROVA, GARANTINDO-SE O PLENO EXERCÍCIO DO DIREITO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 11 de Março de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Josefa Antónia dos Santos Neto
Lucas Manuel João Quilundo
Maria da Conceição de Almeida Sango
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Vitorino Domingos Hossi