Loading…
TC > Jurisprudência > Acórdãos > Acórdão Nº 969/2025

 

 

 

 

ACÓRDÃO N.º 969/2025

 

PROCESSO N.º 1222-B/2024

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (Habeas Corpus)

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Hugo António Paulino, com os demais sinais de identificação nos autos, por não se conformar com o Despacho proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo de Habeas Corpus n.º 21/24, veio ao Tribunal Constitucional, ao abrigo das disposições combinadas da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), do n.º 2 do artigo 36.º, do n.º 1 do artigo 64.º e artigo 68.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA), por entender que o referido Despacho está eivado de inconstitucionalidades, interpor o presente recurso.
Para o efeito, a fim de fundamentar a sua pretensão, o Recorrente traz à liça as suas alegações, das quais se reproduz, em síntese, o seguinte:

1. Encontra-se detido desde o dia 11 de Outubro de 2018, isto é, há mais de 6 anos que se encontra em prisão preventiva, tendo sido acusado, pronunciado, julgado e condenado pela prática de um crime de roubo qualificado e lhe sido aplicada a pena única de 21 anos de prisão maior, no âmbito do processo-crime que tramitou junto da 6.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal da Comarca de Luanda.

2. Com fundamento no esgotamento dos prazos de prisão preventiva, intentou uma providência de habeas corpus, a qual foi julgada improcedente, por Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, proferido a 7 de Outubro de 2024, com fundamento no perigo de continuação da actividade criminosa ou perturbação grave da ordem e tranquilidade pública.

3. Tal perigo caracteriza-se em função da natureza, das circunstâncias do crime e da personalidade do arguido, sendo pressupostos de aplicação de uma medida de coacção pessoal, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 263.º do CPPA.

4. Os fundamentos aduzidos pelo Juiz Presidente do Tribunal Supremo não colhem, no que toca à relevância dos factos em apreciação, no âmbito da garantia da ordem e tranquilidade pública, uma vez que não foram demonstrados motivos ou justificativos bastantes que comprovem o perigo da continuação da actividade criminosa ou da perturbação grave da ordem e da tranquilidade pública.

5. Na sua fundamentação, o Tribunal deixou de frisar a existência de fortes indícios, que teriam que corresponder a uma alta probabilidade de o Recorrente, por força deles, vir a desestabilizar a ordem e a tranquilidade públicas, violando, deste modo, o princípio da presunção de inocência previsto no n.º 2 do artigo 67.º da CRA.

6. Nesta conformidade, o Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, mostra-se, na sua fundamentação, de uma grosseira violação do postulado na alínea d) do n.º 1 do artigo 283.º e n.º 1 do artigo 284.º do CPPA.

7. Nos termos da Constituição da República de Angola, todos têm direito à providência de habeas corpus, contra o abuso do poder, em virtude da prisão ou detenção ilegal, a interpor perante o tribunal competente, estando em causa a efectivação do direito do Recorrente, a tutela jurisdicional do direito à liberdade, um direito jurídico-constitucional garantido no artigo 36.º da CRA.

8. A privação da liberdade, apenas, é permitida nos casos e nas condições determinadas por lei (n.º 1 do artigo 64.º da CRA), não podendo haver penas nem medidas de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou duração ilimitada ou indefinida (n.º 1 do artigo 66.º da CRA).

9. Encontra-se detido além de todos os prazos máximos de prisão preventiva, estabelecidos por lei, conforme o disposto na alínea d) do n.º 1, do artigo 283.º do CPP, tendo a sua pretensão acolhimento à luz do princípio da dignidade da pessoa humana que configura um princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, positivado no artigo 1.º da CRA.

10. Nesta conformidade, o Despacho recorrido viola normas constitucionais e ordinárias previstas nas disposições combinadas pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 36.º, n.º 1 do artigo 66.º, respeitantes ao direito à liberdade física, n.º 2 do artigo 67.º, referentes às garantias do processo-crime, artigo 72.º alusivas ao julgamento justo e conforme todos da CRA, bem como a alínea d) do n.º 1 do artigo 283.º e artigo 284.º, ambos do CPPA, concernentes aos prazos de prisão preventiva e a restituição do arguido à liberdade.

O Recorrente termina requerendo que se dê provimento ao presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade e, em consequência, seja declarado inconstitucional o Despacho recorrido, devendo, ao final, restituir-se a liberdade do mesmo.
O Processo foi a vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar, para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto, nos termos da alínea a) e do parágrafo único do artigo 49.º, conjugado com o artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar e decidir o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, dispõem de legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
O Recorrente é parte no Processo n.º 21/24 que correu trâmites no Tribunal Supremo, não se conformando com a decisão proferida, tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

 


IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é verificar se o Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, proferido a 7 de Outubro de 2024, em sede do Processo de habeas corpus n.º 21/24, que foi julgado improcedente, com fundamento no perigo de continuação da actividade criminosa ou perturbação grave da ordem e tranquilidade pública, ofendeu ou violou direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados.

V. APRECIANDO

Os autos em análise, circunscrevem-se na apreciação do Tribunal Constitucional sobre a decisão proferida pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, em sede do Processo de habeas corpus n.º 21/24, o qual foi julgado improcedente, com fundamento no perigo da continuação da actividade criminosa ou perturbação grave da ordem e tranquilidade pública.

A providência de habeas corpus é um direito e uma garantia fundamental, constitucionalmente consagrado no n.º 1 do artigo 68.º da CRA, que dispõe o seguinte: “Todos têm direito à providência de habeas corpus contra o abuso de poder, em virtude de prisão ou detenção ilegal, a interpor perante o Tribunal competente”.

Esta garantia constitucional vem reforçada no artigo 6.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos que estabelece o seguinte: “todo o indivíduo tem direito à liberdade e à segurança da sua pessoa. Ninguém pode ser privado da sua liberdade salvo por motivos e nas condições previamente determinados por lei; em particular, ninguém pode ser preso ou detido arbitrariamente”.

Neste sentido, pode-se afirmar que o habeas corpus é uma garantia que tem como objectivo estancar, prontamente, ofensas ao direito à liberdade, constituindo-se, assim, como um importantíssimo instrumento de salvaguarda daquele direito, sendo, por isso, um dos valores sagrados da vida humana, sobretudo quando alguém sofre violação ou privação da sua liberdade por ilegalidade. Deste modo, a providência extraordinária de habeas corpus é o meio adequado de defesa do direito à liberdade individual, a utilizar em caso de prisão ou detenção ilegal com carácter de urgência.

Como afirma João Castro e Sousa: “trata-se, na verdade, de uma providência extraordinária, de um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja outro remédio legal capaz de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade” (A Tramitação do Processo Penal, Coimbra, 1985, p. 119).
No mesmo sentido, acolhem-se os fundamentos aduzidos por Paulo Mascarenhas quando afirma que: “o habeas corpus é, sem sombra de dúvidas, a mais destacada das medidas de garantia da liberdade pessoal do indivíduo. Protege a liberdade no que ela tem de preliminar ao exercício de todos os demais direitos e liberdades. Defende-a na sua manifestação física, isto é: no direito de o indivíduo não poder sofrer constrição na sua liberdade; de locomover-se em razão de violência ou coação (Manual de Direito Constitucional, Salvador, 2008, p. 94)”.

Tendo sido julgado em 1.ª instância e não se conformando com a decisão, interpôs recurso para o Tribunal Supremo; não tendo sido, até ao presente momento, proferida a decisão, tal facto configura o não trânsito em julgado da decisão proferida em primeira instância, facto que motivou o Recorrente a impetrar a providência extraordinária de habeas corpus, a qual foi julgada improcedente, com fundamento no perigo da continuação da actividade criminosa ou perturbação grave da ordem e tranquilidade pública.

Compulsados os autos, consegue-se aferir que o ora Recorrente foi detido preventivamente no dia 11 de Outubro de 2018 e a condenação em primeira instância ocorreu no dia 22 de Março do ano de 2019, tendo o Despacho da improcedência da providência de habeas corpus, fls. 25 a 37, com fundamento no perigo da continuação da actividade criminosa ou perturbação grave da ordem e tranquilidade pública, sido proferido aos 7 de Outubro de 2024. Portanto, o Recorrente encontra-se preso, preventivamente, há 72 meses.

Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 283.º do CPPA relativamente aos prazos de prisão preventiva, a mesma cessa quando, desde o seu início decorrerem:
a) 4 meses sem a acusação do arguido;
b) 6 meses sem o arguido ser pronunciado;
c) 12 meses até a condenação em primeira instância
d) 18 meses sem haver condenação com trânsito em julgado.

Destarte, tais prazos podem ser dilatados e vale enfatizar que, nos termos do n.º 4 do artigo 283.º do CPPA, o prazo máximo de prisão preventiva, sem haver condenação com trânsito em julgado é de 20 (vinte) meses, se for interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao prazo acrescem 4 (quatro) meses.

A Constituição da República de Angola consagra no seu artigo 36.º o direito à liberdade física e segurança pessoal. Preceitua o n.º 2 deste dispositivo legal que “Ninguém pode ser privado da liberdade, excepto nos casos previstos pela Constituição e pela lei”. Este preceito legal tem uma dupla vertente: por um lado garante a todos os cidadãos a liberdade de locomoção e por outro, permite que este direito seja restringido, desde que dentro dos pressupostos legais, como é o caso da prisão preventiva.

Por esta razão, dada a importância que o legislador constituinte atribui ao direito à liberdade dos cidadãos, a sua aplicação nunca pode ser contrário ao estabelecido por lei, sobretudo no que toca aos fundamentos para efeitos de habeas corpus, constantes do artigo 290.º do CPPA.

Deste modo, não transitando a sentença da condenação do Recorrente, em sede do Tribunal a quo, é clarividente que o mesmo se encontra em excesso de prisão preventiva à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual constitui, segundo Esteves Carlos Hilário, o designado núcleo da essência do direito, o que o situa num local de especial destaque e, mesmo não sendo aceite este axioma, fácil será de perceber que o conteúdo da dignidade da pessoa humana, subjacente em cada direito fundamental, está e assim deverá permanecer, imune a qualquer restrição e, qualquer violação ao conteúdo da dignidade da pessoa humana, contido no núcleo essencial do direito, será desproporcional (Ensaios Sobre o Conteúdo Jus-Filosófico do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, Fac Simile, 2018, pp. 82-83).

Daí que, do douto Despacho tenha sido interposto recurso extraordinário de inconstitucionalidade com efeito suspensivo, por força de recurso interposto à esta Corte; pois encontrando-se o ora Recorrente preso preventivamente há mais de 72 meses, verifica-se uma violação dos prazos legais estabelecidos para a prisão preventiva, e sendo o direito à liberdade um direito absoluto e inalienável, a sua violação configura uma lesão ao princípio da proibição do excesso.

Do acima exposto, facilmente se conclui que o Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, com fundamento no perigo da continuação da actividade criminosa ou perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, não está amparado legalmente. Não tendo havido trânsito em julgado da pena aplicada na 1.ª instância e não sendo, portanto, a condenação definitiva, não interrompe a contagem do prazo de prisão preventiva.

Nos presentes autos, a preclusão do prazo de prisão preventiva coloca a situação carcerária do Recorrente num estado de ilegalidade. Neste sentido, perante determinada submissão de ilegalidade, o habeas corpus constitui o eficaz remédio para estabelecer a liberdade do Recorrente.

Assim sendo, face ao exposto, entende esta Corte Constitucional que os prazos de prisão preventiva foram integralmente excedidos, tendo o Despacho recorrido violado princípios, direitos e liberdades constitucionais alegados pelo Recorrente. Para tal, existe jurisprudência firmada por esta Corte, conforme os Acórdãos n.ºs 312/2013 e 676/2021 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao).
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, ORDENAR:
a) A IMEDIATA RESTITUIÇÃO DO RECORRENTE À LIBERDADE, SEM PREJUÍZO DA APLICAÇÃO DE OUTRAS MEDIDAS DE COACÇÃO PESSOAL.

b) A REALIZAÇÃO IMEDIATA DO JULGAMENTO.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 11 de Março de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS

Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Carlos Alberto B. Burity da Silva

Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Gilberto de Faria Magalhães

João Carlos António Paulino

Josefa Antónia dos Santos Neto

Lucas Manuel João Quilundo

Maria da Conceição de Almeida Sango

Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva

Vitorino Domingos Hossi (Relator)