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ACÓRDÃO N.º 973/2025

 

PROCESSO N.º 1206-B/2024

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 

I. RELATÓRIO

Mónica Marina de Oliveira Gouveia Pan, com os demais sinais identificativos nos autos, inconformada com a decisão vertida no Acórdão proferido pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no Processo capeado sob o n.º 579/2019, veio a esta Corte de justiça constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

Para tanto, arregimentou as razões fácticas e de direito que fundamentam o presente recurso, invocando, em síntese, o seguinte:

1. Em sede de Decisão, o Tribunal a quo considerou que o prédio urbano de dois pisos, sendo o primeiro, destinado ao comércio e o segundo à habitação, está registado a favor de Emidio Viterbo Quental Gouveia, porém, omitiu qualquer menção referente à posse efectiva da Recorrente.

2. O Tribunal a quo não logrou a prova de que Emídio Viterbo Quental Gouveia, se tenha ausentado injustificadamente do país, porquanto não existia a Lei n.º 3/76, de 3 de Março, para que este justificasse a sua ausência nos termos da Lei n.º 43/76, de 19 de Junho.

3. A 3 de Outubro de 1975, Emídio Viterbo Quental Gouveia constituiu procurador Artur Quental Gouveia, concedendo plenos poderes para tratar de todos os assuntos junto das Repartições fiscais, receber importâncias a que tivesse direito, assinar recibos e títulos de liquidação, movimentar contas bancárias, assinar cheques, bem como quaisquer outros documentos necessários aos fins indicados.

4. A homologação da procuração lavrada por Emidio Viterbo Quental a favor de Artur Quental Gouveia, a 25 de Junho de 1979, apenas para efeitos fiscais, conforme alegado pelo Tribunal a quo, é fundamento suficiente para o reconhecimento do seu direito, pelo que não se deve ignorar o estipulado no artigo 262.º do Código Civil, que dispõe que a procuração é o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos.

5. A solução adoptada pelo Tribunal a quo em face do confisco levado a cabo pelo Estado angolano por força do artigo 97.º da CRA, se mostra a mais adequada ao caso concreto, porém, não dispensa a imperiosa compatibilização com os ditames do artigo 6.º da Constituição da República de Angola.

6. O sustentado no ponto 7 da fundamentação do Aresto, consubstanciado nos comprovativos de pagamentos do imposto predial relativos aos anos, 1977, 1978, 1988 e 1990, aliada à continuidade da posse parcial até à data, demonstra, de forma inequívoca, o cumprimento das obrigações fiscais pela Recorrente, afastando qualquer dúvida quanto à legitimidade do direito.

7. O Tribunal a quo aplicou incorrectamente o direito ao caso concreto, na medida em que, não basta apenas provar os factos, deveria ter verificado e se pronunciado sobre a compra e venda e registo a favor de Sérgio David Francisco Gabriel.

8. O Governo Provincial da Huíla, não dispunha de competências legais para anular quaisquer actos de escritura pública de compra e venda, bem como registos, porém, anulou a compra e venda e registo a favor de Sérgio David Francisco Gabriel e ordenou a compra a favor de Paula Alfredo. A omissão destes factos deixou nebuloso o Acórdão recorrido.

Conclui alegando que, seja o presente recurso julgado e provado procedente e, em consequência, se declare a Decisão do Tribunal Supremo inconstitucional, por ofensa ao princípio da legalidade e violação dos direitos de propriedade privada e de preferência, a favor da Recorrente.

O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA
Nos precisos termos figurados na alínea a) do artigo 49.º e do artigo 53.º ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC) – combinados com a alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) – esta Corte é competente para conhecer do mérito do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Foi observado o esgotamento prévio da cadeia recursória, pressuposto grifado no parágrafo único do artigo 49.º da Lei do Processo Constitucional (LPC).

III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é parte vencida no Processo n.º 579/2019, sobre o qual recaiu a Decisão que negou provimento ao recurso contencioso de impugnação de acto administrativo de confisco, pelo que tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, ao abrigo do preceituado na alínea a) do artigo 50.º da LPC e do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.

IV. OBJECTO
A presente acção tem como escopo verificar se o Acórdão que negou provimento ao recurso contencioso de impugnação de acto administrativo de confisco, prolactado pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo no Processo n.º 579/2019, contende com os princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados na Constituição da República de Angola, concretamente, a ofensa ao princípio da legalidade, a violação do direito de propriedade privada, bem como do direito de preferência da Recorrente.

V. APRECIANDO
O presente recurso impugna a Decisão proferida pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo no Processo n.º 579/2019, que negou provimento ao recurso contencioso de impugnação de acto administrativo de confisco e, em consequência, declarou válido o Despacho Conjunto n.º 27/85, de 8 de Abril, exarado pelo Ministro da Justiça e pelo Secretário de Estado da Habitação, publicado no Diário da República n.º 29 – 1.ª Série, que determina a inscrição a favor do Estado do prédio anteriormente pertencente a Emidio Viterbo Quental Gouveia, sito no bairro Comercial, Rua Dr. António Agostinho Neto, Casa n.º 488 R/C, Lubango, província da Huíla, inscrito na matriz predial da Delegação das Finanças, sob o n.º 1553. A Recorrente peticiona que seja declarado inconstitucional o Aresto, por ofensa ao princípio da legalidade, violação do direito de propriedade privada e do direito de preferência.

Analisados os autos, importa apreciar as questões demarcadas abaixo e concluir, no final, se assistirá ou não razão à Recorrente.

1. Da ofensa ao princípio da legalidade
Preliminarmente, é oportuno destacar, para melhor enquadramento, que o princípio da legalidade, fundamento essencial do Estado Democrático de Direito, hasteado à categoria de princípio constitucional, delimita o âmbito de actuação do poder estatal. Consequentemente, a validade e o exercício de quaisquer competências do Estado pressupõem a existência de uma norma jurídica que sirva de arrimo para a respectiva actuação, sendo vedada qualquer acção que a viole ou exceda os limites legais. A intervenção do Estado em todas as esferas é subordinada à prévia e expressa previsão legal, restando interdita a adopção de medidas desprovidas desse amparo.

A Carta Magna da República de Angola, no n.º 2 do artigo 6.º, estabelece que “o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”.

Sobre esse prisma, Pedro Manuel Luís assinala que, “o princípio da legalidade é mais uma garantia constitucional e da Constituição. Enquanto garantia constitucional salvaguarda o direito individual e colectivo e assegura ao particular a prerrogativa de repelir, rejeitar e resistir às injunções que lhes sejam impostas por outra via que não seja a lei; e enquanto garantia da constituição surge como um meio de protecção, efectivação e respeito da Constituição” (Curso de Direito Constitucional Angolano, 1.ª ed., Luanda, Qualifica Editora, 2014, p. 175).

Analogamente, Alexandre de Moraes advoga que, “o princípio da legalidade é de abrangência mais ampla do que o princípio da reserva legal. Por ele fica certo que qualquer comando jurídico impondo comportamentos forçados há de provir de uma das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo constitucional” (Direito Constitucional, 13.ª ed., São Paulo, Editora Atlas S.A, 2003, p. 69).

Ora, o princípio da legalidade, respaldado no ordenamento jurídico angolano, constitui garantia basilar à segurança jurídica e limite do poder do Estado, sendo por isso indispensável à protecção dos direitos fundamentais no contexto do Estado Democrático de Direito.
No que respeita a actividade jurisdicional, o artigo 175.º e o n.º 1 do artigo 179.º da CRA, reflectem o imperativo de que essa actividade seja realizada em estrita observância das normas jurídicas aplicáveis, incluindo a própria Lex Matter, configurando, deste modo, condição sine qua non a boa administração da justiça.

Em consonância com a jurisprudência consolidada nesta Corte, “o princípio da legalidade é a maior garantia de observância dos direitos do cidadão, é essencial para a segurança jurídica e demais valores consagrados na lei e na Constituição”, tal como se depreende da análise de precedentes firmados nos Acórdãos n.º 698/2021, 712/2021, 787/2022 e 876/2024 (disponíveis em: www.tribunalconstitucional.ao).

Como se extrai a fl. 201 dos autos, a Recorrente aduz que “o citado Acórdão violou o princípio da legalidade previsto no artigo 6.º da CRA, que visa impor aos poderes públicos (tribunais), o dever de agir em conformidade com a Constituição e a lei, isto é, respeitando e fazendo respeitar as leis”.

À fl. 197 dos autos, a Recorrente remata ainda que, “quanto ao alegado no n.º 3, pelo Tribunal a quo de que nos autos não há provas de que Emidio Viterbo Quental Gouveia se tenha ausentado do país justificadamente, nos termos da lei, à data dos factos, não corresponde à verdade, porque não existia a Lei n.º 3/76, de 3 de Março, para que este justificasse a sua ausência nos termos da alíneas a) do artigo 4.º e a Lei n.º 43/76, de 19 de Junho”.

Considerando o exposto supra, é fundamental observar que, não obstante à data dos factos não existir a Lei n.º 3/76, de 3 de Março, a análise dos autos revela a ausência de elementos de prova aptos que espequem a ausência definitiva do país do ex-proprietário do imóvel, considerando que o aludido confisco foi efectivado após o decurso de um decênio sobre a sua partida. Entretanto, o mandatário em território nacional, falecido em 18 de Abril de 2011, jamais manifestou oposição ao acto de confisco, denotando, deste modo, uma aparente aquiescência. Logo, a incidência da Lei n.º 3/76, de 3 de Março, sobre a situação fáctica é inquestionável.

Ora, a legalidade do confisco, in casu, estava condicionada à ausência injustificada do proprietário, por mais de 45 dias. Deste modo, a permanência no país, do ex-proprietário do imóvel, Emídio Viterbo Quental Gouveia ou a apresentação de uma justificação para sua partida ao exterior, obstaria a consumação do confisco.

Do exame à fl. 158 dos autos, se depreende que o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão com base no facto de que Emídio Viterbo Quental Gouveia, ex-proprietário do prédio ora confiscado, ter se ausentado do país injustificadamente em 1975.

O aludido confisco, foi efectivado por Despacho Conjunto n.º 27/85, de 8 de Abril, do Ministro da Justiça e do Secretário de Estado da Habitação, publicado no Diário da República, I. ª Série, n.º 29. No entanto, a medida confiscatória observou os ditames da Lei n.º 43/76, de 19 de Junho e da Lei n.º 3/76, de 3 de Março, diplomas legais vigentes à data dos factos.

Nesta senda, em consonância com o previsto no artigo 1.º da Lei n.º 43/76, de 19 de Junho, “revertem em benefício do Estado, passando a constituir seu patrimônio e sem direito a qualquer indemnização, todos os prédios de habitação, ou partes deles, propriedade de cidadãos nacionais ou estrangeiros, e cujos titulares se encontrem injustificadamente ausentes do País há mais de quarenta e cinco dias”.

À semelhança do plasmado na norma supracita, a Lei n.º 3/76, de 3 de Março, na alínea a) do artigo 4.º determina que podem ser nacionalizados os bens dos cidadãos nacionais ou estrangeiros “que se ausentem injustificadamente do território nacional por um período superior a quarenta e cinco dias”.

A fundamentação para os confiscos, em consonância com o vertido nos diplomas legais, encontra expressão na jurisprudência firmada nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 484/2018, 822/2023 e 930/2024 (Disponíveis em: www.tribunalconstitucional.ao), segundo os quais, “constituíam como pressuposto para o confisco de bens imóveis, a ausência do País, injustificada, de uma pessoa singular, por mais de quarenta e cinco dias.”

O artigo 97.º da CRA, determina que, “são considerados válidos e irreversíveis todos os efeitos jurídicos dos actos de nacionalização e confisco praticados ao abrigo da lei competente, sem prejuízo do disposto em legislação específica sobre reprivatizações”.

Neste particular, Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, asseveram que esta estatuição, “visa a salvaguarda dos efeitos jurídicos das nacionalizações e confiscos, que podem ser centrais e periféricos. O efeito central seria a transferência para o Estado, por força da lei, dos bens objecto de confisco ou nacionalização, por sua vez, os efeitos periféricos corresponderiam a parte ou a universalidade de bens, direitos e obrigações de que o Estado seria titular, como consequência do confisco ou da nacionalização efectuada” (Constituição da República de Angola - Anotada, Tomo I, 2014, pp. 494 e 495).

Destarte, tendo se verificado os pressupostos legais, foi operada a transferência da propriedade do imóvel em questão para o Estado angolano, em virtude do confisco, passando o bem a integrar o domínio patrimonial estatal. O referido imóvel foi devidamente alienado, mediante o competente instrumento de compra e venda, a favor de Paula Alfredo, que assumiu a titularidade do mesmo.

À fl. 197, a Recorrente aduz que “o que se alega pelo Tribunal a quo, no n.º 5, que dá nota de que, a procuração deixada por Emídio Viterbo Quental foi homologada, apenas para fins fiscais (…), é mais uma razão do reconhecimento do seu direito, que não deve se ignorar o estipulado no artigo 262.º do Código Civil, que dispõe que a procuração é o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos”.

Sob esse prisma, vale mencionar que dos autos (fl. 27) se extrai que Emídio Viterbo Quental Gouveia conferiu a Artur Quental Gouveia, “plenos poderes para tratar de todos os assuntos junto das Repartições fiscais, receber importâncias a que tivesse direito, assinar recibos e títulos de liquidação, movimentar as suas contas bancárias, assinar cheques, bem como quaisquer outros documentos necessários aos indicados fins”. Entretanto, a fl. 28 dos autos, se constata a homologação exarada pelo então Ministro da Justiça, com o seguinte teor: “homologo a procuração, tão só para efeitos fiscais”.

Do cotejo dos autos se descortina, sem margem para dúvidas, que não obstante a Recorrente se arrogar como titular do direito de propriedade sobre o aludido imóvel, por força da sucessão mortis causa de Artur Quental Gouveia, facilmente se constata que o anterior proprietário do imóvel não era Artur Quental Gouveia, de quem a impetrante é herdeira, mas sim Emidio Viterbo Quental Gouveia. Ora, a procuração outorgada a favor daquele, em sua literalidade, não se configura como um acto jurídico hábil para operar a transferência da propriedade do bem imóvel, sendo certo que a validade da mesma era até circunspecta a poderes de representação para fins, unicamente, fiscais. Assim, por tudo o expendido, se torna fácil concluir que à Recorrente não assiste razão.

2. Da violação do direito de propriedade e do direito de preferência
Quanto à alegada violação do direito de propriedade, é pertinente destacar que o direito de propriedade é o supremo direito real, através do qual se confere ao titular a mais ampla gama de poderes jurídicos sobre uma determinada coisa, permitindo, deste modo, o uso, gozo e disposição, dentro dos limites legais. Contudo, não obstante a imanente protecção constitucional, a propriedade pode ser restringida em consequência do interesse público, mediante a expropriação, desde que atendidos os requisitos legais.

Ao referir-se sobre o direito de propriedade, Joaquim Marques de Oliveira, sustenta que, “pode ser definido como o direito real máximo, mediante o qual é assegurada a certa pessoa, com exclusividade, a generalidade dos poderes de aproveitamento global das utilidades de certa coisa” (Manual de Direitos Reais de Angola – Lições de Direitos Reais e Legislação Fundiária Angolana, Imprensa Nacional – E.P, 2018, p. 209).

É, no entanto, indubitável que a configuração do confisco em apreço se revela flagrantemente dissonante com a ordem constitucional vigente, que consagra a propriedade privada como direito fundamental. A norma insculpida no n.º 1 do artigo 14.º da CRA, determina que “o Estado respeita e protege a propriedade e demais direitos das pessoas singulares, colectivas, promove a livre iniciativa económica e empresarial, exercida nos termos da Constituição e da lei”.

O n.º 1 do artigo 37.º da CRA, estabelece que, “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão, nos termos da Constituição e da lei”. De acordo com o preceituado no n.º 2 do artigo supracitado, “o Estado respeita e protege a propriedade e demais direitos das pessoas singulares, colectivas e das comunidades locais, só sendo permitida a requisição civil temporária e a expropriação por utilidade pública, mediante justa e pronta indemnização, nos termos da Constituição e da lei”.

Em harmonia com as disposições normativas pertinentes, se depreende que, embora garantido constitucionalmente, o direito de propriedade pode ser restringido por acto administrativo unilateral e compulsório, desde que sejam observados os requisitos legais.

A Recorrente, conforme exame feito à fl. 200, assevera que “o acórdão recorrido deveria validar a escritura pública de compra e venda e o respectivo registo predial (...) a favor de Sergio David Francisco Gabriel, que por sua vez, doou de forma vitalícia ao Sr. Artur Quental Gouveia”.

Atento ao que se deixa exposto, é oportuno destacar que a alienação do imóvel sub judice, efectuada pelo Estado angolano em benefício de Sergio David Francisco Gabriel, foi precedida de um negócio jurídico simulado, a locação, entre este e Artur Quental Gouveia, com o intuito de viabilizar uma ulterior doação do mesmo a favor deste último.

Ordinariamente, o locatário é aquele que ocupa e paga pelo uso temporário do imóvel. Todavia, os autos revelam que nenhum dos dois contraentes detinha a condição de inquilino ou arrendatário efectivo do Estado, uma vez que não residiam no referido imóvel. Não obstante o facto de Sergio David Francisco Gabriel ter logrado um título de ocupação mediante arrendamento concedido pelo Estado, o imóvel em questão era habitado por outra pessoa, na circunstância, a ex-esposa do enteado de Artur Quental Gouveia, com início efectivo desde 1985, ano em que ocorreu o confisco.

Do arcabouço petitório inserto nos autos a fl. 202 se destaca que, “o acórdão recorrido negligenciou a análise da conformidade da compra do imóvel pela Recorrente, que por sua vez, observou os ditames legais decorrentes da Lei n.º 19/91, de 25 de Maio - Lei sobre a Venda do Património Habitacional do Estado, Lei n.º 9/03, de 18 de Abril - que altera a Lei de Venda sobre o Património Habitacional do Estado e o Despacho Presidencial n.º 17/91, de 07 de Maio, vigentes à data dos factos”.

Na verdade, deslindando a exposta colocação da Recorrente, se torna imprescindível frisar que o n.º 1 do artigo 5.º, da Lei n.º 19/91, de 25 de Maio - Lei sobre a Venda do Património Habitacional do Estado, estabelece que, “o Estado venderá o parque habitacional de sua propriedade às pessoas singulares e colectivas de nacionalidade angolana”. O n.º 3 da referenciada norma determina que, “o Estado na alienação do seu património imobiliário dará preferência aos seus inquilinos”.

Como fica claro de ver, da hermenêutica feita à norma em apreço resulta que a preferência do locatário na aquisição de um imóvel do Estado, está condicionada à efectiva condição de arrendatário no momento da alienação. Dito de modo diverso, a prioridade na adquirição de um imóvel, na hipótese de alienação efectuada pelo Estado, é conferida ao ocupante que detém a posição de inquilino.

Em conformidade com o disposto no artigo 14.º da Lei n.º 19/91, de 25 de Maio, “o registo dos actos de confisco, praticados ou a praticar nos termos da Lei n.º 3/76, de 3 de Maio e da Lei n.º 43/76, de 19 de Junho e da venda dos prédios confiscados, nos termos da presente Lei prevalece sobre outros registos, ainda que praticados a favor de terceiros de boa fé”. Assim, é incontestável que o registo dos actos de expropriação por via de confisco, realizados ou por realizar, ao abrigo da legislação pertinente, prevalecem sobre os demais.

Importa frisar que a primazia aos inquilinos do Estado, fundamentada na função social da propriedade, visa, tão-somente, assegurar aos ocupantes efectivos a prioridade na aquisição dos bens onde residem ou exercem suas actividades económicas, garantindo a estes, deste modo, a plena oportunidade na transferência da propriedade. Assim, neste particular, não se descortina a postergação dos pretensos direitos da Recorrente epigrafados, termos em que, não está amparada por razão alguma.

De resto, com fulcro nos fundamentos expostos, esta Corte de justiça constitucional conclui que o Aresto recorrido está devidamente ancorado por fundamentos Constitucionais e legais.
Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, EM VIRTUDE DE O ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO TER OFENDIDO NENHUM PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL OU DIREITO FUNDAMENTAL, DEVENDO SER MANTIDO NOS PRECISOS TERMOS.

Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 12 de Março de 2025.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Carlos Alberto B. Burity da Silva

Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Gilberto de Faria Magalhães

João Carlos António Paulino (Relator)

Josefa Antónia dos Santos Neto

Lucas Manuel João Quilundo

Maria da Conceição de Almeida Sango

Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva

Vitorino Domingos Hossi