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ACÓRDÃO N.º 974/2025

 

PROCESSO N.º 1189-A/2024

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO
Esmeraldo João Garcia da Silva, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional, interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por não se conformar com o Acórdão de 30 de Outubro de 2019, proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 3349/2019, que o condenou na pena de 16 anos de prisão maior pela prática de crime de homicídio voluntário simples, p.p. pelo artigo 349.º do Código Penal (CP) e na indemnização de Kz. 2 000 000,00 (dois milhões de kwanzas).

Para sustentar a sua pretensão, o Recorrente alega em síntese, os seguintes fundamentos:

1. Que existe violação sistemática da Constituição da República de Angola (CRA), por haver indícios bastantes que apontam, como injusto o julgamento do aqui Recorrente vertidos nas normas dos artigos 29.º, 67.º e 72.º, todos da CRA.

2. Nos autos, não há qualquer meio apreendido, que constitua uma arma de fogo, tampouco, há registo de perícia laboratorial neste sentido. Diante disso, como foi possível determinar que o arguido, de facto, disparou o projéctil contra a vítima? É evidente que estamos diante da violação do direito ao julgamento justo conforme, artigo 72.º da CRA.

3. Verificada a ausência da arma de fogo nos autos, não se pode imputar ao arguido a presente responsabilidade criminal, por indícios de insuficiência de prova que se traduz na violação do n.º 1 do artigo 65.º da CRA, sendo ele arguido inocente.

4. O Juiz Relator, ao analisar o recurso com base nas escassas provas constantes nos autos e na condenação em primeira instância alterou a moldura penal, em clara violação dos artigos 98.º e 667.º, ambos do CPP já revogado. Tal decisão torna o julgamento do arguido, injusto, causando-lhe total prejuízo e configurando, assim, uma violação aos artigos 29.º, 67.º e 72.º da CRA.

Nestes termos, termina pedindo a este Tribunal que dê provimento ao presente recurso e em consequência, ordene a revogação do presente Acórdão.

O processo foi à vista do Ministério Público que, a fls. 335 e 336 dos autos, pugnou pelo provimento do recurso, nos seguintes termos:
“Pelo exposto, pugnamos pelo provimento do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, uma vez que se comprovou a existência de violação de princípios constitucionais e de direitos fundamentais (…)”.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e 53.º, ambos da Lei do Processo Constitucional (LPC), competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos.

Esta faculdade está igualmente prevista na alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC e do n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

O Recorrente é parte no Processo n.º 3349/2019, que correu trâmites na Câmara Criminal do Tribunal Supremo, sobre o qual recaiu a decisão que alterou a sentença da 1.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda e tem interesse directo em que a causa seja apreciada pelo Tribunal Constitucional.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto o Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 3349/2019, que correu trâmites junto da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, pelo que emerge verificar se este ofendeu, ou não, princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição da República de Angola (CRA).

V. APRECIANDO

Submete-se à apreciação a constitucionalidade da Decisão proferida pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, a qual modificou o julgado anteriormente prolactado pela 1.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, agravando a pena imposta ao Recorrente de 4 (quatro) anos para 16 (dezasseis) anos de prisão maior.

Ora,

Versam os autos, que o Recorrente mediante processo de querela do Ministério Público, que correu trâmites na 1.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, foi acusado e pronunciado pela prática do crime de homicídio voluntário simples, p.p. pelo artigo 349.º do Código Penal (CP) vigente à época.

Porém, realizado o julgamento naquela instância, foi o Recorrente condenado na pena de 4 (quatro) anos de prisão maior, nos termos do n.º 1 do artigo 94.º da referida lei, no pagamento de kz. 80 000,00 (oitenta mil kwanzas) de taxa de justiça e kz. 1 000 000,00 (um milhão de Kwanzas) a título de indemnização aos familiares da vítima.

Todavia, em desacordo com o decidido no aludido aresto do Tribunal da primeira instância, recorreu para o Tribunal Supremo, a 11 de Abril de 2019 (fls. 233-238 dos autos), alegando que houve uma análise sofista e superficial dos factos e ignorância no critério de valoração da prova que a lei e a doutrina fazem referência.

Por seu turno, o Tribunal recorrido, ao contrário da Decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância, decidiu no Acórdão em sindicância, alterar a pena e condenar o arguido aqui Recorrente, a 16 anos, (dezasseis) de prisão maior e na indeminização de Kz. 2 000 000,00 (dois milhões de kwanzas), fls. 251V dos autos.

Entretanto, uma vez mais, insatisfeito com o decidido, veio o mesmo interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, alegando existência de dúvidas quanto ao nexo de causalidade entre as agressões perpetradas e a morte da vítima.

De notar que o Recorrente se encontra sob medida de coacção pessoal de Termo de Identidade e Residência.

Veja-se,

O Recorrente, no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, requer a intervenção deste Tribunal, por entender que o Acórdão recorrido ofendeu princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais, mormente, os artigos 29.º, 67.º, 72.º e 164.º, todos da CRA, e por fim os artigos 98.º e 667.º, ambos do CPP revogado.

Dentre os argumentos apresentados pelo Recorrente nas suas alegações destacam-se, com maior ênfase, sua insatisfação quanto à decisão impugnada, sob alegação de que esta teria sido omissa na valoração da prova material constante nos autos, em razão disso, sustenta que houve agravamento da pena imposta.

Observa-se, a partir do exposto, que a pretensão do Recorrente consiste na reapreciação dos autos, por este Tribunal, como se se tratasse de mais uma instância da jurisdição comum.

No entanto, é imperioso destacar que o Tribunal Constitucional não pode ser considerado uma instância adicional de jurisdição comum, tendo em vista que as suas competências estão estritamente delimitadas pelas disposições conjugadas do artigo 181.º da CRA e 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), com a redacção conferida pelo artigo 2.º da Lei n.º 24/10, de 3 de Dezembro.

Ora, de acordo com estes dispositivos, cabe ao Tribunal Constitucional a administração da justiça em questões de natureza jurídico-constitucional, sendo responsável, no âmbito dos recursos extraordinários de inconstitucionalidade, pela análise e o controle de decisões recorridas que apresentem fundamentos contrários aos princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais na CRA.

Nesse sentido, a jurisprudência consolidada desta Corte, expressa nos Acórdãos n.ºs 613/2020, 777/2022 e 791/2022, entre outros, é clara e bem fundamentada ao estabelecer que o Tribunal Constitucional não se configura como mais uma instância recursal ordinária. Consequentemente, nos termos da lei, é-lhe vedado proceder à reapreciação da matéria de facto ou ao reexame da prova produzida nos autos (www.tribunalconstitucional.ao).

Assim, esta Corte constitucional não pode substituir as demais instâncias de jurisdição criminal na valoração da prova penal, se quer decidir sobre a responsabilização penal do Recorrente.

No entanto, ao requerer a reapreciação do Acórdão recorrido, o Recorrente sustenta com fundamento relevante, que o agravamento da pena imposta, decorrente da valoração da prova, resultou na violação de diversos preceitos constitucionais especialmente da garantia de um julgamento justo e adequado.

Diante disso, considerando que o direito a um julgamento justo e conforme, constitui uma garantia fundamental no âmbito do processo penal, incorporando uma dimensão de imposição e protecção jurídica, o Recorrente, em última análise, sustenta que houve violação desse direito. Em sua tese, coloca em questão, de forma ampla, a actividade probatória que emboscou a sua condenação pelo crime de homicídio voluntário simples, alegando que essa circunstância resultou na violação do princípio da reformatio in pejus.

Dessa forma, considerando a conexão entre os princípios invocados, impõe-se primeiramente, a análise da alegada ofensa do princípio da proibição da reforma da sentença em prejuízo do arguido, com o propósito de verificar a ocorrência, ou não, de violação ao direito a julgamento justo e conforme.

Observe-se,

O Princípio da reformatio in pejus traduz-se na proibição de o Tribunal proferir, em recurso exclusivo da defesa, decisão mais desfavorável ao acusado do que a impugnada.

A respeito, Damião Cunha entende que “este princípio assume uma função garantística do exercício do direito ao recurso (…)” (Caso julgado Parcial - Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória, Universidade Católica Portuguesa, 2002, p. 227).

Tem sido entendimento sufragado por esta Corte de Justiça Constitucional que o princípio da reformatio in pejus “consiste no impedimento imposto ao Tribunal ad quem de agravar a pena, quando o recurso é impetrado pelo réu ou pelo Ministério Público, ou por ambos no interesse exclusivo do arguido”. (vide Acórdão n.º 720/2019, disponível em www.tribunalconstitucional.ao).

A proibição da reformatio in pejus tem como escopo fundamental obstar que o arguido, perante a possibilidade de ver a condenação agravada, tenha desconfiança em recorrer de uma sentença condenatória insustentável.
O princípio visa, ainda, salvaguardar não só as garantias de defesa do arguido, mas, sobretudo, o princípio constitucional do direito ao recurso. O artigo 667.º do Código do Processo Penal (CPP) de 1929, em vigor à data dos factos, estabelecia que “interposto recurso ordinário de uma sentença ou acórdão somente pelo réu, pelo Ministério público nesse exclusivo interesse da defesa, o tribunal superior não pode, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrente;
1.º Aplicar pena que, pela espécie ou medida, deva considerar-se mais grave do que a constante da decisão recorrida;
2.º Revogar o benefício da suspensão da execução da pena ou o da sua substituição por pena menos grave;
3.º Aplicar qualquer pena acessória, não contida na decisão recorrida, fora dos casos em que a lei impõe essa aplicação;
4.º Modificar, de qualquer modo, a pena aplicada pela decisão recorrida.
§ 1.º A proibição estabelecida neste artigo não se verifica:
1.º Quando o tribunal superior qualifica diversamente os factos, nos termos dos artigos 447.º e 448.º, quer a qualificação respeite à incriminação, quer a circunstâncias modificativas da pena.
2.º. Quando o representante do Ministério Público junto do tribunal superior se pronuncie, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, aduzindo logo os fundamentos do seu parecer, caso em que serão notificados os réus, a quem será entregue cópia do parecer, para resposta no prazo de oito dias”. O que se diga, em abono da verdade, não ocorreu no caso em apreciação.

Ora, esquadrinhados os autos, percebe-se que houve três (3) recursos, todos por inconformação com a decisão prolactada na primeira instância, sendo o primeiro interposto pela defesa do aqui Recorrente, o segundo interposto pelo assistente do premoriente e o terceiro interposto pelo Ministério Público. Diante disso, não há, a priori, motivos para se inferir a ofensa do princípio da reformato in pejus, uma vez que os recursos não foram todos interpostos no exclusivo interesse do aqui Recorrente, na condição de arguido. Como estabelecia o artigo 667.º do CPP, aplicável à data dos factos.

Entretanto, diante da existência de um parecer do Ministério Público, junto do Tribunal ad quem, no sentido de agravar a pena, fls. 244 dos autos, ocorreu que não foi notificado o aqui Recorrente do referido pronunciamento do Ministério Público que no seu visto inicial promoveu o agravamento da condenação, consubstanciando flagrante atropelo ao princípio do contraditório, notando-se que, não lhe foi dada a oportunidade de defesa, conforme estabelece o n.º 1 do artigo 67.º e n.º 2 do artigo 174.º, ambos da CRA.

A posição do Ministério Público deve ser devidamente fundamentada e comunicada ao Recorrente para que este possa exercer o direito ao contraditório não há, porém, no Acórdão recorrido elementos que indiquem o cumprimento desta imposição legal, o que não só configura violação ao princípio da legalidade, como igualmente do direito ao julgamento justo e conforme, neste incluindo o direito ao contraditório e à ampla defesa.

Do acima exposto, depreende-se que se, por um lado, a determinação da pena aplicada resulta da lei, por outro lado, verifica-se que o procedimento que sustentou a sua alteração excepcional, não obedeceu os ditames legais, o que configura restrição ao direito do contraditório e da ampla defesa do aqui Recorrente, direitos esses que, igualmente, se assumem como dimensões do direito ao julgamento justo e conforme, que o Recorrente alega ter sido violado.

A este propósito, o aludido direito está amplamente garantido pelos artigos 72.º e n.º 2 do 174.º, ambos da CRA. O artigo 72.º da CRA dispõe que “a todo o cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei”.

O direito a julgamento justo e conforme está também, vastamente consagrado em inúmeros instrumentos jurídicos do direito internacional. Neste aspecto referem-se o artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que estabelece que “toda pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei” e a alínea c) do artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos do Humanos e dos Povos (1981) que dispõe sobre o direito de defesa.

Um julgamento é considerado justo, quando os tribunais respeitam, os princípios da imparcialidade, independência e da equidade no tratamento das partes e seus representantes.

Assim, a omissão da notificação ao Recorrente sonegou o seu direito ao contraditório, isto é, o seu direito de dizer de sua justiça sobre a posição do Ministério público, quanto ao agravamento da pena, pelo que a omissão viola o princípio de igualdade de partes no processo.

O Tribunal ad quem ao proferir o Acórdão não atendeu o princípio do contraditório, baseou-se unicamente na posição de uma das partes, o que contraria o espírito da igualdade de armas que deve presidir a todo processo, como critério valorativo do julgamento justo e conforme.
Face ao espelhado, este Tribunal entende que o Acórdão recorrido ofendeu o princípio da legalidade, n.º 2 do artigo 6.º, direito à defesa, n.º 1 do artigo 67.º, o direito a julgamento justo e conforme, artigo 72.º, o direito ao contraditório, n.º 2 do artigo 174.º, todos da CRA, assim como a garantia penal prevista no n.º 2 do § 1.º do artigo 667.º do CPP, em vigor à data dos factos.

Nestes termos,
DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
A) DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE, POR OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE, AOS DIREITOS DO CONTRADITÓRIO, A JULGAMENTO JUSTO E CONFORME, VERTIDOS NOS ARTIGOS 67.º, 72.º E 174.º, TODOS DA CRA, ASSIM COMO A GARANTIA PENAL PREVISTA NO N.º 2 DO § 1.º DO ARTIGO 667.º DO CPP, EM VIGOR A DATA DOS FACTOS;

B) EM CONSEQUÊNCIA, DEVEM OS AUTOS BAIXAR PARA OS EFEITOS DO N.º 2 DO ARTIGO 47.º DA LPC, ISTO É, NOTIFICANDO-SE O RECORRENTE DA VISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO DO TRIBUNAL RECORRIDO SEGUINDO OS AUTOS SEUS ULTERIORES TERMOS.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 13 de Março de 2025.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Carlos Alberto B. Burity da Silva

Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Gilberto de Faria Magalhães

João Carlos António Paulino

Josefa Antónia dos Santos Neto

Lucas Manuel João Quilundo

Maria da Conceição de Almeida Sango

Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva (Relatora)

Vitorino Domingos Hossi