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ACÓRDÃO N.º 975/2025

 

PROCESSO N.º 1238-B/2024

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

João Miguel dos Santos Cahanda, com os melhores sinais de identificação nos autos, veio a esta Corte Constitucional, ao abrigo da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolactado pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, datado de 30 de Junho de 2024, no âmbito do Processo n.º 6097/21, que condenou o arguido, ora Recorrente, na pena de 4 anos de prisão pelo crime de passagem e colocação em circulação de moeda falsa, por inferir que o mesmo ofende princípios previstos na Constituição da República de Angola (CRA).

Inconformado com a Decisão proferida, recorreu para esta Corte, onde, notificado nos termos do disposto no artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional, alegou tempestivamente, o que, em síntese, infra se arrola:

1. Não cometeu qualquer crime porque foi incitado por agentes do Serviço de Investigação Criminal, sendo que o Tribunal não pode formar convicção por meio de denúncias apresentadas pelos órgãos de Investigação Criminal, desconsiderando tudo que se produziu em sede de audiência, com a justificação de que as declarações do arguido em sua defesa eram incabíveis e incoerentes.
2. Com a decisão ora recorrida, o Tribunal Supremo violou os direitos fundamentais do arguido, nos termos dos artigos 22.º n.º 1, 29.º n.º 1, 57.º n.º 1, 63.º, 64.º, 65.º, 67.º, 73.º e 174.º, todos da Constituição da República de Angola.

3. As provas apresentadas pelo Serviço de Investigação Criminal são consideradas ilícitas, violam o princípio da legalidade, que impõe, em processo penal, que a prova deve ser obtida por qualquer meio não proibido por lei.

4. Que foi burlado por indivíduos desconhecidos que o entregaram uma mala contendo USD 4.000 000,00 (Quatro Milhões de Dólares dos Estados Unidos) porque, alegadamente, as notas estavam borradas com pomada de engraxar sapatos, a troco de 1 500 000, 00 (Um Milhão e Quinhentos Mil Kwanzas), pensando que estaria em posse de dólares verdadeiros.

5. Quando se deu conta que não passava de uma burla, abandonou a caixa na parte traseira do carro e ao levar a viatura tempos depois para o mecânico, este ao ver a caixa, comunicou aos seus amigos do SIC-Geral.

6. Os agentes do Serviço de Investigação Criminal (SIC Geral), fizeram o papel de agente provocador, situação que a Lei que regula a actuação dos elementos deste órgão de polícia criminal proíbe.

7. Ficou confirmado pelo declarante do SIC-Geral, na instância do Ministério Público que “toda actuação referentes à compra das notas de dólares falsos, que estranhamente foram parar na posse do arguido requerente, foi realizada pelos efectivos do SIC-Geral.”

8. Os efectivos do SIC-Geral não detiveram o arguido em flagrante delito, nem o arguido deve ser penalizado como criminoso, por serem aqueles oficiais responsáveis pelo ardiloso esquema criminoso para incriminar um inocente.

9. Por ter ignorado deliberadamente uma importante prova a favor do Recorrente, o Tribunal a quo foi parcial, pelo que violou o direito fundamental de julgamento justo e conforme à lei, positivado no artigo 72.º da CRA, concomitantemente, o Acórdão recorrido é inconstitucional, nos termos do artigo 226.º, igualmente da CRA.

Termina deprecando que se revogue o Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, por violação de direitos e princípios constitucionais.


O processo foi à vista do Ministério Público, que a fls. 399 e verso promoveu em conclusão, o seguinte: “tendo em atenção os elementos carreados para apreciação deste tribunal, salvo melhor opinião, não nos parece que, no Acórdão recorrido, tenha havido violação dos princípios constitucionais nos moldes descritos pelo Recorrente e sim inconformação com o mérito da decisão, ou seja, com a forma como a 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo valorou a prova, interpretou e aplicou o direito concreto.

Pelo exposto, pugnamos pela improcedência do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por não se comprovar a violação de princípios constitucionais ou de direitos, liberdades e garantias fundamentais”.

Colhidos os vistos legais, dos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir, já que nada a tal obsta.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto com fundamento na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, de “sentença dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento da cadeia recursória, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, pelo que dispõe o Tribunal Constitucional de competência para apreciar o presente recurso.

II. LEGITIMIDADE

A legitimidade para a interposição de um recurso extraordinário de inconstitucionalidade cabe, no caso de sentença, à pessoa que, em harmonia com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, possa dela interpor recurso ordinário, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC.

No caso em equação, o Recorrente, enquanto parte do Processo n.º 6097/2021, que tramitou junto da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo e que não viu a sua pretensão atendida, dispõe de legitimidade para recorrer.

 

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é o Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo n.º 6097/2021, competindo ao Tribunal Constitucional apreciar se o mesmo ofendeu os princípios da legalidade, da tutela jurisdicional efectiva e o direito a julgamento justo, todos previstos na Carta Magna da República de Angola.

V. APRECIANDO

É submetido à apreciação do Tribunal Constitucional, o Aresto prolactado pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 6097/21, que condenou o arguido, ora Recorrente, na pena de 4 anos de prisão pelo crime de passagem e colocação em circulação de moeda falsa.

O Recorrente, no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, requer a intervenção do Tribunal Constitucional, por entender que o Acórdão Recorrido ofendeu os princípios da legalidade, da tutela jurisdicional efectiva e o direito a julgamento justo e conforme.

Cumpre observar, preliminarmente, que as alegações do Recorrente demonstram do início ao fim uma clara intenção de trazer a esta Corte Constitucional uma nova discussão das questões de mérito contidas no Acórdão recorrido, comprovando a todo o instante a inconformação deste com a decisão prolactada no processo-crime. Apesar de se socorrer de princípios constitucionais e direitos fundamentais, este os invoca, mas não consegue comprovar como e em que medida tais princípios e direitos foram efectivamente violados, demonstrando sim a sua visão sobre a forma mais correcta em que o processo-crime deveria ser decidido.

A jurisprudência deste Tribunal soa nesse sentido, in verbis: “afigura-se que o Recorrente atém-se a elementos assessórios, não se vislumbrando, por conseguinte, as razões segundo as quais se funda a inconstitucionalidade invocada. Pois, ao questionar-se a conformidade constitucional da decisão recorrida, dever-se-ia especificar, claramente, com precisão e rigor, os motivos essenciais pelos quais a decisão em crise fere princípios, direitos, liberdades ou garantias constitucionais” (vide Acórdão n.º 958/2025, de 12 de Fevereiro, nessa mesma linha, entre outros, os Acórdãos n.ºs 886/2024, de 14 de Maio, 791/2022, de 14 de Dezembro, 777/2022, de 31 de Outubro e 613/2020, de 29 de Abril disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao).

Veja-se, pois, se assistir-lhe-á razão face à alegada ofensa aos princípios invocados.

Importa esclarecer que os argumentos trazidos à liça pelo Recorrente prendem-se fundamentalmente com a ideia segundo a qual o então Tribunal Provincial de Luanda e o Tribunal Supremo procederam a uma incorrecta valoração das provas, por ignorarem as que seriam a favor deste e terem formado a sua convicção com base em meios probatórios obtidos de forma ilegal e de que os Órgãos de Polícia Criminal é que o incitaram por meio de artimanhas a cometer o crime de que foi acusado, julgado e condenado, assim sendo, foram ofendidos os princípios da legalidade, da tutela jurisdicional efectiva e o direito a julgamento justo e conforme.

Perante este facto, não é competência do Tribunal Constitucional aferir se o juízo do Tribunal ad quem procedeu a uma correcta apreciação da prova ou não, haja em vista que determina o artigo 181.º da CRA que cabe a esta Jurisdição tão somente, “apreciar em recurso a constitucionalidade das decisões dos demais Tribunais (…)”.

Aliás, conforme ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, “o Tribunal Constitucional ocupa um lugar especial e autónomo na ordenação dos tribunais (…) [dada] a sua natureza específica face aos demais tribunais, traduzida no facto de ele ser o tribunal de recurso das decisões de todos os restantes tribunais em matéria de constitucionalidade” (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 4.ª ed., 2010, p. 548).

Não é demais destacar, a título de esclarecimento, que o Recorrente foi julgado e condenado pelo antigo Tribunal Provincial de Luanda na pena de 4 anos de prisão maior, pelo crime de passagem e colocação em circulação de moeda falsa, na forma tentada e no pagamento de Kz 90 000, 00 (Noventa Mil Kwanzas) de taxa de justiça.

Após recurso junto do Tribunal Supremo, a mais alta instância da jurisdição comum, alterou a decisão recorrida condenando, o aqui Recorrente, na pena de 4 anos de prisão, pelo crime de passagem e colocação em circulação de moeda falsa, na forma consumada e no mais, confirmou o anteriormente decidido.

Nesse passo, voltando à apreciação do caso em tela, de referir que é corolário do princípio da legalidade, o princípio da legalidade penal, resultando das disposições dos artigos 2.º e 65.º, ambos da CRA.

Defende Dalvan Costa que: “consagrado nos n.ºs 2 e 3 do artigo 65.º da CRA, e preteritamente infirmado pelo [artigo 1.º do Código Penal] (…), este exprime-se historicamente pela fórmula nullum crimen sine lege. Exige, numa formulação directa, que não haja crime sem lei prévia que assim determine (Legalidade Penal e Constituição. Da constitucionalidade do artigo 28.º da Lei dos Crimes Contra a Segurança de Estado, in Revista JURIS, vol. 1, n.º 2, 2016, pp. 77, 78, disponível em: https://doi.org/10.34632/juris.2016.9174).

Na óptica de Mário Ferreira Monte este princípio, “significa que não pode haver uma condenação criminal sobre um facto que não esteja previamente estabelecido como tal em lei. É uma garantia do cidadão contra eventuais abusos de quem tenha o direito de punir” (Os Novos Caminhos do Direito Sancionatório Público Angolano à luz da Constituição. Direito Penal e Direito Contraordenacional in A Guardiã, Revista Científica do Tribunal Constitucional, n.º 1, 2023, p. 276, disponível em: https://www.tribunalconstitucional.ao/pt/biblioteca/revista-digital/).

Na jurisprudência desta Corte sobre esta temática contida no Acórdão n.º 727/2022, de 22 de Fevereiro, colhe-se o seguinte entendimento: “a ratio da garantia jurídico-política do indivíduo contra as eventuais arbitrariedades punitivas por parte dos tribunais ou dos governos determinou e continua a determinar a consagração constitucional do princípio da legalidade penal, enquanto pilar estruturante do ordenamento jurídico-constitucional” (vide de igual modo, os Acórdãos n.ºs 824/2023, de 7 de Junho e 806/2023, de 9 de Março disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao).

Neste ponto cumpre apontar que, o Recorrente sustenta de igual modo que o Tribunal Supremo violou os direitos de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e à julgamento justo e conforme, ambos subsumíveis ao princípio do processo equitativo ou devido processo legal, nos termos dos artigos 29.º, 67.º e 72.º, todos da CRA e 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

No que concerne a este princípio, assevera Maria Amália Pereira dos Santos que, “todo o processo, desde o momento de impulso da acção até o momento da execução deve estar informado pelo princípio da equidade, através da exigência do processo equitativo, o qual deve ser encarado num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa ʻexigência de um procedimento legislativo devido na conformação do processoʼ, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais” (O Direito Constitucionalmente Garantido dos Cidadãos à Tutela Jurisdicional Efectiva, in Revista Julgar, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Novembro de 2019, p. 12).

Na mesma esteira, Pedro Manuel Luís defende que, “o devido processo legal configura uma dupla protecção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa ʻdireito à defesa técnica, à publicitação do processo, à citação, de produção de amplas provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminalʼ” (Curso de Direito Constitucional Angolano, Qualifica Editora, 2014, p. 205).

Gomes Canotilho e Vital Moreira entendem que se inclui no direito de acesso aos tribunais, “[o] direito de acção e de acesso aos tribunais, (…) o direito a um processo, o direito a decisão que verse sobre o mérito da causa e o direito à execução da decisão (…) e a realização em processo temporalmente justo e equitativo” (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 2007, pp. 414 e 415).

Atinente a este princípio, esta Corte Constitucional sedimentou a seguinte jurisprudência, ipsis verbis: “(…) a consagração do direito a julgamento justo e equitativo, que é uma das vertentes do due process, decorrente do princípio do Estado de Direito. Por outro lado, assegura-se o equilíbrio entre as partes, independência e a imparcialidade do julgador e a procura da justiça material” (Acórdão n.º 735/2022, de 13 de Abril, nesse mesmo posicionamento, entre outros, os Acórdãos n.ºs 741/2022, de 3 de Maio, 727/2022, de 22 de Fevereiro e 517/2018, de 11 de Dezembro, disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao).

Compulsados os autos, verifica-se que o Tribunal Supremo no Acórdão ora em crise, fundamentou as razões de ser da sua decisão, com base nas normas jurídicas vigentes sobre a matéria em análise e ateve-se às provas carreadas ao processo, à guisa de exemplo, refere a fls. 346 dos autos que, “os arguidos agiram de forma dolosa porque movidos pela ganância de lucro fácil pretenderam e colocaram em circulação notas falsas, desembocando na modalidade do dolo directo”

Prossegue o Acórdão recorrido no verso da fls. 346 aludindo que, “deste modo, não acompanhamos o entendimento do Tribunal a quo em como o crime foi cometido na forma tentada, na medida que foi possível aos arguidos trocar (cambiar) a moeda estrangeira falsa para a moeda nacional e com esta adquirir os bens que necessitavam.”

Por tudo quanto foi dito e analisado, ficou claro que o Tribunal ad quem, considerou que o então arguido, ora Recorrente, cometeu o crime de que vinha acusado, ou seja, o crime de passagem e colocação em circulação de moeda falsa
e porque provada a factualidade constante da acusação pública, confirmou a sua condenação na pena de 4 anos de prisão.

Dito doutro modo, o Tribunal recorrido valorou as provas constantes no processo dentro do princípio da livre apreciação da prova a que está adstrito e foi no sentido do cometimento de um ilícito criminal por parte do aqui Recorrente, sendo que este teve acesso ao direito e aos tribunais e viu a sua condenação sustentada em critérios jurídico-legais para o efeito existentes.

Julga-se imperioso insistir também no facto de que apesar do Recorrente pretender ver reapreciada a sua causa em sede desta Jurisdição Constitucional, tal desígnio não procede visto que não cabe na apreciação desta Corte o mérito ou demérito das decisões dos demais tribunais.

Assim, dilucidada a questão nos termos ora narrados, esta Corte Constitucional considera que, efectivamente, o Aresto recorrido e ora apreciado, não ofendeu o princípio da legalidade penal, nem violou os direitos à tutela jurisdicional efectiva e a julgamento justo e conforme.


Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 13 de Março de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS

Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente e Relatora)

Carlos Alberto B. Burity da Silva

Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Gilberto de Faria Magalhães

João Carlos António Paulino

Josefa Antónia dos Santos Neto

Lucas Manuel João Quilundo

Maria da Conceição de Almeida Sango

Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva

Vitorino Domingos Hossi