O Conselho Provincial de Benguela da Ordem dos Advogados de Angola realizou, terça-feira, 16 de setembro de 2025, naquela Província, uma Conferência sobre o Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, que contou com a presença da Juíza Conselheira Presidente do Tribunal Constitucional, Laurinda Prazeres.
Ao usar da palavra, a magistrada fez uma detalhada incursão pelos meandros deste importante instrumento de tutela jurisdicional.
𝗟𝗲𝗶𝗮, 𝗻𝗮 𝗶𝗻𝘁𝗲𝗴𝗿𝗮, 𝗮 𝗶𝗻𝘁𝗲𝗿𝘃𝗲𝗻çã𝗼 𝗱𝗮 𝗣𝗿𝗲𝘀𝗶𝗱𝗲𝗻𝘁𝗲 𝗱𝗼 𝗧𝗿𝗶𝗯𝘂𝗻𝗮𝗹 𝗖𝗼𝗻𝘀𝘁𝗶𝘁𝘂𝗰𝗶𝗼𝗻𝗮𝗹.
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𝗔 𝗗𝗜𝗠𝗘𝗡𝗦Ã𝗢 𝗖𝗢𝗡𝗦𝗧𝗜𝗧𝗨𝗖𝗜𝗢𝗡𝗔𝗟 𝗘 𝗛𝗨𝗠𝗔𝗡𝗜𝗦𝗧𝗔 𝗗𝗢 𝗥𝗘𝗖𝗨𝗥𝗦𝗢 𝗘𝗫𝗧𝗥𝗔𝗢𝗥𝗗𝗜𝗡Á𝗥𝗜𝗢 𝗗𝗘 𝗜𝗡𝗖𝗢𝗡𝗦𝗧𝗜𝗧𝗨𝗖𝗜𝗢𝗡𝗔𝗟𝗜𝗗𝗔𝗗𝗘
O REI - recurso extraordinário de inconstitucionalidade angolano, como um instrumento de tutela jurisdicional essencial à proteção dos direitos, liberdades e garantias fundamentais assegura a supremacia da Constituição e caracteriza um sistema misto de controlo de constitucionalidade. Enquanto instrumento de tutela jurisdicional de proteção dos direitos, liberdades e garantias pessoais constitucionalmente consagrados, demonstra forte compromisso com direitos humanos universais.
Nesta abordagem, que se quer breve, debruçar-nos-emos sobre as contendas do enquadramento constitucional do REI, a essencialidade dos princípios da supremacia da Constituição, da constitucionalidade, da dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, bem como sobre as vicissitudes do princípio do esgotamento da cadeia recursória, por fim, uma breve referencia aos desafios da eficácia das decisões do Tribunal Constitucional.
A delimitação do tema “Dimensão Constitucional e Humanista do nosso REI”, prende-se com o facto de no quadro das garantias jurisdicionais dos Direitos Fundamentais ao REI ser conferida sublime importância de assegurar, em sede do ordenamento jurídico constitucional, a defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos contra as inconstitucionalidades resultantes da atuação da Administração Pública e do Poder Judicial.
A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL
A CRA (2010)
A Constituição da República de Angola de 2010 (CRA) reforçou os fundamentos do Estado Angolano, ancorados nos princípios do Estado democrático e de direito, no respeito pela dignidade da pessoa humana e na vontade do povo, tendo como objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e progresso social.
Reforçou, também, as garantias e limitou as competências dos órgãos que compõe o sistema jurisdicional angolano, com realce para o Tribunal Constitucional (cfr. art.º 181.º da CRA) que, entretanto, havia sido institucionalizado dois anos antes, isto é, em 2008.
Por conseguinte, o Tribunal Constitucional, no quadro do poder judicial angolano, passou a ser o órgão judicial que funciona como garante da Constituição. E nesse particular, garantias da Constituição significa, portanto, tal como leciona Kelsen, garantias das regras e atos subordinados à Constituição, mais ainda, porque em regra todos os direitos fundamentais, considerados como um todo, têm natureza de princípios, ou seja, são garantias jurídicas fortes.
Com efeito, com entrada em vigor da LOTC e da LPC, o Tribunal Constitucional, em matéria de recurso, passou a apreciar o recurso ordinário de inconstitucionalidade - ROI e o recurso extraordinário de inconstitucionalidade - REI, ambos mecanismos jurídicos de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Princípios Estruturantes REI
A tutela dos direitos fundamentais e garantia da supremacia da CRA é de elevada importância, pois tal como no asseverado por Jorge Novais “(..) num mundo, o dos direitos fundamentais, muito pressionado pela ductibilidade, pela flexibilidade imposta pela necessária compatibilização entre valores e interesses de sentido divergente, pelo subjetivismo de apreciação - tudo o que, no limite, pressiona no sentido da deferência judicial para com as opções do legislador democrático, acabam por adquirir relevância decisiva todos os elementos e instâncias subjetivamente partilhável, como são as estruturas e parâmetros de controlo fornecidos pelos princípios estruturantes”.
▪ A Supremacia da Constituição proclamado no artigo 6.º da CRA.
A supremacia da Constituição é o fundamento primeiro do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, constituindo assim o motivo das decisões do Tribunal Constitucional.
▪ Princípio da Constitucionalidade
A CRA, enquanto lei magna do Estado, criou um conjunto de escudos que funcionam como garantias, isto é, como mecanismos de defesa dos seus valores. Um desses escudos é o princípio da constitucionalidade, que se traduz na necessidade de todos os atos, quer dos poderes públicos quer dos privados, só serem válidos se estiverem conforme com a Constituição, sendo que, de contrário, deverão ser objeto de sindicância junto do Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 6.º e 226.º, ambos da CRA
▪ Acesso ao Direito e à Tutela Jurisdicional Efetiva
O n.º 1 do artigo 29.º da CRA dispõe que “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
O n.º 5 do mesmo artigo estatui que “para a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra as ameaças ou violação desses direitos”.
A esse respeito salienta-se, também, o disposto na Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (CADHP) para as quais o sistema de integração e interpretação do sistema constitucional dos direitos fundamentais nos remete através da cláusula aberta prevista no n.º 2, do artigo 26.º da CRA.
O espírito das disposições em referência indica no sentido de uma interpretação e criação de mecanismos legais que, na prática, se traduzam numa verdadeira e efetiva tutela, o que demanda a existência de um sistema processual de proteção sem lacunas, também designado por princípio da plenitude dos meios processuais. Ou seja, a CRA desenha como bússola, na montagem dos meios processuais pelo legislador ordinário, o efeito prático da tutela efetiva, cabendo à lei o papel de ajuizar quais os mecanismos jurisdicionais que, na prática, são os mais eficazes para a assunção desse desiderato.
O que o n.º 5 do artigo 29.º da CRA, em termos de força jurídica, dispõe é que o legislador não pode colocar limitações processuais, mas, antes, alargar os meios processuais e procedimentais que facilitem o acesso dos cidadãos aos tribunais, com vista à tutela jurisdicional efetiva.
De resto, comungamos com Ana Preto, que defende que o princípio da tutela jurisdicional efetiva deverá ser entendido como uma relação entre direitos materiais e direitos processuais, entre direitos fundamentais e organização e processo. Ou seja, não obstante se reconhecer que o direito não é suficiente para se lograr uma tutela efetiva, esta consagração impende, em primeiro lugar, sobre o legislador que a deve ter em consideração na organização dos tribunais e nos instrumentos processuais.
Perante o exposto, oferece-nos colocar a seguinte questão: podem os mecanismos de reforço de controlo da constitucionalidade, construídos para esse fim, serem considerados inconstitucionais pelo simples facto de a Constituição formal não lhe atribuir nome próprio? Parece-nos que não! Aliás, “as normas constitucionais não são os enunciados da Constituição. A formulação linguística constitui o limite externo para quaisquer variações de sentido. O conteúdo vinculante da norma constitucional é o conteúdo semântico de seus enunciados”. Portanto, o problema não é o nome jurídico, mas sim o que decorre do conteúdo do enunciado das normas constitucionais.
▪ Princípio da Segurança Jurídica
O Tribunal Constitucional, enquanto órgão competente na administração da justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional, as suas decisões são de cumprimento obrigatório para todas as entidades públicas ou privadas e prevalecem sobre as dos restantes tribunais e de quaisquer autoridades, incluindo o Tribunal Supremo, conforme dispõe o artigo 6.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.
Como sublinha Canotilho, o princípio da segurança jurídica não é apenas um elemento essencial do princípio do Estado de direito relativamente a atos normativos. O autor defende que o princípio da segurança jurídica está conexionado com os elementos subjetivos da ordem jurídica - garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito.
Em suma, o sistema constitucional angolano é caracterizado por uma jurisdição constitucional forte, pois que as decisões do Tribunal Constitucional possuem força vinculativa obrigatória, afirmando o exercício da sua autoridade nas funções de controlo constitucional e proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos.
DIMENSÃO HUMANISTA
Com referência à realidade da jurisdição constitucional angolana, o artigo 1.º da Constituição da República dispõe “Angola é uma República soberana e independente, baseada na dignidade da pessoa humana (...).” Há, portanto, neste princípio o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do individuo como limite e fundamento do domínio político da República.
A norma matricial acima referenciada, tanto na latitude estrita do Direito como na latitude de Instituição fundamental prévia a ele mesmo, oferece-nos diferentes perspetivas da dignidade da pessoa humana, sendo a visão constitucional e humanista a que nos interessa para efeitos desta abordagem.
Assim, numa dimensão jurídico-constitucional, a dignidade da pessoa humana constitui-se como princípio matricial do ordenamento jurídico angolano, apresentando-se não apenas como valor fundamental, mas como verdadeira norma normarum do sistema constitucional.
Este princípio orienta, também, as decisões judiciais, essencialmente em sede do REI e reflecte o compromisso com a justiça, a igualdade e o respeito pela humanidade, funcionando, igualmente, como verdadeira cláusula de legitimação de toda a ordem jurídica subsequente. É, também, por conseguinte, o critério de fundamentação do Direito, partindo das características da (i) liberdade e da (ii)racionalidade da pessoa, (iii) antropologicamente sustentada numa inserção social, garantindo o seu (iv) desenvolvimento pessoal.
O princípio da dignidade da pessoa humana é consagrado como valor fundamental do ordenamento jurídico, sinaliza, segundo Alexandrino, diversas funções jus fundamentais, nomeadamente: (i) função simbólica; (ii) função instrumental (nas vestes de parâmetro para interpretação e a integração de normas, bem como de reforço e de fundamento para redução dos efeitos de proteção); e (iii) função de proteção (seja como eventual critério de último recurso, seja como fundamento de especiais deveres de proteção e promoção).
Em síntese, todo o ser humano é dotado de um valor intrínseco que deve ser respeitado e promovido pelo Estado e pela sociedade.
O princípio da dignidade da pessoa humana desempenha um papel fundamental na interpretação e integração dos demais direitos fundamentais. Os Direitos Fundamentais e os Direitos Humanos estão intrinsecamente relacionados, por isso a nossa Constituição da República dispõe, no n.º 2 do artigo 26.º, que os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e os tratados internacionais sobre a matéria, ratificados por Angola.
Em sede do recurso extraordinário de inconstitucionalidade destacam-se como princípios orientadores in dubio pro libertate, interpretação conforme aos direitos fundamentais(n.º 2, artigo 26.º CRA) e a máxima efectividade dos direitos fundamentais.
Assim, do ponto de vista humanista, a dignidade da pessoa humana transcende a sua dimensão jurídico-política, apresentando-se como valor intrínseco e inalienável do ser humano. Nessa perspetiva, identificamos pelo menos três pilares fundamentais: (i) o reconhecimento da individualidade; (ii) respeito pela autonomia (autodeterminação); e (iii) garantia da realização pessoal.
𝗖𝗢𝗡𝗧𝗘𝗫𝗧𝗨𝗔𝗟𝗜𝗭𝗔ÇÃ𝗢 𝗗𝗢 𝗡𝗢𝗦𝗦𝗢 𝗥𝗘𝗜
No sistema de fiscalização concreta ou incidental angolano, os recursos ordinários e extraordinários de inconstitucionalidade constituem, os únicos mecanismos dos quais os cidadãos podem lançar mão para a tutela dos seus direitos consagrados constitucionalmente.
No recurso ordinário de inconstitucionalidade a apreciação incide sobre uma questão prévia, ou melhor, o objeto é sempre uma norma (ou a sua interpretação), ao contrário do recurso extraordinário no qual o Tribunal se pronuncia sobre o fundo da questão.
REI - um mecanismo de proteção de direitos, liberdades e garantias fundamentais, contra decisões judiciais enviesada dos ditames constitucionais (49.º da LPC).
A adoção de um modelo fiscalizador híbrido (difuso e concentrado) previsto no artigo 177.º da CRA, faz com que não haja exclusividade, na defesa da Constituição e dos direitos fundamentais no controlo da efetividade de compatibilidade das leis e dos atos normativos com a Constituição, por parte do Tribunal Constitucional, atribuindo também tal função à jurisdição comum no exercício das suas tarefas jurisdicionais.
▪ Objeto de Apreciação em sede REI
De acordo com o disposto no artigo 49.º da LPC, o REI tem como objeto as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamento de direitos e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais; atos administrativos definitivos e executórios que coloquem em causa princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais.
O Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, enquanto mecanismo processual de crucial importância para assegurar os direitos, liberdades e garantia dos direitos e liberdades fundamentais, é um expediente de última ratio para a proteção dos direitos fundamentais, no intuito de superar uma possível falha da sua tutela, pela justiça ordinária.
▪ As Partes e Legitimidade Processuais
É obrigatória a constituição de advogado, salvo quando o recurso seja interposto pelo Ministério Público.
Possuem legitimidade ativa, os titulares do direito de interpor recurso extraordinário, nomeadamente: (i) As partes na causa principal; (ii) O Ministério Público; e (iii) Terceiros juridicamente interessados.
A legitimidade passiva recai sobre (i) as partes contrárias no processo originário; (ii) as entidades públicas responsáveis pelo ato impugnado; e (iii) eventuais contra-interessados.
▪ Fase de Interposição
O prazo para interposição do recurso é de 8 (oito) dias para as decisões judiciais e de 60 (sessenta dias) para os atos administrativos. O prazo para decisões judiciais é contado a partir da data de notificação da decisão recorrida, devendo a petição ser apresentada perante o tribunal a quo, tem efeito suspensivo, sobe para o TC nos próprios autos e suspende os prazos dos demais recursos previstos no CPC (n.º 1 do art.º 51.º da LPC).
Por sua vez, o prazo de interposição do recurso dos actos administrativos é contado da data de conhecimento do acto objeto de impugnação (n.º 2. art.º 51.º da LPC).
Esgotamento da Cadeia Recursória como Requisito de Admissibilidade
A versão primitiva do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, na sua essência, não impunha como requisito de admissibilidade o esgotamento da cadeia recursória da jurisdição comum ou de qualquer outra jurisdição do qual resultam os autos - artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de junho - Lei do Processo Constitucional.
A alteração à Lei de Processo Constitucional Angolano ocorreu, do ponto de vista cronológico, após a prolação dos Acórdãos Nº 121 e 122 de 2010 (acessíveis em www.tribunalconstitucional.ao).
Com a alteração efetuada à LPC, introduzindo-se o princípio do esgotamento da cadeia recursória transformou-se, por este meio, o acesso ao Tribunal Constitucional de via expressa que era em via suplementar.
Entretanto, considerando que o paragrafo único do artigo 49.º da LPC resulta de um ato do legislador ordinário, posterior à previsão normativa do n.º 5 do artigo 29.º CRA, tem-se levantado, e cada vez mais, acesos debates nos meios académicos e não só sobre se o “... esgotamento da cadeia recursória ordinária” põe em cheque ou não o n.º 5 do artigo supra referenciado que dispõe: “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”.
Uma determinada corrente de opiniões académicas defende que, não tendo o esgotamento da cadeia recursória sido introduzida por força da Constituição (de 2010), mas por opção do legislador ordinário, contunde com os princípios constitucionais na medida que põe em causa o sentido/espírito do legislador constituinte em sede dos instrumentos e mecanismos de salvaguarda da tutela jurisdicional efetiva dos direitos fundamentais em geral e dos direitos pessoais, em especial.
Uma outra corrente defende que o esgotamento da cadeia recursória tem fundamento constitucional no sistema de fiscalização da constitucionalidade, na medida em que da conjugação do n.º 2 do artigo 174.º e do n.º 1 do artigo 177.º resulta cristalino que todos os tribunais têm o dever de garantir e assegurar a defesa da Constituição e dos direitos fundamentais, ou seja, com o mecanismo do esgotamento da cadeia recursória de outras jurisdições dá-se a oportunidade aos demais tribunais de fiscalizarem o respeito pela Constituição e concretizarem os direitos fundamentais a que estão vinculados.
Em face do sistema de fiscalização da constitucionalidade, que é difuso na base e concentrado no topo, vigente no ordenamento jurídico angolano, justifica-se que os cidadãos, antes de recorrerem ao TC, devam esgotar a cadeia recursória da jurisdição onde os autos tiveram origem, daí que o TC seja o último reduto na fiscalização da constitucionalidade dos atos judiciais, já que há uma hierarquia dos Tribunais da jurisdição comum, cujo dever de observância da Constituição lhes é imposto pela CRA.
A este respeito, Rosa Guerra afirma que “por força da componente difusa do sistema angolano de controlo da constitucionalidade (...) no recurso extraordinário de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional é inserido neste sistema para assumir o papel de intérprete final, de último garante da Constituição e dos direitos fundamentais nela consignados”.
Particularmente, entendemos que o esgotamento prévio da cadeia recursória previsto no artigo 49.º da LPC não é, de per se, inconstitucional; porém, é verdade que em sede da tutela dos direitos humanos, as suas aplicações literais resultam, na maior parte das vezes, em decisões que configuram denegação de justiça. Senão vejamos: não são poucas as vezes que os cidadãos recorrem ao TC devido à morosidade na prolação de decisões judiciais pelos tribunais da jurisdição comum. Portanto, como se pode verificar, a questão de fundo não é o esgotamento prévio da cadeia recursória, mas sim o tempo que as prolações das decisões levam para esgotar a cadeia, configurando-se um autêntico sistema judiciário enfermo e quase incapaz de dar respostar às questões de celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil, impostas pelo n.º 5 do artigo 29.º da C
Considerando que a primeira corrente sustenta a sua posição na norma supracitada, isto é, no n.º 5 do artigo 29.º da CRA, certos que apesar da referida norma configurar um direito fundamental (tutela jurisdicional efetiva), não sendo exequível por si mesma, portanto a norma precisa de ser concretizada pelo legislador ordinário. E, parece-nos ser aqui onde reside o busílis da questão. Terá sido o legislador ordinário suficientemente diligente em relação ao sentido e alcance do n.º 5 do artigo 29.º da CRA, quando fixou os termos de acesso dos cidadãos ao TC em sede do REI?!!
Nas suas lições sobre Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, Jorge Silva ensina que “nos dias de hoje não são mais os direitos fundamentais que se movem no âmbito da lei, mas a lei que deve mover-se no âmbito dos direitos fundamentais”.
O autor esclarece “por princípio, os direitos, liberdades e garantias valem - isto é, conferem, quando é o caso, posições jurídicas subjetivas que os seus titulares podem invocar perante autoridade públicas e fazer valer em juízo - independentemente de lei ordinária concretizadora, na ausência, inadequação ou insuficiência de lei e mesmo contra o próprio texto de lei”.
𝗧e𝗿𝗺𝗶𝗻𝗮𝗱𝗼...
Por isso, e com referência ao disposto no artigo 29.º da CRA, entendemos que a inserção do paragrafo único do artigo 49.º da LPC, perpetrada pela Lei n.º 25/10, de 3 de dezembro, nos termos absolutos em que se coloca a obrigatoriedade do esgotamento da cadeia recursória ordinária, questiona a essência do n.º 5 do artigo 29.º da CRA e constitui um retrocesso em termos das conquistas alcançadas na versão primitiva da LPC e põe em causa os pressupostos constitucionais inerentes ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva dos direitos, liberdades e garantias das pessoas, sobretudo em matérias relativas à liberdade dos arguidos.
𝗕𝗲𝗻𝗴𝘂𝗲𝗹𝗮, aos 16 Setembro 2025.