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ACÓRDÃO N.º 900/2024

 

PROCESSO N.º 1067-C/2023

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

GLS HOLDING, S.A, Recorrente, com melhor identificação nos autos, inconformada com a decisão do Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 1930/21, veio dele interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Para o efeito arregimentou as suas alegações nos termos que abaixo se sintetizam:
1. O douto Acórdão recorrido está eivado de inconstitucionalidade.
2. O Acórdão em questão violou o princípio da legalidade e o direito fundamental a um processo justo e equitativo, bem como o acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva.
3. O douto Acórdão entendeu, mas mal, que o recurso interposto pela aqui recorrente contra o despacho que recaiu sobre a reclamação ao despacho saneador era extemporâneo.
4. Quer na data que o referido aresto faz menção, como tendo ocorrido a notificação do despacho que recaiu sobre a reclamação, aos 24 de Janeiro de 2020, quer na data da apresentação do requerimento de recurso, aos 26 de Fevereiro de 2020, corriam férias judiciais.
5. Nos termos do artigo 143.º do CPC “Os actos judiciais não podem ser praticados aos domingos, nem em dias de feriado, nem durante as férias”.
6. Logo, tendo o cartório judicial da 2.ª Secção do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda, praticado um acto judicial, aos 24 de Janeiro de 2020, que à partida não deveria ter sido praticado, temos de concluir que os efeitos deste acto se encontravam suspensos.

Concluiu as alegações pedindo que seja declarado inconstitucional o Acórdão recorrido, por violação do princípio da legalidade e do direito a julgamento justo e conforme.
O processo foi à vista do Ministério Público que se pronunciou no sentido de dar provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar, para decidir.

II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei 3/08, de 17 Junho - Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que habilita a interposição de recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional das “(…) sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

A Recorrente esgotou todos os recursos admissíveis no âmbito da jurisdição comum, como é imposto pelo parágrafo único do artigo 49.º sendo que, atento o disposto no artigo 53.º, ambos da LPC, é o Plenário do Tribunal Constitucional o órgão jurisdicional competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “(…) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo, em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

Assim, atento ao disposto supra, é indubitável a legitimidade da Recorrente, posto que a mesma é Apelante nos autos.

IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade assenta em aferir se o Acórdão prolactado no âmbito do Processo n.º 1930/21, pela 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, contende com princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados na Constituição da República de Angola (CRA).

V. APRECIANDO
Por via do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, a Recorrente reivindica, junto desta Corte, a declaração de inconstitucionalidade do aresto aduzindo como fundamentos o facto de o Tribunal recorrido ter julgado extemporâneo o recurso interposto, em razão da Recorrente ter sido notificada aos 24 de Janeiro de 2020 do despacho que decidiu a reclamação do despacho saneador, e ter interposto o recurso apenas aos 26 de Fevereiro de 2020, portanto, volvidos 33 dias.

Entende a Recorrente que mal andou o Tribunal ad quem, pois, quer na data da notificação do despacho, quer na data em que, efectivamente, interpôs o recurso, corriam férias judiciais, durante as quais os prazos para prática dos actos processuais ficam suspensos, salvo excepção prevista na lei.

Com efeito, considera que o aresto recorrido violou, neste particular, o princípio constitucional da legalidade, o direito a julgamento justo e conforme, previstos nos artigos 6.º e 72.º da CRA.
Veja-se;

In casu, o Tribunal ad quem julgou extemporâneo o recurso interposto pela Recorrente fundamentando, em resumo, o seguinte: “compulsados previamente os autos verificamos que a co-ré GLS HOLDING, S.A, foi notificada do despacho que recaiu sobre a reclamação ao despacho saneador no dia 24.01.2020 (fls. 354). Veio interpor o recurso no dia 26.02.2020, isto é, 33 dias após aquela notificação.

O prazo para interposição do recurso é de oito dias, contados da notificação da decisão, nos termos da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 685.º do Código de Processo Civil (CPC).
Quer isto significar, portanto, que o recurso ao ser interposto pela co-ré GLS HOLDING, S.A, no dia 26.02.2020, cerca de 33 dias após a notificação do despacho que incidiu sobre o requerimento de reclamação, se mostra extemporâneo, pelo que deverá ser indeferido nos termos do n.º 3 do artigo 687.º do CPC (…)”.

Ora, ao abrigo do n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro – Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum, vigente à data, “as férias judiciais decorrem de 22 de Dezembro ao último dia do mês de Fevereiro”.

O n.º 2 estabelece que “no período das férias judiciais os tribunais dedicam-se, essencialmente, a trabalhos de organização interna, ao levantamento da movimentação dos processos, à elaboração de peças processuais mais complexas, à realização de julgamentos de processos urgentes, de réus presos e de providências cautelares”.
Nesta conformidade, dispõe o artigo 143.º do CPC que “os actos judiciais não podem ser praticados nos domingos, nem em feriados, nem durante as férias judiciais. Exceptuam-se as citações, notificações, arrematações e os actos que se destinem a evitar dano irreparável”.

No caso vertente, a notificação foi feita aos 24.01.2020 e o recurso foi interposto aos 26 de Fevereiro de 2020, portanto, decorridos mais de trinta e três dias sobre a data da notificação. Resulta claro, porém, que ambos os actos processuais foram praticados no período em que corriam as férias judiciais, durante as quais os prazos ficam suspensos, salvo as excepções delineadas na lei.
As excepções valem para as citações, notificações, arrematações e os actos destinados a evitar danos irreparáveis. O processo em causa trata de uma acção declarativa de condenação, portanto, excluído da excepção da não suspensão dos prazos, durante as férias judiciais.

Nesta sintonia, apesar da notificação ter sido validamente feita durante as férias judiciais, a contagem do prazo para qualquer reacção processual do interessado apenas iniciava no primeiro dia do mês de Março.

Assim, para o caso sub judice, o prazo de oito dias para interposição do recurso de apelação estabelecido na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 685.º do CPC, somente começaria a contar a partir de 1 de Março de 2020, com fundamento no disposto no n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, conjugado com o artigo 143.º do CPC.


Do exposto, infere-se que o Tribunal recorrido, ao contar o prazo para interposição do recurso a partir de 25 de Janeiro de 2020, isto é, durante as férias judiciais, baseou-se numa premissa equivocada, pois, a notificação ou citação durante as férias judiciais, em regra, suspende o decurso do prazo.

Desta feita, a Recorrente ao ter interposto o recurso 33 dias após a notificação, isto é, durante as férias judiciais, não o fez extemporaneamente, pelo contrário, fê-lo mesmo antes que o prazo para o recurso tivesse iniciado a sua contagem.

Assim, a desconsideração da variável férias judiciais desencadeou, mal, uma contagem do prazo, cujo resultado foi ilegalmente pernicioso ao direito constitucional ao recurso da aqui Recorrente.

Em boa verdade, é este o entendimento sufragado por esta Corte, no Acórdão n.º 482/2018, ao prever que “o despacho de não admissão porque extemporâneo, consubstancia, um evidente lapso do Tribunal que, seguramente, não considerou o facto de os actos judiciais se encontrarem suspensos por estarem em curso as férias judiciais (…).

Com efeito, se os actos estão suspensos, o acto de citação para contestar no decurso das férias também estava suspenso e só seria exequível no dia de abertura do ano judicial, data a partir da qual começa a decorrer o prazo para contestar”.

Nesta conformidade, o Tribunal Constitucional considera que a decisão recorrida andou à margem da legalidade e sacrificou o direito ao julgamento justo e conforme da Recorrente, na medida em que o indeferimento do recurso sob alegada extemporaneidade, anulou, sem qualquer justeza, o direito ao duplo grau de jurisdição.

Ante ao exposto, o Tribunal Constitucional declara inconstitucional o Acórdão recorrido, na parte em que declara extemporâneo o recurso interposto pela aqui Recorrente, pois, violou os princípios constitucionais da legalidade, da tutela jurisdicional efectiva e do direito a julgamento justo e conforme, ao abrigo dos dispostos nos artigos 6.º, 29.º e 72.º, todos da CRA.
Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO RECURSO E DECLARAR INCONSTITUCIONAL A DECISÃO RECORRIDA POR VIOLAÇÃO DOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS REFERIDOS SUPRA.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 03 de Julho de 2024.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dr. Gilberto de Faria Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)

Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva