ACÓRDÃO N.º 907/2024
PROCESSO N.º 1130-B/2024
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Alexandre Júlio Mataia Pambo, melhor identificado nos autos, veio, nos termos da alínea a) do artigo 49.º e do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade da decisão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, nos autos do Processo n.º 1868/20, que julgou improcedente a excepção dilatória de incompetência absoluta da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Cabinda, em matéria cível.
Para sustentar a sua pretensão, o Recorrente alega, em síntese, que:
1. A inconstitucionalidade suscitada no referido Acórdão, resulta, por um lado, da inobservância da competência atribuída à sala do cível nos termos do artigo 60.º, da Lei n.º 29/22, de 29 de Agosto (Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum) e, por outro, da má interpretação e enquadramento das normas do direito substantivo relacionadas à tutela da personalidade jurídica, enquadrada nas normas de protecção ou da responsabilidade por factos ilícitos (artigo 483.º n.º 1 do CC).
2. Ao caminhar no sentido contrário ao que acabamos de expor, o Acórdão em causa traçou um raciocínio jurídico que bloqueia o acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva (vide o artigo 29.º da Constituição da República de Angola).
3. No mesmo Acórdão, o Tribunal Supremo faz confusão em relação aos direitos laborais, os quais estão expressamente estabelecidos e delimitados em legislação própria, isto é, Lei Geral do Trabalho e a tutela dos direitos de personalidade do trabalhador, que, embora esteja vinculado a subordinar-se juridicamente ao empregador, não renuncia, tampouco lhe é permitido limitá-los voluntariamente (vide o artigo 81.º, n.º 1 do CC).
4. A actuação da sua antiga entidade empregadora (Cabinda Golf Oil Company), causou-lhe lesões sobre a sua imagem, honra e bom nome, lesões estas que não são reparáveis em processo laboral senão em processo de natureza cível, por incidirem sobre direitos de personalidade cuja violação ilícita recai na disposição legal destinada a proteger direitos de outrem ou interesses alheios, incorporada no sistema da responsabilidade delitual prevista no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, enquanto variante de ilicitude.
5. Os direitos de personalidade que se reclamam, para além da dignidade constitucional, têm uma protecção civil, nos termos do n.º 1 do artigo 483.º do CC, por isso, a jurisdição competente para apreciá-la é a do Cível.
6. É por força da violação da referida norma de responsabilidade delitual com consequência para os danos de carácter não patrimonial, que o Recorrente requereu à Sala do Cível e Administrativo do Tribunal da Comarca de Cabinda para apreciar e decidir as principais questões materiais controvertidas.
7. O que está em causa é a reparação de danos não patrimoniais autónomos que resultam supervenientes após extinção do vínculo face à exposição dos seus direitos de personalidade, os quais, o Recorrente, enquanto trabalhador subordinado à Ré do Acórdão recorrido, não os colocou à disposição daquela, porquanto, os mesmos são inalienáveis e indisponíveis.
8. O Acórdão recorrido traçou um raciocínio jurídico completamente inconstitucional, pelo que, bloqueia e limita o acesso à tutela jurisdicional dos cidadãos, particularmente do ora Recorrente que, desejando reclamar a reparação dos danos que lhe foram causados, não pode recorrer aos Tribunais, ou seja, vê a sua expectativa jurídica ofuscada porque, mesmo a jurisdição laboral a que o Acórdão faz referência, invocaria a sua incompetência em razão da matéria.
9. O direito é delimitado em razão da matéria e, as normas são claras quanto a sua tutela, por isso, o Tribunal Supremo não deve bloquear o Recorrente no acesso à jurisdição civil porque, “in claris non fit interpretatio” (a lei ou disposição clara não carece de interpretação) vide os artigos 29.º e 32.º da Constituição da República de Angola, conjugados com as disposições combinadas dos artigos 70.º, 72.º, n.º 1 e 483.º todos do Código Civil.
Termina as suas alegações pedindo que se dê provimento ao recurso declarando inconstitucional a decisão recorrida e que, em consequência, os autos iniciais do processo civil prossigam os seus ulteriores termos.
O Processo foi à vista do Ministério Público que, a fls. 232 e 233 dos autos, pugnou pelo não provimento do recurso.
Colhidos os vistos legais dos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é parte no Processo n.º 1868/2020, que correu trâmites na Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, sobre o qual recaiu a decisão que confirmou a decisão da Sala do Cível do Tribunal Provincial de Cabinda e tem interesse directo em que a causa seja apreciada pelo Tribunal Constitucional, decorrendo desta, a legitimidade para a interposição do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC e do n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto, verificar se a decisão proferida pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo nos autos do Processo n.º 1868/2020, ofendeu ou não princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola (CRA).
V. APRECIANDO
Conhece-se dos autos, que o aqui Recorrente foi autor de uma acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário comum, na Sala do Cível e Administrativo do então Tribunal Provincial de Cabinda, onde pediu a condenação da Ré (Cabinda Gulf Oil Company) no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais.
Em sede da contestação apresentada, a Ré, naqueles autos, deduziu a excepção dilatória da incompetência absoluta do Tribunal e a violação do princípio da concentração dos pedidos.
Em despacho saneador (fls. 102), aquele Tribunal se considerou competente em razão da matéria para apreciar o pedido de indemnização, com fundamento na lesão de direitos de personalidade do Recorrente e, em consequência, julgou improcedente as excepções invocadas pela Ré.
Por sua vez, o Tribunal ad quem em sede de recurso de agravo interposto pela ré (fls. 112), julgou a incompetência absoluta do Tribunal a quo para conhecer da referida acção, cuja competência, considerou pertencer à Sala do Trabalho e, em consequência, absolveu a agravante da instância nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 288.º do CPC, conforme fls. 163 a 182.
Não conformado com a decisão ora revidenda, o Recorrente interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade por entender que a decisão posta em crise não interpretou correctamente as normas relativas à competência material dos tribunais de jurisdição comum e, em ultima ratio, a mesma colide com o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º), o direito ao bom nome, à imagem e à privacidade (artigo 32.º), todos da Constituição da República de Angola.
Pergunta-se pois:
O Tribunal ad quem ao decidir como decidiu violou o princípio e os direitos ora enunciados pelo aqui Recorrente? E, se sim, em que medida?
Veja-se:
Dispõe o n.º 1 do artigo 174.º da CRA que “Os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”.
Ora, importa, pois, clarificar o que é a competência de um Tribunal, nos dizeres de António Júlio Cunha “A competência é a fração ou parcela do poder jurisdicional atribuído a cada tribunal. Um tribunal diz-se competente quando uma ação cabe dentro da função do poder jurisdicional que lhe foi atribuída”. (Direito Processual Civil Declarativo – à luz do Novo Código de Processo Civil, Quid Juris Sociedade Editora, 2013, p. 109).
À data dos factos, a organização e funcionamento dos tribunais de jurisdição comum era regulada pela Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro (Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum) que, entretanto, foi revogada pela Lei n.º 29/22, de 29 de Agosto (Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum).
O n. º 1 do artigo 26.º da então Lei n.º 2/15, de 02 de Fevereiro, estremava que “a competência dos tribunais de jurisdição comum é definida em razão (…) da matéria (…)”, redacção igual a referida no n.º 1 do artigo 27.º da Lei n.º 29/22, de 29 de Agosto, em vigor. O n.º 2 do referido artigo mais dispõe que “a presente Lei Orgânica e as leis do processo fixam os critérios que determinam, em cada caso, o Tribunal competente”.
Ainda, em sede da determinação da competência, o n.º 1 do artigo 27.º da lei em referência estabelecia que “a competência do Tribunal fixa-se no momento em que a acção é proposta ou em que é aberta a instrução ou deduzida a acusação, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente”.
A alínea a) do artigo 55.º do diploma em pauta determinava que compete à Sala de Trabalho preparar e julgar “Todas as questões ou acções e providências cautelares emergentes, em geral, do estabelecimento, execução ou extinção das relações de trabalho, bem como de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho” (redacção igual a da alínea a) do artigo 65.º da Lei n.º 29/22, de 29 de Agosto).
Ora, da interpretação conjugada das disposições da alínea a) do artigo 55.º da então Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, e do n.º 3 do artigo 284.º da Lei n.º 7/15, de 15 de Junho, ambas em vigor à data, facilmente se conclui que a pretensão do Recorrente não deveria ser apresentada isoladamente, mas de modo conexo, por se considerar emergente do facto jurídico que serviu de fundamento à acção, preenchendo dessa forma os requisitos de natureza substantiva de admissibilidade de um pedido cumulativo.
Assim sendo, entende-se que, ao interpor uma nova acção junto da Sala do Cível para reclamar factos emergentes da relação jurídico-laboral, facilmente se percebe que a vinculação temática ali referida se mostra no todo desalinhada e desconforme com os ditames da lei, na medida em que, por força das disposições legais acima indicadas e do princípio da concentração do pedido, a mesma seria incompetente em razão da matéria, aliás exclusiva da Sala de Trabalho nos termos e fundamentos invocados supra.
Entende, por isso, este Tribunal que a não prossecução dos interesses alegados pelo aqui Recorrente não sustenta a tese apresentada, segundo a qual, ter sido violado o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 29.º da CRA na medida em que, este direito é exercido nos termos da lei que, no caso concreto, determina a competência dos tribunais, pelo que se entende que não se mostra violado o princípio ora referido. Termos em que ao Recorrente não assiste razão.
Ainda, em sede das alegações que sustentam o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, o Recorrente evoca ofensa aos direitos de personalidade, concretizados na ofensa do direito à imagem, à honra, à dignidade e ao bom nome. Analisados os autos, dos elementos carreados aos mesmos, este Tribunal não consegue aferir de facto a sustentação do que se alega, nem verifica a existência de elementos que solidificam a pretensão requerida, pelo que fica impossibilitado de ajuizar sobre a constitucionalidade da eventual violação dos referidos direitos.
Em face do acima expendido, improcede a pretensão do Recorrente, por não ter o Acórdão recorrido violado o princípio da tutela jurisdicional efectiva alegado, em virtude de não terem sido verificadas violações às regras sobre a competência dos tribunais.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO.
Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 07 de Agosto de 2024.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães (Relator)
Dr. João Carlos António Paulino
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Vitorino Domingos Hossi