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ACÓRDÃO N.º 923/2024

 

PROCESSO N.º 1172-D/2024
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

EXCELMED – Excelência em Medicina S.A, com os demais sinais de identificação nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade contra o Acórdão prolactado pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo que julgou deserto o recurso interposto pela Recorrente, por falta de pagamento de preparo inicial.

Inconformada, a sociedade comercial, aqui Recorrente, apresenta, na íntegra, as seguintes conclusões das alegações:

1. O Acórdão da Conferência da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, validou o Despacho do Venerando Juiz Conselheiro Relator que julgou deserto o recurso de apelação da Recorrente, por falta de pagamento do preparo inicial.

2. O Acórdão recorrido não respeitou a estrutura legal a que deve obedecer uma decisão, não contendo Relatório, nem Fundamentação, o que torna nulo e inconstitucional, violação das regras processuais e do princípio constitucional da legalidade, que deve acompanhar todas as decisões judiciais.

3. A Constituição da República de Angola determina que no exercício da função jurisdicional os tribunais estão sujeitos à Constituição e à lei, devendo garantir e assegurar a sua observância (artigos 175.º e 177.º/1 da CRA) e não foi o que se verificou no caso vertente.

4. Os tribunais, enquanto órgãos do Estado de Direito, têm o dever de prover a legalidade, respeitando e fazendo respeitar as leis artigo 6.º/2, 266.º da CRA, além de garantir segurança jurídica, previsibilidade e protecção às expectativas das pessoas, sejam individuais, sejam colectivas, assim se respeitam o Estado de Direito, o que não aconteceu.

5. A declaração de deserção de recurso por falta de preparo inicial é inconstitucional no actual ordenamento jurídico angolano, por colocar em causa o direito fundamental de acesso à justiça e a tutela jurisdicional efectiva.

6. Como consequência da violação do dever de legalidade, a decisão recorrenda que constitui de per si denegação de justiça, também se traduz na violação do direito a um processo justo e conforme a lei e ao direito ao duplo grau de jurisdição.

7. A confirmação, pelo Acórdão recorrido, do despacho inconstitucional do Venerando Juiz Conselheiro Relator traduz-se, pois, num grave atentado contra o Estado de Direito e outros princípios e direitos fundamentais acolhidos na CRA.

Termina pedindo que esta Corte julgue inconstitucional o Acórdão recorrido, tendo em conta os princípios e direitos fundamentais alegadamente violados.

O processo foi à vista do Ministério Público que pugnou pelo provimento do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

Colhidos os vistos legais cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e 53.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), e da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

A Decisão proferida pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, esgota a cadeia de recursos ordinários em sede da jurisdição comum.


III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é parte vencida no Processo n.º 1084/21, sobre o qual recaiu a decisão que confirmou o Despacho do Juiz Relator da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo e tem interesse directo em que a causa seja apreciada pelo Tribunal Constitucional, assim sendo, tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º LPC, que dispõe: “têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário” e do n.º 1 do artigo 26.º do Código Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.

IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto verificar se o Aresto recorrido, proferido pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, ofendeu ou não princípios, direitos, e garantias constitucionais.

V. APRECIANDO
Invoca a Recorrente a ofensa ao princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consubstanciada no facto de ter visto o seu recurso de apelação sancionado com a deserção, alegadamente por falta de pagamento do preparo inicial.

Assim, veja-se:

Versam os autos (fls. 108v), que foi proferido Despacho nos termos e para efeito do artigo 134.º do Código das Custas Judiciais (CCJ), isto é, para proceder ao pagamento em dobro dos preparos, partindo do princípio de que a Recorrente não o fez voluntariamente, nos cinco dias subsequentes, em conformidade com o vertido no artigo 127.º do mesmo Código.

Seguidamente, observa-se que notificada do sobredito Despacho (fls. 111), a Recorrente apresentou requerimento arguindo nulidade do acto da secretaria, que entretanto, não logrou resposta do Tribunal ad quem, deixando a mesma de pagar o encargo cobrado por falta de emissão das respectivas guias de depósito, vendo deste modo julgado deserto o recurso impetrado (fls.118).

Da aludida decisão, a Recorrente apresentou reclamação para Conferência, ao abrigo do artigo 700.º do CPC, que por Acórdão de fls. 134-137, confirmou o Despacho do Juiz Relator, isto é, pugnou pela manutenção da decisão de deserção do recurso de apelação.

A esse respeito, sustenta a Recorrente que “a sanção de deserção de um recurso por falta de pagamento de preparos ou de qualquer outro encargo de natureza económica é inconstitucional e denegadora de justiça”.

Impõe-se, pois, determinar se a Decisão recorrida que julgou deserto o recurso impetrado pela Recorrente por falta de pagamento de preparo lesou ou não direitos e princípios por esta invocados, entre os quais: a tutela jurisdicional efectiva, o direito ao julgamento justo e conforme e o direito ao duplo grau de jurisdição.

Veja-se,
“Os recursos são julgados desertos pela falta de pagamento de preparos ou de pagamento de custas nos termos legais ou pela falta de alegação. São também julgados desertos quando por inércia das partes, estejam parados durante mais de um ano, embora tenha sido feito o preparo inicial” (n.º 1 do artigo 292.º do CPC).

Segundo o preceituado supra, considera-se, pois, deserta a instância recursória quando, entre outras vicissitudes, se verificar o incumprimento das obrigações económicas decorrentes da marcha do processo.

Portanto, independentemente da natureza do expediente processual utilizado, prevêem-se legalmente encargos, cuja responsabilidade é atribuída aos pleiteantes, cabendo-lhes suportar o custo financeiro da demanda, cobrindo despesas relacionadas com os actos processuais a praticar durante a tramitação da lide, até a prolacção da decisão judicial que resolverá o diferendo.

Importa referir que as custas processuais englobam três tipos de despesas, nomeadamente: a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte.

É oportuno clarificar que o termo “taxa de justiça”, corresponde ao montante devido pelo Autor, Recorrente, Requerente, pelo impulso da acção, incidente ou recurso, ou seja, são os próprios preparos em si. Razão pela qual “a taxa de justiça deve ser paga previamente para o impulso do processo” como resulta do n.º 2 do artigo 6.º, da Lei n.º 5-A/21, de 5 de Março, que altera a Lei Sobre a Actualização de Custas Judicias e da Alçada dos Tribunais.

Neste conspecto, sempre que houver lugar à aplicação de taxas de justiça, haverá preparos, que revestem quatro modalidades diferentes: iniciais, subsequentes, para despesas e para julgamento.

Porém, mormente os presentes autos, enquadram-se na primeira modalidade, ou seja, o preparo inicial que tem lugar no início de qualquer processo ou parte do processo sujeito a tributação especial, nos termos dos artigos 120.º e 121.º, ambos do CCJ.

Feito o precedente enquadramento, importa, todavia, referir que o sobredito, não implica cercear o direito ao recurso em razão do incumprimento dos encargos económicos referenciados como se verifica no aresto revidendo.

Em boa verdade, nada obsta que o preparo inicial devido no início da tramitação dos autos, possa ser cobrado e pago no final do processo, ex vi do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 5-A/21, de 5 de Março, que altera a Lei sobre Actualização das Custas Judiciais e Alçadas dos Tribunais.

A respeito, Graça Tchipepe esclarece que “(…) há, assim, um adiantamento, que não é nada mais do que uma garantia do pagamento da “taxa de justiça” devida à final. Desta feita, os preparos constituem, por excelência, a garantia do pagamento das custas nas acções, providências, incidentes e recursos (…)” (As Custas Judiciais e o seu Regime Jurídico em Angola, 2012, Editora Parma Lda., p. 42)
Na realidade, o pagamento de preparo inicial pode sempre ser liquidado até ao final da demanda, isto mesmo sem comprometer o seguimento dos autos, caso em que, mantendo-se o incumprimento financeiro, o responsável ainda pode ser accionado em sede de execução por custas, nos termos do artigo 103.º do CCJ, preservando-se, definitivamente, o direito fundamental ao recurso e ao duplo grau de jurisdição.

Veja-se, a propósito, o entendimento desta Corte firmado no Acórdão n.º 393/2016 ao firmar que “este Tribunal, enquanto tribunal dos direitos fundamentais e garante da Constituição, entende que, ponderados os valores em causa e sem prejuízo do pagamento das custas judiciais devidas com as respectivas multas, a tutela jurisdicional deve ser de facto efectiva, em respeito ao artigo 29.º da CRA, o que não ocorreu no caso concreto. Com efeito, a norma do artigo 292.º do CPC na parte que sanciona com deserção o recurso por falta de pagamento de custas judiciais, não está conforme a CRA, por desatender aos princípios constitucionais de protecção do direito ao recurso e à tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º), do direito a julgamento justo e conforme (artigo 72.º), sacrificando desproporcionalmente estes valores constitucionais.”

De igual modo, o Acórdão n.º 826/2023 ao referir que “a justiça é (…) um serviço público que é apenas tendencialmente gratuito e não absolutamente grátis, ipso factum, a lei impõe aos interessados a obrigação de pagamento de custas do processo, que é comportável com a garantia constitucional do acesso aos tribunais e tutela jurisdicional. Todavia, o juízo da não inconstitucionalidade da obrigatoriedade de pagamento de custas não é compatível com a imposição de cominações desproporcionais à garantia privilegiada do direito de acesso aos tribunais e tutela jurisdicional efectiva (…), o Tribunal Constitucional assinala que, embora, em princípio, a obrigatoriedade do pagamento das custas não seja contrária à CRA, maxime ao direito à tutela jurisdicional efectiva, porém, a cominação da deserção do recurso pela mora ou não pagamento das custas é ofensiva à primazia da tutela jurisdicional efectiva”.

Nestes termos, é convergente a jurisprudência, no entendimento sedimentado segundo o qual, a falta ou a mora no pagamento dos encargos económicos decorrentes da lide, vistos os princípios e valores que emanam da Constituição, não pode ser sancionada com a deserção e, consequente, sacrifício do direito fundamental ao recurso e tutela jurisdicional efectiva (como já referenciado acima).

J.J Gomes Canotilho & Vital Moreira reforçam este entendimento ao referir que “O reconhecimento do direito ao acesso ao direito e aos tribunais seria meramente teórico para muitas pessoas se não se garantisse que o «direito à justiça» não pode ser prejudicado por razões de ordem económica. (…) Será inconstitucional, por exemplo, o condicionamento da tramitação do recurso ao depósito prévio de determinada quantia (…).” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 411).

In casu, não restam dúvidas que os mecanismos legais apropriados para o pagamento das custas judiciais foram preteridos em prejuízo da Recorrente, configurando uma quebra conjugada das garantias constitucionais da (i) tutela jurisdicional, (ii) do direito ao julgamento justo e conforme, (iii) e ao direito ao duplo grau de jurisdição.

Entretanto, a Recorrente, a par da arguição da inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, em virtude da prevalente decisão no sentido da deserção do recurso por falta de pagamento de preparo devido, em termos não suficientemente perceptíveis, traz igualmente a liça, em sede das alegações formuladas no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, outros vícios.

A este propósito, vem arguir irregularidades respeitantes a descrição analítica da sentença, entre as quais a inexistência do relatório e falta de fundamentação, porém, este Tribunal Constitucional entende que esta questão fica prejudicada, tornando-se despicienda a sua apreciação, por força do disposto no n.º 2 do artigo 660.º do CPC, posto que, a decisão recorrida, com os argumentos expendidos acima é, hic et nunc, inconstitucional.

Pelos argumentos acima expendidos, é entendimento desta Corte que a decisão recorrida, é inconstitucional na parte que sanciona com a deserção de recurso por falta de pagamento de custas, na medida em que estas podem ser pagas ou cobradas a final.
Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO RECURSO, EM VIRTUDE DO ACÓRDÃO RECORRIDO TER OFENDIDO OS PRINCÍPIOS DO ACESSO AO DIREITO E TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA, DO JULGAMENTO JUSTO E CONFORME, BEM COMO O DIREITO AO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 7 de Novembro de 2024.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dr. Gilberto de Faria Magalhães

Dr. João Carlos António Paulino

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva (Relatora)