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ACÓRDÃO N.º 925/2024

 

PROCESSO N.º 1125-A/2023

Processo Relativo ao Contencioso Parlamentar

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

O Grupo Parlamentar da UNITA, com os demais sinais de identificação especificados nos autos, veio ao Tribunal Constitucional, intentar a presente acção, relativa ao contencioso parlamentar, para impugnar alegados vícios verificados na Sessão Plenária Extraordinária realizada a 14 de Outubro de 2023, pela Assembleia Nacional (AN), com fundamento no artigo 73.º da Constituição da República de Angola (CRA) e nas disposições combinadas da alínea i) do artigo 3.º e do n.º 2 do artigo 60.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho -Lei do Processo Constitucional (LPC).

Para a satisfação da sua pretensão, o Requerente esgrimiu as seguintes motivações, em síntese:

1. No dia 12 de Outubro de 2023, através de uma comissão de Deputados afectos ao Grupo Parlamentar da UNITA, mandatados por 90 Deputados em efectividade de funções subscritores de uma proposta de Iniciativa de Acusação e Destituição do Presidente da República, João Manuel Gonçalves Lourenço, fez a entrega do referido processo à Presidente da Assembleia Nacional contendo um Requerimento de remessa.

2. Na sequência, e porque a Assembleia Nacional se encontrava em pausa parlamentar, a sua Presidente convocou a Comissão Permanente para uma reunião, no pretérito dia 13 de Outubro de 2023.

3. Na referida reunião, a Comissão Permanente deliberou que a Presidente da Assembleia Nacional devia convocar uma Sessão Plenária Extraordinária.

4. Em virtude disso, a Presidente da AN convocou para o dia 14 de Outubro de 2023, a Sessão Plenária Extraordinária, todavia, não procedeu a distribuição dos documentos aos Grupos Parlamentares e às Comissões de Trabalho em razão da matéria, o que belisca o costume parlamentar e o RAN.

5. Na data agendada e antes mesmo do início da reunião, na Sala da Plenária, foram instaladas urnas e cabines de votos, da Comissão Nacional Eleitoral (CNE), para a votação secreta, o que revelou que estavam criadas as condições materiais para a votação.

6. A Sessão Plenária não teve transmissão em directo da Televisão Pública de Angola (TPA) e da Rádio Nacional de Angola (RNA), em clara violação do direito do cidadão ser informado, de se informar e de informar, nos termos do artigo 40.º da CRA.

7. O Presidente do Grupo Parlamentar da UNITA solicitou um esclarecimento à Presidente da AN, que informou não existirem condições técnicas para transmissão em directo a partir da Sala Multiusos.

8. Após abertura da Sessão Plenária Extraordinária, a Presidente da AN submeteu a Ordem do Dia à votação, tendo sido aprovada por unanimidade.

9. Na sequência, a Presidente da AN informou que seria lido o requerimento de remessa do Grupo Parlamentar da UNITA e passaria de imediato para a votação aberta, na modalidade de mão levantada, uma vez que não se fazia pedido algum que merecesse ser deliberado. Com este acto, a Presidente da AN violou o disposto na alínea b) do artigo 159.º e o n.º 2 do artigo 157.º todos do RAN.

10. A modalidade de utilização da votação aberta em detrimento da secreta cujas condições materiais já estavam criadas com a instalação das urnas e cabines de voto, foi contestada pelo Presidente do Grupo Parlamentar da UNITA.

11. Ante esta questão, a Presidente solicitou um esclarecimento ao Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais e Jurídicos sobre a admissibilidade ou não da votação aberta e a interpretação que deve ser dada ao artigo 159.º do Regimento da Assembleia Nacional (RAN). Pelo que, tendo procedido nestes termos, a Presidente da AN violou a alínea b) do artigo 159.º e o n.º 2 do artigo 157.º, ambos do Regimento da Assembleia Nacional.

12. O Grupo Parlamentar da UNITA solicitou uma interrupção, nos termos dos artigos 136.º e 137.º do RAN, entretanto a Presidente da AN pretendia colocar esse direito à votação, sendo que, no fim, recusou a solicitação violando mais uma vez o aludido Regimento.

13. Em sinal de protesto contra a violação da Constituição da República de Angola e do RAN, o Grupo Parlamentar da UNITA não votou.

14. A não observância do procedimento para o Processo de Acusação e Destituição do Presidente da República constitui violação da alínea f) do n.º 2 do artigo 166.º da CRA e da alínea a) do n.º 1 do artigo 53.º, da alínea p) do artigo 44.º e dos artigos 80.º, 81.º, 206.º, 213.º e 284, bem como do princípio da proporcionalidade, todos previstos no RAN.

15. Ao não ser distribuída a Proposta de Iniciativa de Acusação aos Grupos Parlamentas, para conhecimento dos Deputados e às Comissões de Trabalho Especializadas para, em consequência, ser elaborado um Relatório Parecer e um Projecto de Resolução de Criação da Comissão Eventual para Tratamento do Processo de Acusação e Destituição, foram violados os termos da alínea f) do n.º 2 do artigo 166.º da CRA, alínea a) do n.º 1 do artigo 53.º, alínea p) do artigo 44.º e os artigos 80.º, 81.º, 206.º, 207.º, 213.º e 284.º, todos do RAN.

O Grupo Parlamentar da UNITA, termina pedindo ao Tribunal Constitucional que a presente acção, relativa ao contencioso parlamentar, seja julgada procedente e, em consequência, que declare nula e sem qualquer efeito a Plenária Extraordinária realizada a 14 de Outubro de 2023, condenando-se a Assembleia Nacional a realizar outra Sessão Plenária nos precisos termos da lei.
Em obediência ao disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 62.º da LPC, através do ofício n.º 001/GAB.J.C.P.TC/2014, de 3 de Janeiro (fls. 18), a Juíza Conselheira Presidente do Tribunal Constitucional notificou a Assembleia Nacional para, querendo, no prazo de 30 dias, se pronunciar sobre a presente acção e oferecer as correspondentes contra-alegações.

Consequentemente, a Assembleia Nacional veio, a 25 de Janeiro de 2024, apresentar contra-alegações, aduzindo, no essencial, que:

1. O artigo 34.º do RAN estabelece que são órgãos da AN o Plenário, o Presidente, a Mesa e a Comissão Permanente.

2. Os Partidos Políticos ou coligações de partidos políticos com assento parlamentar, organizam-se em Grupos Parlamentares que se fazem representar nos órgãos da Assembleia Nacional, nos termos do previsto no artigo 27.º e seguintes do seu Regimento.

3. Ao abrigo do artigo 156.º da Constituição da República de Angola, a Comissão Permanente, é o órgão que funciona em substituição do Plenário, isto é, fora do período de funcionamento efectivo e entre o termo e o início de nova legislatura, integrando o Presidente da AN, os Vice-Presidentes, os Secretários da Mesa, os Presidentes dos Grupos Parlamentares, os Presidentes das Comissões de Trabalho Especializadas, o Presidente do Conselho de Administração, a Presidente do Grupo das Mulheres Parlamentares e 12 Deputados na proporção dos assentos de cada partido político ou coligação de partidos políticos.

4. Não é verdade o que o Requerente alega no artigo 19.º do seu requerimento, porquanto, a distribuição dos documentos, apesar de ser um rito da AN, pode ser dispensada por decisão da Conferência de Presidentes dos Grupos Parlamentares, conforme o disposto no n.º 3 do artigo 206.º do RAN.

5. No caso sub judice, esta dispensa foi implicitamente decidida pela Comissão Permanente da AN, ao deliberar no dia 13, no período da tarde, que a reunião fosse convocada para o período da manhã do dia 14 de Outubro, fazendo uso dos poderes que lhe conferiam, em substituição do Plenário da Assembleia Nacional.

6. O Requerente confunde, no artigo 19.º o rito do processo legislativo comum, designadamente, a distribuição da proposta ou projecto de lei, uma vez admitida, às Comissões de Trabalho Especializadas, competentes em razão da matéria, aos Grupos Parlamentares, à Secretaria de Mesa e ao Secretariado-Geral da Assembleia Nacional para publicação no Diário da Assembleia Nacional.

7. Mesmo que não existisse o n.º 3 do artigo 206.º do Regimento da Assembleia Nacional, aquela norma não se aplicaria ao processo de destituição do Presidente da República, pois é referente ao processo legislativo.

8. O Processo de Acusação e Destituição do Presidente da República é um processo próprio, integrado no Título VII do Regimento da Assembleia Nacional, relativo a “Outros Tipos de Processo” no Capítulo “Processos Relativos a Outros Órgãos e na Secção sobre “Processos Relativos ao Presidente da República” e não no Título VI, relativo ao Processo Legislativo.

9. O Processo de Acusação e Destituição do Presidente da República tem prioridade sobre os demais processos e assume carácter de urgência, nos termos das disposições combinadas do n.º 6 do artigo 29.º da CRA e do n.º 3 do artigo 284.º do RAN.

10. A razão da Presidente da AN ter convocado a Comissão Permanente para a reunião do dia 13 de Outubro de 2023, deveu-se ao facto do processo ter sido apresentado no dia 12 de Outubro de 2023, período em que a AN não estava em efectivo funcionamento.

11. Em virtude disso, a Comissão Permanente, ao tomar conhecimento da entrada do processo, deliberou no sentido da reunião para apreciação da proposta de iniciativa de destituição do Presidente da República fosse realizada no período da manhã do dia seguinte, isto é, 14 de Outubro de 2023.

12. Notar que o procedimento relativo a acusação do Presidente da República está regulado, exclusivamente, no artigo 284.º do RAN e aí onde houver omissões incumbe à Assembleia Nacional resolver, como prescreve o artigo 5.º da Lei n.º 13/17, de 6 de Julho.

13. A Comissão Permanente, na ausência do Plenário, deliberou realizar a reunião no dia seguinte, isto é, a 14 de Outubro de 2023, suprindo, assim, a omissão existente no procedimento.

14. Relativamente a não distribuição da proposta de iniciativa, o Grupo Parlamentar da UNITA não ficou prejudicado, porquanto, a mesma proveio e foi subscrita por 90 Deputados que o integram.

15. Por isso, não podem os Deputados integrantes do Grupo Parlamentar da UNITA, invocar desconhecimento da referida proposta de iniciativa.

16. Os Deputados de outros Grupos Parlamentares ou de Partidos Políticos não invocaram estar prejudicados pela não distribuição dos documentos, como o fazem os do Grupo Parlamentar da UNITA.

17. Ademais, a Ordem de Trabalhos do dia 14 de Outubro de 2023, foi submetida a votação e aprovada por unanimidade.

18. Tratando-se de um processo regulado no título relativo a outros tipos de Processos, no capítulo relativo a outros órgãos e na secção sobre processos relativos ao Presidente da República, não se aplicam os prazos de distribuição de documentos previstos no artigo 206.º, tampouco as regras nele previsto.

19. O Requerente faz uma interpretação das normas do RAN segundo a sua conveniência.

20. Não é verdade o que o Requerente alega no artigo 25.º que a votação em sistema de mão levantada ocorrida na Reunião Plenária para a apreciação da proposta de iniciativa de destituição do Presidente da República violou o artigo 159.º do Regimento da Assembleia Nacional.

21. A votação de mão levantada enquadra-se no âmbito da formação da vontade da Assembleia Nacional de aceitar ou não a proposta de iniciativa de destituição do Presidente da República.
22. Necessitando a proposta de ser aceite ou não, o momento que a lei prevê para a aceitação ou rejeição, é o da aprovação ou não da constituição da Comissão Eventual, que dá conteúdo à iniciativa da Assembleia Nacional, antes de a submeter a apreciação e votação do Plenário.

23. A aceitação pelo Plenário de criação da Comissão Eventual significa concordância de iniciar o processo de acusação para a destituição do Presidente da República, e, a não aceitação, significa a rejeição de iniciar o referido processo.

24. Neste sentido, a formação da vontade da Assembleia Nacional, manifestada por via da criação da Comissão Eventual, é feita pelo sistema de mão levantada, nos termos do n.º 1 do artigo 157.º do Regimento da Assembleia Nacional, por não se tratar, ainda, da acusação da Assembleia Nacional.

25. O que obedece ao rito de votação secreta, é a Resolução de acusação para destituição do Presidente da República, aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções, conforme as disposições combinadas da alínea c) do n.º 5 do artigo 129.º da Constituição da República de Angola e do n.º 6 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional e não o acto de criação da Comissão Eventual.

26. Não é verdade o que o Requerente alega no artigo 11.º, pois que, o seu pedido não é deferido ipso facto, carecendo de aceitação da Presidente da Assembleia Nacional, conforme o n.º 3 do artigo 137.º, ambos do Regimento da Assembleia Nacional.

27. A aceitação de interrupção da reunião Plenária é um poder discricionário da Presidente da Assembleia Nacional, enquanto entidade que a preside, nos termos das disposições combinadas do n.º 2 do artigo 136.º e da alínea m) do artigo 44.º, ambos do Regimento da Assembleia Nacional.

28. Não é verdade que a não transmissão da Sessão Plenária pela Televisão Pública de Angola (TPA) e pela Rádio Nacional de Angola (RNA) resultou de uma decisão discricionária da Presidente da Assembleia Nacional, conforme alega o Requerente no artigo 21.º.

29. A não transmissão por aqueles órgãos deveu-se ao facto de a Reunião Plenária não ter sido realizada na sala do Plenário e sim na sala multiusos, onde não existem condições técnicas para o efeito.

30. A reunião não se realizou na Sala do Plenário pelo facto de que esta, à data, encontrava-se em obras para acolher a 147.ª Assembleia da União Interparlamentar (UIP), que teve lugar de 23 a 27 de Outubro de 2023.

31. Aliás, no dia 13 de Outubro de 2023, na reunião da Comissão Permanente que deliberou sobre a convocação da reunião Plenária para o dia 14 de Outubro, a Presidente da Assembleia Nacional informou aos presentes sobre o facto e convidou os líderes dos Grupos Parlamentares a visitarem, quer a Sala do Plenário, em obras, quer a Sala Multiusos, onde decorreria a sessão.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente processo relativo ao contencioso parlamentar, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 181.º da CRA, da alínea i) do artigo 3.º e do n.º 2 do artigo 60.º, ambos da LPC.

III. LEGITIMIDADE

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 60.º n.º 2 e 61.º da LPC, assiste a qualquer Grupo Parlamentar legitimidade para impugnar no Tribunal Constitucional deliberações da Assembleia Nacional, “desde que as mesmas tenham sido objecto de deliberação do Plenário e configurem violação da Constituição e de normas do Regimento Interno da Assembleia Nacional e da Lei Orgânica do Estatuto dos Deputados”.

Assim sendo, assiste legitimidade ao Grupo Parlamentar da UNITA, para requerer a apreciação da conformidade (procedimental), da Sessão Plenária Extraordinária da Assembleia Nacional que rejeitou a criação da Comissão Eventual que teria a incumbência de tratar da proposta de iniciativa de acusação e destituição do Presidente da República.


IV. OBJECTO

O presente processo relativo ao contencioso parlamentar visa sindicar e decidir se a Reunião Plenária Extraordinária realizada pela Assembleia Nacional, a 14 de Outubro de 2023, violou ou não o procedimento relativo ao Processo de Acusação e Destituição do Presidente da República, plasmado na CRA e na lei.

V. APRECIANDO

O Grupo Parlamentar da UNITA requereu ao Tribunal Constitucional a objurgação da Sessão Plenária Extraordinária realizada a 14 de Outubro de 2023, pela Assembleia Nacional, por alegada existência de irregularidades censuráveis. Na sua sustentação, arguiu que a proposta de criação de uma Comissão Eventual para apreciação do Processo de Acusação e Destituição do Presidente da República, subscrita por 90 Deputados do seu Grupo Parlamentar, nos termos do n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional (RAN), aprovado pela Lei n.º 13/17, de 6 de Julho, não logrou efectiva concretização, por inobservância dos procedimentos estabelecidos na CRA e na lei.

Alegou, ainda, a existência de outros actos praticados pela Presidente da Assembleia Nacional durante a Sessão Plenária Extraordinária, mormente a adopção da votação aberta em detrimento da votação secreta, a preterição da distribuição dos documentos da agenda de trabalho aos demais Grupos Parlamentares e às Comissões de Trabalho em razão da matéria; a recusa do pedido de interrupção da Sessão, feito nos termos dos artigos 136.º e 137.º do RAN e a não cobertura da mesma pela imprensa pública (TPA e RNA).

Previamente, avulta-se pertinente, frisar que o presente processo não questiona matérias de mérito sobre o Processo de Acusação e Destituição do Presidente da República. A matéria aqui em sindicância delimita-se à questão procedimental e não substancial, mormente porque o Plenário da Assembleia Nacional não apreciou a bondade da proposta de iniciativa do Requerente, por ter sido rejeitado, ab initio, a criação da Comissão Eventual que teria a incumbência de elaborar o relatório parecer para a sua submissão ao Plenário.

Neste conspecto, delimitado o âmbito e o objecto da presente acção, cabe ao Tribunal Constitucional sindicar se assiste alguma razão ao Requerente. Terá o Plenário da Assembleia Nacional violado o procedimento do Processo de Acusação e Destituição do Presidente da República, prescrito nos artigos 129.º, n.º 5 da CRA e 284.º do RAN?
Veja-se:

a) Do Procedimento de Acusação e Destituição do Presidente da República

Sobre esta tematização, refira-se que o instituto da Acusação e Destituição do Presidente da República, é comumente conhecido na doutrina por impeachment funcionando como instituto jurídico e político, de longa história e variações em diferentes sistemas jurídicos. Essa ferramenta, remonta ao século XIV e foi criada na Câmara dos Comuns, uma das casas do Parlamento britânico para estabelecer processos criminais voltados contra os ministros do Rei e seus altos funcionários.

No sistema jurídico-político angolano a sua regulação emerge da Carta Magna, com respaldo no n.º 5 do artigo 129.º e na lei ordinária (artigo 284.º do RAN). As enunciadas normas reflectem uma combinação dual, assentes no controlo político-parlamentar e na supervisão judicial, de modo a assegurar que o processo ocorra com observância das adequadas cautelas, a devida responsabilidade institucional e o respeito à supremacia da Constituição e a conformação à legalidade.

Por este motivo, o impeachment é considerado como um instrumento essencial ao sistema de freios e contra -freios (checks and balances) na relação entre os Órgãos de Soberania, em harmonia com os ditames constitucionais.

A Constituição da República de Angola proclama na sua matriz fundante a edificação do Estado Democrático de Direito (artigo 2.º da CRA), hasteando na sua égide a institucionalização da democracia.

Adentrando nesses parâmetros e pela importância de que se revestem, destacam-se como essenciais neste domínio, os princípios da estabilidade democrática, do checks and balances e da segurança e confiança jurídicas. Por conseguinte, a CRA contém uma hermenêutica jus constitucional positivada no direito ordinário do procedimento de impeachment. Ou seja, existem um conjunto de princípios e garantias, cuja aplicação requerem uma harmonização e devem ser aferidos e orientados em tais processos.

Nesta toada, é elucidativa a demonstração da preponderância da dimensão da democracia representativa no contexto, quer dos direitos fundamentais quer dos direitos dos povos. Com efeito, consigna o artigo 3.º da CRA que: “a soberania, una e indivisível, pertence ao povo, que a exerce através do sufrágio universal, livre, igual, directo, secreto e periódico (…)”.

Conforme assinala Norberto Bobbio: “o sufrágio universal é a condição necessária, se não suficiente, para a existência e o funcionamento regular de um regime democrático, na medida em que é o resultado do princípio fundamental da democracia, segundo o qual fonte de poder são os indivíduos uti singuli e cada indivíduo vale por um (o que, entre outras coisas, justifica a aplicação da regra da maioria para a tomada das decisões colectivas)” (O futuro da democracia; uma defesa do jogo, Editora Paz e Terra, 1986, p.p 147 e 148).

Acrescentando ainda que, a democracia é essencialmente democracia representativa e um sistema de regras de procedimento. Fundamentou assim a sua conhecida definição mínima de democracia: “um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. Um regime democrático estaria caracterizado, assim, por atribuir o poder de decisão a um número muito elevado de membros do grupo, fato que daria a democracia um caráter naturalmente expansivo, móvel e dinâmico” (DEMOCRACIA, DIREITOS HUMANOS, GUERRA E PAZ/Giuseppe Tosi (Org.) – v.1.- João Pessoa: Editora da UFPB, 2013, p.p 19-20).

“Daquelas regras, portanto, a mais fundamental seria a regra da maioria, a base da qual são consideradas decisões coletivas as decisões aprovadas ao menos pela maioria daqueles a quem compete tomar a decisão (…). Para que tal princípio tenha vigência e eficácia, seria preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra, ou seja, devem estar garantidos os assim chamados direitos de liberdade, de opinião, de reunião, de associação, etc., a base dos quais nasceu o Estado liberal e foi construída a doutrina do Estado de direito em sentido forte”. (Ob. cit. p. 40).

No mesmo arrimo, Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes defendem que “o princípio democrático apresenta como princípios formais caracterizadores, o princípio da soberania popular para quem a legitimação do domínio político só pode derivar do povo e nunca de qualquer outra entidade; o princípio da representação, que assenta em postulados que estabelecem que o exercício jurídico de funções de domínio, constitucionalmente autorizados é feito em nome do povo, por órgãos de soberania do Estado, que há uma derivação directa da legitimação de domínio do princípio da soberania popular e que o exercício do poder tem em vista prosseguir os fins ou interesses do povo e, ainda, o principio do sufrágio que está ligado ao princípio anteriormente enunciado – o princípio da representação” (Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, Luanda, 2014, p. 184).

À esta luz, e tal como previsto no artigo 129.º da CRA, o Processo de Acusação e Destituição do Presidente da República exige acatamento fiel e conformador dos ditames prescritos na Carta Magna, como um limite necessário para a preservação de lídimos princípios e direitos fundamentais ali sacralizados.

No esteio da teleologia da supracitada disposição constitucional, o Presidente da República é eleito por sufrágio universal directo, secreto, e periódico, que lhe atribui legitimidade democrática para o exercício da sua função para um mandato de cinco anos, renovável uma única vez.

Dessarte, Jorge Bacelar Gouveia pontua que: “a designação do Presidente da República funda-se numa eleição directa e universal, num mecanismo de voto conjunto com a eleição parlamentar para o círculo nacional, vigorando um sistema maioritário a uma volta” (Direito Constitucional de Angola, IDILP Editor, Março de 2014, p. 404).

Na esteira desses valores supremos, e estando em causa garantias e princípios fundamentais formalmente preceituados na CRA, as vicissitudes decorrentes do afastamento do exercício do cargo por via da “destituição” obedece a critérios rígidos, inflexíveis cujo iter procedimental constitui o meio adequado para lançar mãos à sua materialidade, como forma de assegurar a transparência, a integridade e a lisura processual.

Em razão disso, Edgar Costa, citado por Miguel Reale considera que: “o impeachment é um processo essencialmente de natureza política e de raízes constitucionais, tendo como objectivo, não a aplicação de uma pena criminal, mas a perda do mandato” (Impeachment: Conceito Jurídico, In Revistas dos Tribunais 100 anos, Doutrina Essenciais, Doutrina Constitucional, Vol. IV, Organização dos Poderes da República, Clèmerson Merlin Clève, Luís Roberto Barroso, p. 552).

Este entendimento aqui escorado ficou, igualmente, marcado no Acórdão n.º 881/2024, de 2 de Abril, firmado por esta Corte Constitucional, in verbis: (…) da iniciativa dos processos de responsabilização criminal e de Destituição do Presidente da República pela Assembleia Nacional deve ser caracterizado e devidamente estabelecidos os procedimentos para a sua implementação, ou seja, qual o modus operandi da Assembleia Nacional após a recepção da proposta de iniciativa apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções.

Isto porque as situações que podem conduzir à responsabilização criminal e à destituição do Presidente da República, por serem de relevante interesse geral, são demasiado graves para serem viabilizadas sem se avaliar o mérito inicial da proposta de iniciativa. A importância dos processos de acusação e de Destituição do Presidente da República, revela-se no facto destes terem não apenas consequência interna, mas, e sobretudo, consequências e relevância na estrutura e o funcionamento do Estado (externas).

É, aliás, com este sentido que, no que toca à responsabilização do Presidente da República, J.J Gomes Canotilho e Vital Moreira asseveram que: “a iniciativa do processo cabe exclusivamente à Assembleia da República e está sujeita a severos requisitos (…). Com isto visa-se evitar a banalização ou a chicana das propostas de acusação do Presidente da República, bem como a flagelação gratuita deste (…) (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, Coimbra Editora, p. 171).” Disponível em www.tribunalconstitucional.ao.

Outrossim, atenta à sua teleologia literal interpretativa afigura-se necessário fazer o recorte normativo do n.º 5 do artigo 129.º da CRA que preceitua o seguinte:
“Os processos de responsabilização criminal e os processos de Destituição do Presidente da República a que se referem os números anteriores obedecem ao seguinte:

a) a iniciativa dos processos deve ser devidamente fundamentada e incumbe à Assembleia Nacional;
b) a proposta de iniciativa é apresentada por 1/3 dos Deputados em efectividade de funções (…);
c) a deliberação é aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções, devendo, após isso, ser enviada a respectiva comunicação ou petição de procedimento ao Tribunal Supremo ou ao Tribunal Constitucional, conforme o caso.”

Ora, da interpretação da ratio normativa desta disposição constitucional e do seu rol taxativo vislumbra-se a peculiaridade em que assenta a sua sistematização com realce em três alíneas, mormente a), b) e c), que estabelecem três momentos distintos, a considerar: (i) A proposta de iniciativa apresentada por 1/3 dos Deputados em efectividade de funções, que propulsiona o processo; (ii) A iniciativa, devidamente fundamentada, de incumbência da Assembleia Nacional, que é impulsionada pelo primeiro momento; e (iii) a deliberação, aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções.
Consequentemente, estes três momentos integram duas fases, isto é, a fase da iniciativa da Assembleia Nacional e a fase da deliberação aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções, como também ficou sedimentado na linha da jurisprudência desta Corte Constitucional no supracitado Acórdão n.º 881/2024, de 2 de Abril.


Resulta por isso, das considerações aqui expendidas sobre os aludidos normativos constitucionais (127.º a 129.º), que a Assembleia Nacional como órgão representativo do povo angolano, colegial e de tipo parlamentar, exerce, dentre outras, funções políticas e legislativas. No âmbito das funções políticas, promove o Processo de Acusação e Destituição do Presidente da República, nos termos definidos nos artigos 127.º a 129.º da CRA. Em virtude disso, o Tribunal Constitucional reafirma a sua convicção que a iniciativa de destituição do Presidente da República é do Parlamento e deve ser jus fundamentada e não do Grupo Parlamentar. Este, sim, pode apresentar a proposta de iniciativa por 1/3 dos Deputados em efectividade de funções, como o fez o Requerente, sendo que a deliberação deve ser aprovada por 2/3 dos Deputados em efectividade de funções.


No âmbito da fiscalização política do poder legislativo ao Presidente da República (co-responsabilização do Parlamento), João Pinto assevera que “o Parlamento só pode destituir o Presidente com uma iniciativa de 1/3 dos Deputados em efectividade de funções (74 Deputados), um consenso de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções (147 Deputados), e cabe ao Tribunal Constitucional ou Supremo julgar, absolvendo ou destituindo o Presidente, o que não é fácil, pois são órgãos não pressionáveis politicamente, por não se tratar de júri politico (…).


(…) pode-se dizer que no Sistema de Governo Angolano há claramente um mecanismo equilibrado de fiscalização política do Presidente da República face à Assembleia Nacional e um controlo do Parlamento face ao Presidente, pois este pode limitar in extremis por auto-demissão, co-responsabilizando a Assembleia Nacional. Aqui está a “pedra de toque” do modelo angolano de convívio saudável entre a maioria parlamentar com o executivo; aqui está o pendor parlamentar do sistema de governo Presidencialista-Parlamentar” (A Fiscalização Parlamentar: O papel do Parlamento no Sistema Político Angolano, In A Guardiã, Revista Científica do Tribunal Constitucional, n.º 2, Editora Lexdata, 2024, pp. 281 e 282).


Vale sublinhar que, no âmbito das suas competências organizativas, a Assembleia Nacional, enquanto órgão de soberania, tem proficiência para legislar sobre a sua organização interna, ou seja, aprovar normas que regulam o seu próprio funcionamento, em forma de Lei Orgânica, por força do artigo 155.º, da alínea a) do artigo 160.º e da alínea b) do n.º 2 do artigo 166.º, todos da CRA.
Acresce que, a Assembleia Nacional tem, ainda, no âmbito da sua organização e funcionamento internos, competência para constituir a Comissão Permanente, as Comissões de Trabalho Especializadas, as Comissões Eventuais e as Comissões Parlamentares de Inquérito, nos termos da alínea c) do artigo 160.º da CRA (Competência organizativa). Neste sentido, escorado no referido dispositivo legal, a Assembleia Nacional aprovou o seu Regimento Interno (RAN), onde se estabelece como princípios básicos de funcionamento os princípios da votação, da representação proporcional e a tipologia de deliberações adoptadas por maioria absoluta dos Deputados (artigos 5.º, 37.º e 155.º do RAN).


Assim, no âmbito desta espécie de processo, dispõe o n.º 3 do artigo 284.º do RAN que “recebida a proposta de iniciativa do processo de acusação e destituição do Presidente da República, o Plenário da Assembleia Nacional reúne-se de urgência e cria, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, uma Comissão Eventual, a fim de elaborar relatório parecer sobre a matéria, no prazo que lhe for fixado”.


É importante frisar que o n.º 5 do artigo 129.º da CRA nada discorre sobre os procedimentos a adoptar pela Assembleia Nacional, após recepção da proposta de iniciativa dos processos de responsabilização criminal e de destituição do Presidente da República, bem como não dispõe, expressamente, sobre a criação de uma Comissão Eventual. Estabelece, sim, o aludido preceito constitucional, que a iniciativa do referido processo incumbe à Assembleia Nacional.


Pelo que, pode-se aferir que no constitucionalismo angolano, a proposta de iniciativa (GP) não se confunde com a iniciativa do processo (AN), correspondendo a formatos e ritos assentes em pontos de partida e conteúdos que perseguem diferenciados propósitos ou etapas jurídico-legais.


Inobstante, a Carta Magna estatua nos artigos 127.º e 129.º algumas regras procedimentais sobre o impeachment que devem ser observadas, o RAN vem consignar outras normas complementares e, em alguns casos, densificar as normas constitucionais.


Com efeito, o artigo 284.º do RAN prescreve o seguinte:
“1. A iniciativa do Processo de Acusação e Destituição do Presidente da República compete à Assembleia Nacional”.


“3. Recebida a proposta de iniciativa do processo de acusação e destituição do Presidente da República, o Plenário da Assembleia Nacional reúne-se de urgência e cria, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, uma Comissão Eventual, a fim de elaborar relatório parecer sobre a matéria, no prazo que lhe for fixado”.
Em harmonia com a ratio desta norma assaca-se que a iniciativa do processo de acusação e destituição do Presidente da República compete à Assembleia Nacional. Esta parte da norma reafirma a competência exclusiva da Assembleia Nacional para iniciar o Processo de Responsabilização Criminal e Destituição do Presidente da República, alinhado ao princípio da soberania popular, uma vez que é o órgão representativo máximo, tal como regula o artigo 3.º do RAN.


Em seguida, após o recebimento da proposta de iniciativa, o Plenário da Assembleia Nacional deve reunir-se de forma urgente, de modo a conformar-se a obediência dos prazos instituídos na lei. Isso significa que, a Assembleia Nacional deve dar prioridade à análise da proposta, evitando delongas desnecessárias e pueris que possam comprometer razões ligadas ao interesse público, à transparência, à segurança e à confiança jurídicas.


Uma vez reunido, o Plenário da Assembleia Nacional deve, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, constituir uma Comissão Eventual para elaborar um relatório parecer sobre a viabilidade da acusação ou destituição do Presidente da República. Esta Comissão tem um carácter temporário e especializado, pois é formada especificamente para analisar a proposta e emitir um relatório dentro de um prazo determinado, oferecendo subsídios técnicos e jurídicos para a deliberação futura.
No que aos formalismos de recebimento e convocação de reunião urgente dizem respeito, o RAN introduz uma fase específica após o recebimento da proposta: o Plenário deve reunir-se de urgência, promovendo uma tramitação processual prioritária, atenta à natureza jurídica do processo.


Nos termos do RAN, a reunião de urgência tem como objectivo a criação da Comissão Eventual, que tem a competência de elaborar o relatório-parecer sobre a proposta. Este formalismo não é mencionado directamente na Constituição, mas complementa o processo descrito no n.º 5 do artigo 129.º da CRA. Ou seja, nota-se que o RAN detalha o procedimento interno da Assembleia Nacional para avaliar tecnicamente a proposta de iniciativa do processo de acusação e destituição do Presidente da República, através de uma Comissão Eventual, que fornecerá um relatório-parecer sobre a matéria (n.º 3 do artigo 284.º).


Daqui se infere que a Constituição angolana atribuiu ao critério do legislador ordinário os procedimentos subsequentes à recepção da proposta de iniciativa de Acusação e Destituição do Presidente da República apresentada por 1/3 dos Deputados em efectividade de funções, respeitando os princípios estabelecidos na CRA.
Conforme preconiza o n.º 1 do artigo 80.º do RAN: “a Assembleia Nacional pode constituir Comissões Eventuais para qualquer fim determinado, cuja organização, competência, duração e modo de funcionamento são fixados, para cada caso, de acordo com as tarefas específicas que lhes forem atribuídas.”


Ora, sendo as Comissões Eventuais constituídas por Resolução da Assembleia Nacional, devem ser observadas as regras inerentes às deliberações deste órgão, previstas no artigo 159.º da CRA (e reiteradas no artigo 37.º do RAN), segundo o qual “As deliberações da Assembleia Nacional são tomadas por maioria absoluta dos Deputados presentes, desde que superior a mais de metade dos Deputados em efectividade de funções, salvo quando a Constituição e a lei estabeleçam outras regras de deliberação”.


Outrossim, tal como as Comissões de Trabalho, preceitua o artigo 66.º do RAN que as Comissões Eventuais “são constituídas por resolução da Assembleia Nacional, conforme o previsto na alínea f) do n.º 2 do artigo 166.º da Constituição da República”.


No caso sub judice, verifica-se que o Plenário da Assembleia Nacional, na sua Sessão Plenária Extraordinária, realizada a 14 de Outubro de 2023, rejeitou, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, a criação da Comissão Eventual que teria a competência de tratar do Processo de Acusação e Destituição do Presidente da República.
Em razão disso, a viabilidade da manifestação de vontade de se constituir a Comissão Eventual, esteia-se na idoneidade das motivações que ditam o impulso do procedimento, ou seja, além dos aspectos formais é, também, ponderada a aptidão ou a justa causa do pedido, podendo, por conseguinte, ser liminarmente rejeitado, coartando, deste modo, que o processo prossiga e prospere, concretizando outras fases que lhe são inerentes.


Em suma, afigura-se inequívoco que a não criação da Comissão Eventual, adoptada por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, extinguiu à “nascença” a proposta de iniciativa do Requerente, isto é, foi liminarmente rejeitada, pelo que, consequentemente, não tramitou à primeira fase do procedimento, nos termos da alínea a) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA, por mera vontade colegial da maioria presente na Sessão colimada.

b) Sobre o mecanismo de votação e o pedido de interrupção da Sessão Plenária Extraordinária
O Requerente alega que, no Processo de Acusação e Destituição do Presidente da República, o sistema de votação deve ocorrer por escrutínio secreto. Sustentando que a Assembleia Nacional ao submeter à votação a proposta de criação da Comissão Eventual ao regime de voto aberto infringiu o disposto no n.º 2 do artigo 157.º e na alínea b) do artigo 159.º, ambos do RAN.

Invoca, ainda, que o Plenário da Assembleia Nacional, ao adoptar na reunião Plenária Extraordinária, a votação aberta na modalidade de mão levantada violou, igualmente, o disposto na alínea b) do artigo 159.º e o n.º 2 do artigo 157.º, todos do RAN.
Assiste-lhe razão? Analise-se!
No processo de impeachment do Presidente da República, o formalismo da votação desempenha um papel crucial na validação das distintas etapas do processo. Nesta perspectiva, o mecanismo de votação instituído (aberta ou secreta) varia, significativamente, de acordo com a ordem jurídico-legal de cada país, inerente a uma panóplia de pressupostos que se reputam cruciais para a sua definição na ordem jurídica.

Neste contexto, a tradição política e democrática, as normas internas dos órgãos legislativos, e outras premissas, não menos importantes, determinam o regime legal dos sistemas políticos que jazem na Lex Mater. Por isso mesmo, não é aferível considerar que o mecanismo de votação adoptado naquela Sessão deve ser considerado irregular, quando a lei prevê as circunstâncias especiais para o efeito (artigo 157.º do RAN).

A título comparado, refira-se que noutras ordens jurídicas salvaguarda-se, em muitos casos de deliberações parlamentares de grande relevância, maxime em algumas etapas ou fases do processo de impeachment, o dever legal da votação aberta com o fito de garantir transparência e, sobretudo, a aferição da responsabilidade dos deputados perante os eleitores. Sobre este aspecto, é paradigmático, mutatis mutandis, o regime dos Estados Unidos da América, da República Federativa do Brasil, da República Federal da Alemanha e da República da África do Sul, nessa medida, a votação aberta, não é exclusiva da legislação pátria, sendo, por isso mesmo, admissível e compatível as modalidades da votação secreta ou da votação aberta, em função das opções legislativas de cada ordenamento jurídico.

Ainda sobre esta questão, meramente a titulo exemplificativo, a República Federativa do Brasil, através da Emenda Constitucional n.º 76/2013 (Diário Oficial da União, de 29 de Novembro de 2013), extinguiu o voto secreto nas votações em processos de cassação de parlamentares e no exame de vetos presidenciais e passou a consagrar como regra à votação aberta, proclamando que por ser uma República que adopta a publicidade dos actos estatais como um princípio constitucional, a população tem o direito de saber como votam os seus representantes, considerando que eles exercem o poder em nome do povo. (cfr.Site:https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&data=29/11/2013).

Dispõe a alínea b) do artigo 159.º do RAN, in litteris, que “a acusação do Presidente da República nos termos do n.º 5 do artigo 129.º da Constituição e dos artigos 284.º e 285.º do presente Regimento”; fazem-se por votação secreta, está a referir-se à segunda fase do procedimento em que já existe a acusação da Assembleia Nacional concretizada numa Resolução aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções.

No caso em apreço, esta fase é desatendível, uma vez que a Plenária da Assembleia Nacional por maioria dos Deputados presentes e em efectividade de funções rejeitou a criação da Comissão Eventual que teria a incumbência de dar tratamento a proposta de iniciativa. Pelo que, não se tendo iniciado a primeira fase (a iniciativa de processo devidamente fundamentada), não se pode falar propriamente de uma segunda etapa.

Na sequência do procedimento de votação, o Requerente censura, também, que fez um pedido de interrupção da reunião plenária extraordinária, nos termos dos artigos 136.º e 137.º do RAN, todavia, a Presidente da Assembleia Nacional recusou o pedido restringindo, assim, a concretização e aplicabilidade dessas normas.

Sobre esta temática, cabe frisar que a restrição aqui suscitada decorre dos cânones legais. Trata-se de prerrogativas que decorrem de parâmetros legais. Neste ínterim, o facto da Presidente ter recusado o pedido do Requerente não constitui em si um acto eivado de vícios ou de quaisquer irregularidades conducentes à violação do Regimento ou da lei. A contrario sensu, também aqui se pode trazer à ribalta que essa decisão recaída esteia-se no âmbito dos princípios da legalidade, da adequação e da razoabilidade. Trata-se de um poder discricionário que lhe é conferido pelo próprio Regimento, para que, enquanto entidade que preside as sessões plenárias, possa assegurar o seu regular funcionamento e a estabilidade institucional, salvaguardando, deste modo os interesses e direitos de todos os deputados presentes e o princípio da continuidade das reuniões da Assembleia Nacional (n.ºs 1 e 2 do artigo 136.º e da alínea m) do artigo 44.º, ambos do RAN).

A este propósito, resulta da lei que o texto normativo consagrado nos artigos 136.º, n.º 2 e 137.º, n.º 3 do citado diploma enuncia as situações cabíveis susceptíveis de interrupção. Por conseguinte, a sua admissibilidade está condicionada à aceitação ou não da Presidente da Assembleia Nacional, no âmbito dos poderes legais consagrados na lei, o que não pode, obviamente, nos presentes autos constituir uma decisão eivada de qualquer vício.

Além disso, compulsados os autos, o Tribunal Constitucional verifica que o pedido de interrupção da Sessão Plenária Extraordinária não foi manifestado pela maioria dos Deputados presentes, por isso não se pode dizer que terá violado os princípios da democracia representativa ou da proporcionalidade. Assim sendo, demonstra-se justificável e devidamente ponderada a decisão tomada pela Presidente, de não interromper a reunião, prosseguindo a sua realização de modo a efectivar o cumprimento da agenda de trabalho, tendo em conta a prioridade que caracteriza esta espécie de processo e o seu carácter de urgência, nos termos das disposições combinadas do n.º 6 do artigo 29.º da CRA e do n.º 3 do artigo 284.º do RAN.

c) Sobre a Distribuição das peças documentais da proposta de iniciativa, a falta de cobertura da imprensa (TPA e RNA) e a alegada ofensa ao princípio da proporcionalidade
O Requerente traz à colação na sua impugnação a falta de distribuição dos documentos inerentes à agenda da Ordem do Dia e da cobertura da imprensa (TPA e RNA), na Sessão Plenária Extraordinária. Na sua óptica, a Assembleia Nacional violou o artigo 40.º da CRA, o RAN e o costume parlamentar invocando na sua argumentação que a Assembleia Nacional, ao omitir a distribuição dos documentos pertinentes aos Grupos Parlamentares e às Comissões de Trabalho competentes, infringiu o costume parlamentar e o Regimento da Assembleia Nacional (RAN).

Adicionalmente, aduziu que a falta de transmissão em directo pela Televisão Pública de Angola (TPA) e pela Rádio Nacional de Angola (RNA) constituem, alegadamente, uma violação do direito fundamental de acesso à informação, explanado no artigo 40.º da Constituição da República de Angola (CRA), que assegura ao cidadão o direito de ser informado, de se informar e de informar.

Sobre a questão, respeitante a não distribuição de documentos da Ordem do Dia, veio a Requerida no seu pronunciamento arguir que na sua intelecção o n.º 3 do artigo 206.º do RAN, em censura, confere cobertura a dispensa deste formalismo desde que na Conferência haja consenso dos Presidentes dos Grupos Parlamentares. No demais, alude, ainda, que no dia que antecedeu a Sessão Extraordinária vertente, a Comissão Permanente da Assembleia Nacional deliberou a 13 de Outubro a convocação da supra referida Sessão, o que é sintomático, ainda que, implicitamente, da aceitação da preterição adoptada consensualmente pelos Presidentes dos Grupos Parlamentares. Isto sem deixar de observar-se que o Requerente não elucida a esta Corte Constitucional sobre a eventual falta de consenso alusivo a este tema.

No caso dos presentes autos, efectivamente, constata-se que os documentos invocados não foram distribuídos aos Deputados. Assim, inobstante a Ordem do Dia ter sido aprovada, por unanimidade, como sustenta o Requerente nas suas alegações, sem que tenha sido suscitado quaisquer reparos quanto a este aspecto pelos demais participantes da sessão, o Tribunal Constitucional reconhece a insofismável importância da observância deste formalismo legal que devia ter sido melhor acautelado pela Requerida, tendo em linha de conta a utilidade prática e relevância da causa final. Apesar disso, não é assimilável que se possa considerar, tal facto, uma irregularidade susceptível de fundamentar a existência de discrepâncias legais cabíveis imputáveis àquela Sessão Plenária Extraordinária da Assembleia Nacional, porquanto o n.º 3 do artigo 206.º do RAN permite a sua dispensa.

Por isso, é pertinente realçar que a ausência desse formalismo legal não compromete a coerência jurídico-procedimental da reunião, uma vez que o Requerente não desconhecia o conteúdo da proposta em análise. Pelo contrário, foi o conhecimento geral dessa proposta, da sua iniciativa, que fundamentou a aferição e ponderação sobre o seu juízo de admissibilidade e, consequentemente, a votação de rejeição expressa pela maioria dos Deputados presentes e em pleno exercício de suas funções.

No que se reporta à ausência da comunicação social onde se inserem a TPA e a RNA, o Requerente argui que pelo facto de a Sessão Plenária não ter tido transmissão em directo houve clara violação do direito do cidadão de ser informado, de se informar e de informar, nos termos do artigo 40.º da CRA.

Desta disposição constitucional, vislumbram-se várias vertentes da sua dimensão conceitual, com realce, ao facto da liberdade de informar revestir-se de uma característica dual, maxime, a liberdade de informar e a de ser informado. Esta liberdade não é apenas o direito individual, mas, também, um direito colectivo, uma vez que num Estado Democrático de Direito os cidadãos têm o direito a estarem informados, por isso este princípio é intrínseco à liberdade de imprensa.

Ora, versam os autos e tal como riposta a Requerida, durante o período de pausa parlamentar, em que se encontrava a Assembleia Nacional, decorriam na Sala do Plenário benfeitorias de restauro e melhorias (fls. 31-43), para acolher a 147.ª Assembleia da União Interparlamentar que se realizou de 23 a 27 de Outubro de 2023, em Luanda.

Esta situação fez com que a Assembleia Nacional realizasse a reunião Plenária Extraordinária na Sala Multiusos onde não existiam condições técnicas para a transmissão televisiva ou radiofónica. Rezam, ainda, os autos que no dia 13 de Outubro, aquando da reunião da Comissão Permanente, a Presidente da Assembleia Nacional informou aos presentes sobre a obra de restauro que decorria na Sala do Plenário, tendo convidado os líderes dos Grupos Parlamentares a visitarem as salas do Plenário e Multiusos.

Nesta circunstância, atendendo a ratio hermenêutica e a teleologia do mencionado preceito fundamental consagrado na Carta Magna (artigo 40.º) não se descortina a plausibilidade de se conformar a sua violação pelo facto de a ausência de condições técnicas da sala que acolheu a Sessão não dispor dessa possibilidade, no entanto, salvaguardada com a divulgação da matéria em diferido.

Por fim, sobre a alegada ofensa ao princípio da proporcionalidade consagrado nos artigos 57.º, 58.º, n.º 3 e 198.º da CRA, que tem como escopo aferir se o sacrifício de determinados bens, valores ou interesses é adequado, necessário e suportável, face à satisfação de outros, de tal sorte que se possa afirmar que o sacrifício imposto é proporcional ao benefício.

Doutrinalmente, “(…) é entendido como o princípio da justa medida. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objectivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim” (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2002, p. 270).

Por seu turno, Orlando Fernandes pontua que “a proporcionalidade é, enquanto princípio constitucional, utilizada profusamente, sobretudo para o balanceamento concreto dos direitos ou interesses em conflito” (O Princípio Constitucional da Proporcionalidade e os Remédios contra o Não Cumprimento, In A Guardiã, Revista Científica do Tribunal Constitucional, n.º 2, Editora Lexdata, 2024, p. 351).

Dessarte, o princípio da proporcionalidade constitui uma garantia elementar embasada pelo Estado de Direito que visa, além do mais impor aos poderes públicos uma actuação ponderada que proporcione equilíbrio, justeza, lisura e uma efectiva adequação das normas legais. No caso em presença, não se visualizam atropelos à CRA e a Lei, porquanto, às normas arguidas pelo Requerente são legalmente exigíveis no rito respeitante ao momento da composição da Comissão Eventual (n.º 4 do artigo 284.º do RAN), o que não veio a concretizar-se pelas razões supra esclarecidas. No demais, a restrição que consiste em não ver criada a Comissão Eventual emerge de uma deliberação fundada na vontade expressa da maioria dos Deputados presentes.

Face ao acima expendido, esta Corte Constitucional considera que não existem inconstitucionalidades ou desconformidades legais no procedimento adoptado na Sessão Plenária Extraordinária, realizado pela Assembleia Nacional.

Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: JULGAR IMPROCEDENTE A PRESENTE ACÇÃO RELATIVA AO CONTENCIOSO PARLAMENTAR.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 14 de Novembro de 2024

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dr. Gilberto de Faria Magalhães

Dr. João Carlos António Paulino

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Voto Vencido sem Declaração)

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira (Relatora)

Dr. Vitorino Domingos Hossi