ACÓRDÃO N.º 1019/2025
PROCESSO N.º 1273-A/2025
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Henrique Reinaldo de Melo Quiteculo, melhor identificado nos autos, interpôs no Tribunal Constitucional o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de 5 de Janeiro de 2024 (fls. 469 e 470), prolatado pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 5448/21, que confirmou a aplicação da pena imposta pelo Tribunal a quo, de 9 anos de prisão maior pela prática do crime de tráfico e outras actividades ilícitas, previsto e punível pelo n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 3/99, de 6 de Agosto, Lei sobre o Tráfico e Consumo de Estupefacientes, Substâncias Psicotrópicas e Precursores.
O Recorrente, regularmente notificado para deduzir as suas alegações (fls. 493 a 498 A), arguiu, essencialmente, que:
1. Dos autos colhe-se que a audiência de julgamento no Tribunal a quo ficou marcada com a ausência de um Tribunal colectivo, tendo em conta a natureza do crime, a constituição de um Tribunal colectivo era obrigatória.
2. A Decisão proferida por um Juiz singular viola o disposto nos artigos 3.º e 45.º n.º 2 da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum.
3. A este respeito, é pertinente referir que o Estado Democrático e de Direito sempre acautelou essa garantia processual para não ser violado o princípio da imparcialidade, previsto no artigo 175.º da CRA, que visa assegurar a todos os cidadãos o direito a julgamento justo e conforme, como estabelece o artigo 72.º da CRA.
4. Por isso, não pode ser admitida tal situação num Estado Democrático de Direito, que prima pela defesa da igualdade de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidos a todos os cidadãos (artigo 23.º, 29.º n.º 5, e 72.º, todos da CRA), conjugado com o artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aplicáveis por força do artigo 13.º da CRA.
5. O julgamento e a Decisão proferida pelo Tribunal a quo não foram realizados em conformidade com os ditames da lei, isto é, nos termos da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, mais favorável ao arguido.
6. Resulta disso, dois vícios que dão lugar a nulidade que se subdivide em sanável e insanável.
7. Para o caso sub judice, deve-se ter em conta o preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 140.º do CPPA, a semelhança do que dispunha o artigo 98.º n.º 7 do Código do Processo Penal, de 1929.
8. Em suma, o Acórdão recorrido violou o direito a julgamento justo e conforme (artigo 72.º da CRA), por se ter verificado a violação de normas processuais imperativas.
O Recorrente concluiu pedindo “que seja julgado inconstitucional o Acórdão do Tribunal a quo, pelos fundamentos já acima descritos, nos termos do artigo 140.º n.º 1, alínea a), conjugado com o artigo 45.º n.º 2 e 3 da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum e por violação de um julgamento justo e do princípio da legalidade, da imparcialidade, previstos no n.º 1 do artigo 177.º, 72.º, 174.º n.º 2, 67.º n.º 2 e n.º 2 do artigo 6.º e 175.º, todos da CRA”.
O processo foi ao Ministério Público que, no essencial, promoveu a seguinte vista:
“Importa ainda referir que, em sede do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, não importa, apenas, que seja cumprida a cadeia recursória ordinária, mas também que as alegações recaiam sobre o objecto do presente recurso, o que no caso sub judice não ocorreu. Ou seja, as alegações deduzidas pelo aqui Recorrente incidem e atacam essencialmente o acórdão do Tribunal de primeira instância e não o acórdão do Tribunal Supremo. Ademais, em momento algum os factos ora alegados pelo Recorrente foram submetidos à apreciação no âmbito do recurso interposto junto do Tribunal Supremo, circunstância que reforça mais ainda a inadmissibilidade de sua invocação nesta fase extraordinária do processo (…).
Destarte, constata-se a fls. 423 a 425 que o Acórdão proferido pelo Tribunal Supremo respeitou o quórum legalmente estabelecido (art.ºs 33.º, 34.º e 36.º, todos da Lei n.º 2/22, de 17 de Março – Lei Orgânica do Tribunal Supremo), para a válida constituição do colectivo de juízes e, consequentemente, para o julgamento justo e conforme da causa em apreço.
Em face do exposto, somos pela improcedência do presente REI, por não se comprovar a violação de princípios constitucionais ou de direitos, liberdades e garantias fundamentais”.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e de decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento da cadeia recursória conforme o estatuído no § único do artigo 49.º da LPC.
III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é parte (agravante) no Processo n.º 5448/21, que correu trâmites na 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, por essa razão, tem legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, “no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é verificar se o Acórdão de 5 de Janeiro de 2024, prolatado pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 5448/21, violou princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais.
V. APRECIANDO
Ao Tribunal Constitucional é submetido à apreciação o Acórdão de 5 de Janeiro de 2024, proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 5448/21, que confirmou a condenação do Recorrente, na pena de 9 anos de prisão maior pela prática do crime de tráfico e outras actividades ilícitas, previsto e punível pelo n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 3/99, de 6 de Agosto, Lei sobre o Tráfico e Consumo de Estupefacientes, Substâncias Psicotrópicas e Precursores.
Durante a fase de apreciação do processo, e após emissão dos vistos pelos Juízes Conselheiros e da vista do Ministério Público, o Juiz Relator, ao verificar que as alegações inicialmente apresentadas não observavam os requisitos formais previstos no artigo 690.º do CPC, proferiu Despacho (fls. 515), nos seguintes termos:
“Constato, nesta fase do processo, que as alegações apresentadas pelo Recorrente não observaram os requisitos previstos no artigo 690.º do Código de Processo Civil e incidem de forma directa e objectiva sobre a Decisão proferida pela 1.ª Secção da Sala das Questões Criminais do Tribunal da Comarca de Benguela quando devia incidir sobre a Decisão prolatada pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo;
Para não comprometer o êxito do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por falta de objecto, convido, nos termos do artigo 49.º da LPC e do n.º 3 do artigo 690.º do CPC, o Recorrente a aperfeiçoar as alegações no prazo de 8 dias”.
Não obstante o convite formulado, constatou-se que o Recorrente, dentro do prazo assinalado, apresentou nova peça processual (fls. 519 a 524), porém sem atender ao teor do despacho, mantendo-se inalterados os fundamentos anteriormente expostos.
Neste diapasão, muito embora o Acórdão prolatado pela Câmara Criminal do Tribunal Supremo se encontre junto aos autos, o Recorrente, nas suas alegações, suscita a inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Sala das Questões Criminais do Tribunal de Comarca de Benguela, invocando a violação dos princípios da legalidade, imparcialidade e o direito a julgamento justo e conforme, previstos no n.º 2 do artigo 6.º, nos artigos 175.º e 72.º, todos da CRA.
Ora, na verdade e nos termos da Lei Processual Constitucional constitui objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, o Acórdão prolatado pela Câmara Criminal do Tribunal Supremo, como previsto no artigo 49.º da LPC.
Por conseguinte, assinala-se que, no âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, não basta a verificação do esgotamento da cadeia recursória. É também imprescindível que as alegações do Recorrente incidam de forma directa e objectiva sobre a Decisão recorrida, o que, no caso sub judice, não se verifica, comprometendo, de forma substancial, a pretensão do Recorrente.
A tramitação do processo constitucional segue as normas próprias da lei processual, sendo subsidiariamente aplicável o Código de Processo Civil, ex vi, do artigo 2.º da LPC.
Com efeito, as alegações revestem-se de carácter essencial para a apreciação do mérito do recurso, na medida em que delimitam o seu objecto e fundamentam, de facto e de direito, as pretensões do Recorrente. A ausência de tal conformidade converte o recurso em peça processual inócua e desprovida de pressupostos para a sua apreciação jurisdicional.
Sobre a importância das alegações, refere Onofre dos Santos, comentando o artigo 690.º do CPC:
“As alegações são os instrumentos ao dispor do recorrente para expor os fundamentos pelos quais entende que a norma ou normas cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada são inconstitucionais (Lei do Processo Constitucional Anotada, Texto Editores, 2016, pp. 58 a 60).
Na mesma linha de interpretação está a jurisprudência fixada no Acórdão n.º 784/2022, de 15 de Novembro do Tribunal Constitucional (disponível em www.tribunalconstitucional.ao).
Entretanto, estabelece o n.º 1 do artigo 690.º do CPC que “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual concluirá, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.
Veja-se que esta disposição impõe ao Recorrente dois ónus, sendo um de apresentar a sua alegação de recurso e outro o de concluir fazendo indicação, resumida, dos fundamentos porque pede a alteração ou anulação da decisão recorrida. Na sequência, infere-se do n.º 3 do artigo 684.º do mesmo diploma legal que é pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso.
Atento as alegações apresentadas pelo Recorrente, verifica-se, surpreendentemente, que se dirigem exclusivamente à Decisão da 1.ª Secção da Sala das Questões Criminais do Tribunal de Comarca de Benguela, ignorando por completo a Decisão do Tribunal Supremo, sobre a qual deveria ter incidido o verdadeiro objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos do artigo 49.º da LPC.
Além de mais, a questão suscitada pelo Recorrente como fundamento do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, relativa ao quórum legalmente exigido para a constituição do Tribunal, não foi arguida perante o Tribunal Supremo, no âmbito do recurso ordinário interposto.
Ora, nos termos do artigo 49.º da LPC, o recurso extraordinário de inconstitucionalidade destina-se à sindicância de decisões judiciais que, após o esgotamento da cadeia recursória, contenham fundamentos que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados. Daí decorre, por força da sua própria natureza, que tal meio impugnatório não pode ser utilizado como via originária de arguição de vícios ou ilegalidades que não tenham sido previamente suscitadas perante as instâncias competentes. Consequentemente, a questão relativa ao referido quórum não pode ser, nesta sede, objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional.
Assim, não pode o Recorrente pretender que o Tribunal Constitucional aprecie a Decisão proferida pela 1.ª Secção da Sala das Questões Criminais do Tribunal de Comarca de Benguela, porquanto a mesma não constitui o objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Com efeito, a competência do Tribunal Constitucional, nesta sede, encontra-se estritamente delimitada à fiscalização, mediante recurso, das decisões prolatadas pelos Tribunais superiores, após o prévio esgotamento da cadeia recursória. Nesta medida, fica este Tribunal impedido de aferir se a Decisão da 1.ª Secção das Questões Criminais do Tribunal da Comarca de Benguela violou, ou não, princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados.
Ademais, o Recorrente, nas suas alegações, conforme já mencionado supra, não se preocupou em atacar a Decisão proferida pela Câmara Criminal do Tribunal Supremo, não obstante ter sido expressamente advertido, por este Tribunal, acerca das consequências processuais de tal omissão.
Ora, decorre da Lei do Processo Constitucional que, nestes casos, há lugar à rejeição do requerimento, com fundamento na alínea c) do n.º 1 do artigo 8.º, devendo, nestas circunstâncias, o Plenário indeferir em definitivo, nos termos do n.º 2 do artigo 5.º da LPC.
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional conclui que o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade se mostra irremediavelmente comprometido, porquanto os fundamentos nele expendidos se encontram desarticulados com o que teria sido o verdadeiro objecto do recurso, o que o torna desprovido de conteúdo útil e, consequentemente, insusceptível de apreciação.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: INDEFERIR O PRESENTE REQUERIMENTO, NOS TERMOS E COM OS FUNDAMENTOS DAS DISPOSIÇÕES COMBINADAS DA ALÍNEA C) DO N.º 1 DO ARTIGO 8.º E DO N.º 2 DO ARTIGO 5.º DA LPC.
Sem Custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 26 de Agosto de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Amélia Augusto Varela
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Lucas Manuel João Quilundo (Relator)
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Vitorino Domingos Hossi