2.ª CÂMARA
ACÓRDÃO N.º 1021/2025
Processo n.º 1227-C/2024
Recurso Ordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Sessão da Segunda Câmara do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Ordem dos Advogados de Angola (OAA), veio ao Tribunal Constitucional, ao abrigo das disposições conjugadas da alínea e) do n.º 2 do artigo 181.º da Constituição da República de Angola (CRA), com a alínea a) do n.º 1 do artigo 36.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 25/10, de 3 de Dezembro, interpor recurso ordinário de inconstitucionalidade da decisão proferida pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal da Relação de Luanda, no âmbito do Processo n.º 22/2024-G, que, em sede de instância cautelar, determinou a suspensão do exame de acesso à advocacia, bem como dos Regulamentos n.ºs 1/19, de 7 de Março e 2/22, de 15 de Fevereiro, sustentando a ilegalidade e inconstitucionalidade das normas que os fundamentam.
Com efeito, para alcançar o seu intento, a Recorrente alega a constitucionalidade das normas contidas nos artigos 5.º, 7.º, 8.º, 11.º, 12.º e 14.º, n.º 1, alínea b) do Regulamento n.º 1/19, de 7 de Março, Regulamento de Acesso à Advocacia, bem como da totalidade das normas do Regulamento n.º 2/22, de 15 de Fevereiro, Regulamento do Exame Nacional de Acesso à Advocacia, fundamentando, em síntese, o seguinte:
1. A Ordem dos Advogados de Angola é uma associação pública do tipo profissional, com total independência dos poderes públicos estaduais, constituindo-se como um organismo de autorregulação. Enquanto organismo de autorregulação, a OAA tem competências próprias regulamentares e de supervisão que incluem o licenciamento dos profissionais, mediante fixação de critérios objectivos, transparentes e não discriminatórios de acesso, permanência e saída da profissão.
2. As competências para regulamentação do acesso à profissão compreendem a definição do mecanismo de entrada, permanência e saída da profissão e estão expressamente consagradas no n.º 3 do artigo 193.º da CRA, na alínea c) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 3/12, de 13 de Janeiro – Lei de Bases das Associações Públicas (LBAP), do n.º 1 do artigo 14.º da Lei da Advocacia, da alínea e) do n.º 1 do artigo 33.º do Estatuto da OAA, disposições essas que desencadearam a produção da regulamentação subsequente, nomeadamente o Regulamento n.º 1/19, sobre o Acesso à Advocacia, e o Regulamento n.º 2/22, sobre o Exame de Acesso à Advocacia.
3. O direito ao trabalho e livre acesso à profissão não foi violado pelos aludidos Regulamentos, tampouco pelo Exame Nacional de 2024, na medida em que os referidos diplomas e o exame em si não contêm critérios discriminatórios e limitativos do acesso, fundados na violação do princípio da igualdade, em especial na componente da igualdade de acesso, nos termos conjugados do artigo 23.º e da alínea c) do n.º 3 do artigo 76.º, ambos da CRA.
4. A norma vertida no n.º 3 do artigo 193.º da CRA atribui competência específica e inequívoca à OAA para definição dos termos de acesso à profissão de advogado por via de Regulamentos, não dependendo de desdobramento ou concretização em lei ordinária para o efeito.
5. Em qualquer caso, na sequência da conclusão anterior, há embasamento legal ordinário suficiente para salvaguarda da competência da OAA, enquanto associação pública do tipo profissional (ordem profissional), para regular os termos de acesso à profissão de Advogado, por via de Regulamentos, conforme disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 7.º da LBAP.
6. A Constituição ao reconhecer expressa e diretamente poderes à OAA para regular o acesso à profissão de advogado consagra uma restrição implícita ao acesso a esta profissão para salvaguarda de outros interesses constitucionalmente protegidos, nomeadamente o da boa administração da justiça.
7. O Tribunal Constitucional reconheceu em sessão plenária ordinária, por via de Acórdão, a competência constitucional e legal da OAA para regular o acesso à profissão, nomeadamente os termos e condições de entrada, permanência e saída da profissão, como, de resto, resulta claro e inequívoco do seu Acórdão n.º 314/13, de 29 de Agosto.
8. Andou mal o Tribunal recorrido, na sua decisão, pois deixou de aplicar normas regulamentares que emanam do órgão materialmente competente para efeito, tendo-as indevidamente reputado por inconstitucionais, não tendo consultado jurisprudência anterior, emanada de um Tribunal Superior, e por sinal o último reduto da salvaguarda da Constituição.
9. Andou mal também por ter decretado a suspensão da eficácia do Exame Nacional 2024 com fundamento na inconstitucionalidade dos Regulamentos que lhe serviram de base.
10. A decisão recorrida deve ser revogada, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 36.º da LPC, em virtude de se ter recusado aplicar as normas constantes das disposições do Regulamento n.º 1/19, de 7 de Março e do Regulamento n.º 2/22, de 15 de Fevereiro, na sua totalidade.
11. Neste sentido, requer-se que seja declarada a conformidade dos artigos 5.º, 7.º, 8.º, 11.º, 12.º e 14.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento n.º 1/19, de 7 de Março (Regulamento de Acesso à Advocacia) que impõe como requisito de inscrição na OAA a prévia aprovação no exame nacional de acesso, da totalidade das normas do Regulamento n.º 2/22, de 15 de Fevereiro (Sobre o Exame Nacional) com os artigos 23.º, 49.º, n.ºs 2 e 3, 76.º, n.º 3, alínea b) e 193.º, n.º 3, todos da CRA.
Conclui pedindo que seja julgado procedente o presente recurso e, em consequência, alterado o entendimento vertido no Acórdão recorrido, de acordo com a interpretação efectuada por esta Magna Corte Constitucional.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
A 2.ª Câmara do Tribunal Constitucional é competente para decidir o presente recurso ordinário de inconstitucionalidade, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 46.º da LPC e do n.º 2 do artigo 25.º do Regulamento Geral do Tribunal Constitucional, aprovado pela Resolução n.º 127/24, de 31 de Dezembro, do Plenário do Tribunal Constitucional.
III. LEGITIMIDADE
Nos termos do disposto na alínea b) do artigo 37.º da LPC, conjugado com o n.º 1 do artigo 165.º do Código de Processo do Contencioso Administrativo (CPCA), tem, a Recorrente, legitimidade para interpor o presente recurso ordinário de inconstitucionalidade, por ter ficado vencida no Processo n.º 22/2024, que correu os seus termos na Câmara do Cível Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal da Relação de Luanda.
IV. OBJECTO
Emerge como questão a decidir nos presentes autos a apreciação da constitucionalidade das normas contidas nos artigos 5.º, 7.º, 8.º, 11.º, 12.º e 14.º, n.º 1, alínea b) do Regulamento n.º 1/19, de 7 de Março, Regulamento de Acesso à Advocacia, bem como da totalidade das normas do Regulamento n.º 2/22, de 15 de Fevereiro (Regulamento do Exame Nacional de Acesso à Advocacia), que foram desaplicadas pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal da Relação de Luanda, no âmbito do Processo n.º 22/2024-G, com fundamento na ilegalidade e inconstitucionalidade das referidas normas.
V. APRECIANDO
Nos presentes autos, pretende-se ver sindicada a constitucionalidade das normas constantes dos artigos 5.º, 7.º, 8.º, 11.º, 12.º e 14.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento n.º 1/19, de 7 de março (Regulamento de Acesso à Advocacia), e da totalidade das normas do Regulamento n.º 2/22, de 15 de fevereiro (Regulamento do Exame Nacional de Acesso à Advocacia).
Na perspectiva da Recorrente, ao contrário do entendimento expresso na Decisão recorrida, tais normas estariam em conformidade com a Constituição, nomeadamente com os artigos 23.º, 49.º, n.ºs 2 e 3, 76.º, n.º 3, alínea b), e 193.º, n.º 3, todos da CRA.
No entanto, antes de apreciar o mérito da questão constitucional, impõe-se analisar uma questão prévia: a natureza provisória da decisão recorrida, proferida no âmbito de uma providência cautelar de suspensão de acto administrativo. Esta providência visa proteger os direitos dos Requerentes, evitando prejuízos até à decisão final da acção principal, na qual se discutirá a validade orgânico-formal e material dos mencionados regulamentos.
Como se sabe, as providências cautelares, por sua natureza, não têm como objectivo resolver definitivamente a controvérsia jurídica subjacente, mas apenas regular interinamente a situação de facto entre as partes, até à resolução final da acção principal. O seu propósito é prevenir o periculum in mora, isto é, os danos que a demora do processo principal poderia causar aos requerentes. Assim, a decisão cautelar baseia-se numa apreciação sumária, e não exaustiva, da necessidade da providência, fundamentando-se na probabilidade séria da existência do direito invocado (fumus boni juris).
Tal entendimento decorre, desde logo, do artigo 144.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo do Contencioso Administrativo, que estabelece que a suspensão de um acto administrativo só é decretada quando, ponderadas todas as circunstâncias, o tribunal conclua pela probabilidade séria da existência de justa causa.
Ora, as características típicas das providências cautelares – sumariedade, provisoriedade e instrumentalidade – tornam-na, em regra, incompactíveis com o proferimento de juízos de constitucionalidade em sede de fiscalização concreta. Por assentarem num juízo de mera verosimilhança, as providências cautelares não se revestem de força de caso julgado material, nem determinam ou condicionam a decisão a proferir na acção principal da qual dependem.
Com efeito, nas providências cautelares, as decisões sobre questões constitucionais são, por regra, provisórias, limitando-se a apreciar de forma interina a constitucionalidade de normas ou actos cuja análise será plenamente realizada no processo principal. Assim, a decisão recorrida, ao pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade dos referidos Regulamentos ou de normas conexas, emitiu um juízo provisório, próprio do procedimento cautelar.
Deste juízo não cabe, em princípio, recurso para o Tribunal Constitucional, dado que, admitir o recurso, implicaria uma de duas consequências insustentáveis: (i) o Tribunal Constitucional proferiria uma decisão igualmente provisória sobre a constitucionalidade, o que seria incompactível com o sistema de fiscalização concreta delineado na Constituição e na Lei do Processo Constitucional; ou (ii) o Tribunal Constitucional decidiria definitivamente a questão constitucional no âmbito do procedimento cautelar, comprometendo a natureza instrumental deste em relação à acção principal.
Isto é, no primeiro caso, a eventual decisão do Tribunal Constitucional sobre a constitucionalidade, no âmbito do processo cautelar, produziria efeitos jurídicos apenas de forma provisória, até à pronúncia definitiva da questão de inconstitucionalidade no processo principal. Tal decisão limitar-se-ia a formar caso julgado formal, restrito ao processo cautelar, sem vincular a apreciação do juiz no julgamento do processo principal ou do próprio Tribunal Constitucional, caso fosse chamado a pronunciar-se em recurso de constitucionalidade interposto da decisão final do processo principal. Do contrário, este possível cenário colidiria com o nosso sistema de fiscalização da constitucionalidade, que não permite decisões provisórias de inconstitucionalidade.
Por outro lado, admitir que a decisão do Tribunal Constitucional forme caso julgado material implicaria a substituição do juiz do processo principal pelo juiz constitucional. Neste caso, o julgamento pelo Tribunal Constitucional, em sede de recurso, de uma questão de inconstitucionalidade suscitada em autos de providência cautelar comprometeria a natureza instrumental destas, pois implicaria uma antecipação do juízo sobre a constitucionalidade de normas a aplicar no processo principal, juízo este que compete, em primeira linha, aos tribunais comuns, em primeira instância ou em recurso e, eventualmente, ao Tribunal Constitucional, caso seja interposto recurso de constitucionalidade da decisão final do processo principal.
A este respeito, a doutrina de Jorge Miranda é esclarecedora. Segundo o Autor, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade está reservado a decisões efectivas, que resolvam de forma definitiva a questão jurídica em causa, e não a decisões provisórias, como as resultantes de juízos perfunctórios típicos das providências cautelares, quando a questão constitucional verse sobre o direito material ou interesse substantivo em causa. Contudo, se o recurso disser respeito a normas atinentes ao próprio procedimento cautelar, o Autor admite excepção, considerando a admissibilidade do recurso (Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, Coimbra ed., 2013, p. 251).
De igual modo, Rui Medeiros, assevera que as decisões recorríveis devem ser definitivas. O recurso interposto no âmbito da providência cautelar é inadmissível devido ao carácter meramente provisório do juízo de constitucionalidade formulado, salvo se se tratar de questões de inconstitucionalidade de normas exclusivamente aplicáveis ao processo cautelar – por exemplo, normas processuais que regulem a sua tramitação –, caso em que a decisão sobre a inconstitucionalidade se restringe aos autos do processo cautelar, sendo o recurso admissível (in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, III, Coimbra, 2007, p. 765).
Ora, embora se admitam excepções, designadamente se a inconstitucionalidade versar sobre aspectos processuais do próprio procedimento cautelar, não é este o caso que se verifica nos presentes autos. A questão de inconstitucionalidade refere-se às normas dos Regulamentos da OAA, que são simultaneamente fundamento da decisão cautelar e da decisão definitiva, o que poderá comprometer a instrumentalidade da providência cautelar por intermédio de um juízo perfunctório sobre a sua (in) constitucionalidade por parte deste Tribunal.
No caso vertente, o Tribunal da Relação de Luanda, ao recusar a aplicação dos aludidos Regulamentos, com fundamento na sua inconstitucionalidade, emitiu um juízo de carácter provisório, próprio de uma providência cautelar. Tal decisão não assume a definitividade exigida para a pretensa fiscalização concreta.
Com efeito, não pode esta Corte Constitucional conhecer do objecto do presente recurso, porquanto a natureza provisória da decisão recorrida obsta à intervenção deste Tribunal. A questão da constitucionalidade deverá ser dirimida no processo principal.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Conferência, os Juízes da 2.ª Câmara do Tribunal Constitucional em: NÃO CONHECER DO PRESENTE RECURSO.
Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 4 de Setembro de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Presidente e Relator)
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo (Declarou-se Impedida)
Gilberto de Faria Magalhães
Lucas Manuel João Quilundo
Vitorino Domingos Hossi