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ACÓRDÃO N.º 1029/2025 
 
PROCESSO N.º 1310-B/2025 
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (habeas corpus) 
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 
 
I.  RELATÓRIO 
Osvaldo António Ernesto, melhor identificado nos autos, inconformado com a Decisão do  Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Luanda, que negou provimento à providência de habeas corpus registada sob o n.º 408/2025 – TRL, ao abrigo do disposto na alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) e da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), veio a esta Corte interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. 
 
Admitido, arrimou o Recorrente, em síntese, os seguintes factos: 
 
No dia 01 de Outubro de 2024 impetrou uma providência de habeas corpus por violação das alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 280.º, das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 283.º e das alíneas b), c) e f) do 290.º, todos do CPPA. 
 
O Juiz Presidente da Comarca de Belas indeferiu, discorrendo que a privação da liberdade foi efectuada no dia 11 de Maio de 2024, o Processo se encontra na fase judicial e para todo caso não condizia com a realidade dos factos, pois, naquela data os autos achavam-se na fase de instrução contraditória, isto é, transcorridos sete meses sem a pronúncia. 
 
Remetido o Processo ao Tribunal da Relação de Luanda para apreciação da Decisão que indeferiu a providência de habeas corpus este, por sua vez, resolveu julgá-lo improcedente, alegando que o mesmo é infundado e que não faz fé. 
 
Encontra-se em prisão preventiva há nove meses e alguns dias, acusado da prática dos crimes de abuso de confiança qualificada, p.p. pela alínea c) do artigo 405.º, em concurso real com o de associação criminosa, p. p. pelo n.º 1 do artigo 296.º, ambos do Código Penal Angolano e de fraude fiscal, p. p pelo n.º 1 do artigo 172.º do Código Tributário, Lei n.º 21/14, de 22 de Outubro, todas de natureza patrimonial e reparável. 
 
O fundamento apresentado pelo Juiz Desembargador Presidente é de todo imperceptível, ao aludir que os motivos expostos por si são infundados e que o Processo se encontra na fase judicial, sem que para tal demonstrasse a infundabilidade dos argumentos apresentados com base legal, já que, transcorridos oito (8) meses até a data que foi remetido o processo a juízo, há mais de nove meses sem marcação de julgamento. 
 
O Juiz Desembargador foi infeliz na sua abordagem ao indeferir o habeas corpus, pois que, no momento em que o instaurou, não havia ainda sido distribuído para fase judicial, isto é, volvidos nove meses. 
 
O Ministério Público, promoveu o deferimento do habeas corpus, por se verificar a violação dos prazos legais de prisão preventiva, previstos no n.º 1 da alínea a) do artigo 268.º e alínea b) do n.º 1, do artigo 283.º, ambos do CPPA. 
 
Na peça apresentada por si, alegou que é funcionário público e os factos reportam aos anos de 2020 a 2022, antes de fazer parte do pessoal da função pública.  É órfão de pai e mãe, tem a seu cargo filhos menores, sendo que um deles merece cuidados especiais por padecer de células falciforme com crises vasoclusivas e broncopneumonia. 
 
 
Há violação do princípio da legalidade (artigo 6.º da CRA), pois que se encontra preso preventivamente há mais de nove meses sem o despacho de pronúncia ou de marcação da audiência de julgamento, violando-se os prazos estabelecidos no artigo 283.º do CPPA. 
 
Há a violação do princípio da presunção da inocência do arguido à luz do n.º 1 do artigo 66.º da CRA, considerando que a medida de coacção que lhe foi aplicada tem limite, já que deve ser considerado inocente até ao trânsito em julgado da decisão, pelo que o silêncio por parte do Tribunal no que tange a sua prisão preventiva, depois de mais de nove meses, é como se de uma condenação se tratasse. 
 
A medida de coacção que lhe foi aplicada mostra-se desnecessária, inadequada e desproporcional atenta a fase em que o processo se encontra, o que afasta o perigo de fuga e de perturbação da investigação, sendo certo que é de fácil localização por ser funcionário público. 
 
Terminou a sua alegação pedindo que se julgue inconstitucional a Decisão recorrida por violação dos princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade e da presunção da inocência, dispostos nos artigos 6.º, 57.º e 67.º n.º 2 da Constituição da República de Angola (CRA). 
 
O processo foi à vista do Ministério Público junto desta Corte, conforme fls. 137 e seguintes. 
 
Foram colhidos os vistos legais, pelo que cumpre, agora, apreciar para decidir. 
 
II.  COMPETÊNCIA 
 
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer o presente recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do parágrafo único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC). 
 
III.  LEGITIMIDADE 
 
O Recorrente, sendo parte directa e efectivamente prejudicada pela Decisão proferida no Processo de habeas corpus, registado sob o n.º 408/2025 – TRL, que correu trâmites no Tribunal da Relação de Luanda, à luz da alínea a) do artigo 50.º da LPC, tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. 
 
IV.  OBJECTO 
 
O objecto do presente recurso consiste em aferir se o Despacho do Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Luanda, datado de 3 de Fevereiro de 2025, que negou provimento ao habeas corpus, violou ou não princípios e direitos fundamentais do Recorrente, nomeadamente, da legalidade, da proporcionalidade e da presunção da inocência, dispostos nos artigos 6.º, 57.º e n.º 2 do 67.º, todos da CRA. 
 
V.  APRECIANDO 
 
Pelo presente meio processual, pretende o Recorrente a restituição da sua liberdade física, cerceada por decisão judicial. Para o efeito, justifica que se encontra preso preventivamente há mais de nove meses sem o despacho de pronúncia ou de marcação da audiência de julgamento, configurando tal situação, excesso de prisão preventiva e, consequentemente, a violação dos princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade e da presunção da inocência, previstos nos artigos 6.º, 57.º e n.º 2 do 67.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA). 
 
Outrossim, o Recorrente arrima em sua defesa o facto de ser funcionário público, órfão de pai e mãe e que possui encargos com filhos menores, sendo que um deles padece de anemia falciforme (n.º 1, da alínea d) do artigo 280.º do CPPA). 
 
Importa analisar para aferir, no final, se assiste ou não razão ao Recorrente. 
 
(...) o interesse da comunidade numa eficaz luta contra o crime, impunha certos sacrifícios ao direito à liberdade individual. Tais sacrifícios são, porém, excepcionais e só admitidos aos casos, pelo tempo e nas condições que a lei designar (princípio da legalidade da privação da liberdade) (...). Donde se imponha dotar os cidadãos de meios idóneos de reagir contra quaisquer violações ilegais da sua liberdade (vide João Castro e Sousa, A Tramitação do Processo Penal, Coimbra Editora, 1985, p. 115). 
 
Um desses meios ou garantia de defesa da liberdade individual é a providência de habeas corpus. Ela traduz-se numa “providência processual extraordinária que se destina a pôr termo a uma prisão ilegal” (vide Eduardo Sambo, Manual de Processo Penal Angolano, p. 483). 
 
Ainda na esteira do citado autor, o habeas corpus é definido como sendo “o meio jurisdicional de defesa do direito à liberdade individual, a utilizar em caso de prisão ou detenção ilegal com carácter de urgência”. Esta providência pode ser requerida por quem tenha sido ilegalmente privado da liberdade ou por qualquer outro cidadão que esteja no gozo dos seus direitos civis e políticos. 
 
A sua base legal são os artigos 68.º da CRA e 288.º ss. do Código de Processo Penal Angolano (doravante CPPA). 
 
Da conjugação dos dispositivos legais acima citados, extrai-se que os seus pressupostos se reconduzem à: (i) prisão ilegal; (ii) a detenção ilegal; (iii) e que ambas sejam efectivas e actuais. 
 
Relativamente aos motivos da ilegalidade, podem ser diversos e estão estabelecidos no n.º 4 do artigo 290.º CPPA, nomeadamente: 
 
“1. Ser a prisão ou detenção efectuada sem mandado da autoridade competente; 
Estar excedido o prazo para entrega do arguido detido ou preso preventivamente ao magistrado competente para validação da detenção ou prisão preventiva; 
 
Manter-se a privação da liberdade para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial; 
 
Manter-se a privação da liberdade fora dos locais para este efeito autorizados por lei; 
 
 
Ter sido a privação da liberdade ordenada ou efectuada por entidade incompetente; 
 
Haver violação dos pressupostos e das condições da aplicação da prisão preventiva”. 
 
Quanto aos prazos processuais, a lei processual penal organizou-os em fases, não podendo exceder 4, 6 e 12 meses, sem a dedução da acusação, despacho de pronúncia, até à condenação em 1.ª instância, ou 18 meses sem haver condenação com trânsito em julgado, respectivamente. Não obstante, a “título excepcional”, o citado diploma legal, em face de certo circunstancialismo e mediante despacho fundamentado, admite compreensíveis excepções, alargando-se tais prazos, para 6, 8, 14 e 20, ou mais 4 meses, em caso de recurso ao Tribunal Constitucional, ou de suspensão para julgamento de questão prejudicial (n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 283.º do CPPA). 
 
Feita a incursão ao instituto do habeas corpus, importa adentrar para a situação fáctica submetida a apreciação desta Corte. 
 
Cotejados os fundamentos carreados no Acórdão recorrido, verifica-se que estes se alicerçam na premissa segundo a qual os “argumentos do Requerente são infundados, uma vez que a sua prisão é legal, e até aquela data não tinham sido violados direitos seus, porque o processo encontrava-se na fase judicial”, pelo que pugnou pela manutenção da medida de coacção pessoal infligida em 1.ª instância. 
 
Dos autos, resulta pacífico corroborar com tal justificação e Decisão, uma vez que se infere que, à data da submissão do requerimento de habeas corpus ao Tribunal da Comarca de Belas, no dia 1 de Outubro de 2024 (vide fls. 2), já a “Acusação Pública” contra o Recorrente tinha sido deduzida pelo Ministério Público junto daquele juízo (vide fls. 11 e ss.). Ou seja, tendo sido o Recorrente detido a 11 de Maio, e a respectiva acusação feita a 23 de Agosto do mesmo ano, ainda não tinha caducado o prazo de 4 meses que para o efeito, a alínea a) do artigo 283.º do CPPA estabelece, mas sim, 3 meses e 12 dias. 
 
Para efeitos de controlo dos prazos de prisão preventiva, decisivo é, como determina o artigo 283.º do CPPA, observar as fases do processo, além do momento ou datas em que o Recorrente faz apelo ou recurso ao presente expediente processual. 
 
Ainda no caso vertente, verifica-se que, ao abrigo do disposto na alínea a) dos n.ºs 1 e 4 do artigo 332.º do CPPA, o Recorrente requerera a abertura da instrução contraditória, entretanto, indeferida pelo Tribunal da 1.ª instância – Juiz de Garantias – (vide fls. 42 a 44). Ora, não se tendo realizado tal diligência instrutória, não há lugar a despacho de pronúncia ou de não pronúncia, à luz do artigo 352.º deste Código, pelo que não se pode tomar como referência estes actos processuais (instrução contraditória e despacho de pronúncia) para efeitos de computação do prazo e, consequentemente, a consideração da privação ilegal do inúmeras vezes propalado direito à liberdade física do Recorrente, baseada na alínea b) do artigo 283.º do referido Código.  
 
Entretanto, segundo informações colhidas pelo Ministério Público junto desta instância (cfr. fls. 144 e 145), o Recorrente foi julgado e condenado na pena de 16 anos de prisão no dia 30 de Abril de 2025, tendo interposto recurso desta Decisão e os autos expedidos ao Tribunal da Relação de Luanda a 27 de Agosto do mesmo ano. 
 
Portanto, não sendo embora neste momento, “actual,” a prisão preventiva que aqui se reivindica o tempo decorrido, está a coberto dos prazos estabelecidos nas alíneas c) e d) do artigo 283.º do citado diploma legal, isto é, dentro dos 12 (julgamento) e 18 meses (sem haver condenação com trânsito em julgado), não sendo, por isso, desproporcional, excessivo e nem arbitrário, ou ofensivo do princípio da presunção da inocência do arguido, o cerceio do direito fundamental aqui em pauta (n.º 2 do artigo 36.º, artigo 57.º, n.º 1 do artigo 64.º, n.º 1 do artigo 66.º e n.º 2 do artigo 67.º, todos da CRA). 
 
Por outro lado, semelhante sorte merece o argumento ancorado na alínea d) do n.º 1 do artigo 280.º do CPPA – inaplicabilidade da medida de prisão preventiva ao Recorrente –, em virtude deste ser funcionário público e o facto de ser órfão de pai e mãe e possuir encargos com descendentes menores, sendo um deles merecedor de cuidados especiais por padecer de células falciforme, com crises vasoclusivas e broncopneumonia, porquanto, a qualidade de funcionário público e ser órfão não inibem a imposição da prisão preventiva, além de que preceituam os artigos 124.º do Código Civil e 135.º, 139.º e 146.º do Código da Família que o “exercício da autoridade paternal é, em regra, um munus ou poder-dever que recai sobre os dois progenitores (pai e mãe)”, pelo que, estando o Recorrente impossibilitado de tal exercício, o encargo recai em exclusivo àquela. 
 
Em face do exposto, e a acrescer a numerosa jurisprudência desta Corte, sobre a mesma temática, vide, dentre outros, os Acórdãos n.ºs 910/2024, 940/2024, 996/2025 e 1003/2025 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao), não colhem os fundamentos de violação dos invocados princípios constitucionais e direito fundamental arguidos pelo Recorrente.  
 
Nestes termos, 
 
DECIDINDO 
 
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE. 
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional. 
 
Notifique. 
 
Tribunal Constitucional, em Luanda, 7 de Outubro de 2025. 
 
 
OS JUÍZES CONSELHEIROS 
 
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)  
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)  
Amélia Augusto Varela (Relatora)  
Carlos Alberto B. Burity da Silva 
Carlos Manuel dos Santos Teixeira  
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo  
Gilberto de Faria Magalhães 
João Carlos António Paulino  
Lucas Manuel João Quilundo  
Vitorino Domingos Hossi