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ACÓRDÃO N.º 1031/2025 
 
PROCESSO N.º 1328-D/2025 
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade 
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 
 
I.  RELATÓRIO 
 
Domingos Cumbiça Manuel, melhor identificado nos autos, inconformado com a Decisão proferida pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo,  que o condenou na pena única de 14 anos de prisão maior pela prática do crime de homicídio voluntário simples, p.p. pelo artigo 147.º do Código Penal vigente, no âmbito do Processo n.º 5583/21, veio a esta Corte, ao abrigo do disposto na alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) e da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. 
 
Admitido e notificado para o efeito, o Recorrente aduziu, resumidamente, nas suas alegações, os seguintes factos: 
 
Foi condenado pela 3.ª Secção do Tribunal da Comarca de Belas, na pena de 16 anos de prisão maior, pela prática do crime de homicídio voluntário simples. 
 
Na qualidade de agente afecto a Polícia Nacional, à data dos factos, portava uma arma de fogo para sua defesa. 
 
Volvidos alguns metros da residência do seu concunhado, por falta de destreza, puxou a arma da algibeira e retirou o carregador. 
 
Sem perceber que já havia uma bala na câmara, foi surpreendido por um disparo que saiu da sua própria arma, tendo atingido a vítima na região torácica, o que resultou na morte da mesma. 
 
Reconhece ter cometido um crime, mas em momento algum foi praticado com intenção. 
 
O Acórdão recorrido viola o princípio da legalidade, pois a norma a ser aplicada no caso em concreto devia ser o artigo 368.º do C.P. de 1886, à data dos factos, à título de convolação do crime de homicídio voluntário para homicídio involuntário. 
 
Foi acusado, pronunciado e punido na pena de 16 anos de prisão maior, pela prática de um crime de homicídio voluntário simples, nos termos do artigo 349.º do Código Penal, à data dos factos. 
 
Não se vislumbram os elementos probatórios do tipo que possam vir a preencher o crime de homicídio voluntário simples, pois nada aponta sobre a sua vontade de ter cometido um crime. 
 
Não houve dolo, visto que este pressupõe a intenção de cometer um crime. 
 
 Um dos elementos do tipo, para imputação da responsabilidade criminal, no crime de homicídio voluntário simples, é o elemento volitivo, que resulta da vontade de cometer o crime. 
 
Não há quaisquer dúvidas de que agiu com falta de destreza, descuido, portanto, negligência inconsciente. 
 
 O Juiz a quo não demonstrou, na leitura do Acórdão, qualquer intencionalidade sua para assim o condenar no tipo que fora acusado e pronunciado, mesmo assim condenou na pena de 14 anos de prisão maior. 
 
 A sua conduta é condenável em qualquer sociedade, a falta de destreza, motivada do espírito de embriaguez, esta última que não foi com intenção de cometer crime, mas não beneficiou como atenuante. 
 
 Entende que o crime que foi acusado e pronunciado, não colhe, pelo que em sede de alegações orais, pediu a convolação do crime de homicídio simples para o crime de homicídio involuntário, nos termos do artigo 368.º do Código Penal, à data dos factos. 
Termina requerendo que o Acórdão recorrido seja declarado inconstitucional, por violação dos artigos 2.º, 175.º, 177.º e 179.º, todos da CRA e, em consequência, absolvido do crime de homicídio voluntário simples, e responsabilizado pelo crime de homicídio involuntário, nos termos do artigo 368.º, vigente à data dos factos, à título de convolação. 
O Processo foi à vista do Ministério Público junto desta Corte.  
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir. 
 
II.  COMPETÊNCIA 
 
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC). 
 
III.  LEGITIMIDADE 
 
O Recorrente, sendo parte directa e efectivamente prejudicada pela decisão proferida no Processo n.º 5583/2021, que tramitou na 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, à luz da alínea a) do artigo 50.º da LPC, possui legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. 
 
IV.  OBJECTO  
 
O objecto do presente recurso consiste em aferir se o Acórdão prolatado pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, datado de 31 de Agosto de 2023, que condenou o Recorrente na pena de 14 anos de prisão maior, dois milhões de kwanzas de indemnização aos familiares da vítima, e cem mil kwanzas de taxa de justiça, viola ou não o princípio da legalidade ínsito nos artigos 2.º, 175.º, 177.º e 179.º, todos da CRA. 
 
V.  APRECIANDO 
 
Pelo presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, veio o Recorrente requerer a fiscalização da constitucionalidade do Acórdão recorrido que, por aplicação da lei mais favorável, o condenou na pena de 14 anos de prisão maior, kz. 2 000 000, 00 (dois milhões de Kwanzas) de indemnização à família da vítima, e kz. 100 000,00 (cem mil kwanzas) de taxa de justiça, pela prática do crime de homicídio voluntário simples, previsto e punível pelo artigo 349.º do vetusto Código Penal de 1886. 
 
Para tanto, assentou, resumidamente, a sua argumentação nos seguintes fundamentos de facto e de direito: (i) não agiu com dolo, mas sim com negligência inconsciente, visto que não teve qualquer intenção de tirar a vida da vítima, tendo ocorrido por mero acidente; (ii) a sua conduta é subsumível ao crime de homicídio involuntário, p. p pelo artigo 368.º do Código Penal de 1886.º, e não ao voluntário, pelo qual fora condenado; (iii) ao ter sido condenado como foi, isto é, no crime de homicídio voluntário, o Tribunal violou o princípio da legalidade disposto nos artigos 2.º, 175.º, 177.º e 179.º da CRA. 
Importa analisar para aferir, no final, se assiste ou não razão ao Recorrente. 
As questões suscitadas encaminham para um exercício de ponderação que explique a relação entre os princípios da legalidade (artigo 6.º) e do Estado de Direito (artigo 2.º da CRA). Ao contrário de vários outros princípios estruturantes da CRA, como instrumento normativo fundamental, o princípio do Estado de direito faz parte da sua essência e sobrevivência.  Ou seja, não existe Constituição sem os valores do direito, concretizados por meio da legalidade do Estado, nas suas dimensões, organizativa e funcional. Neste sentido, a legalidade expressa-se em leis e pretende ordenar a conduta dos agentes do Estado, as várias actividades subjacentes e a organização da sociedade, em geral. 
Por essa razão, Raúl Araújo considera que a lei é o instrumento mais apropriado e seguro para definir os regimes de certas matérias, sobretudo dos direitos fundamentais e suas limitações (Introdução ao Direito Constitucional, CEDP/UAN, 2018, p. 110). E mais, na sua dimensão funcional, o princípio da legalidade obriga a que no exercício de funções públicas – como é a actividade jurisdicional - as normas jurídicas sejam aplicadas de forma correcta, justa e consistente (vide Jónatas E. M. Machado, Paulo Nogueira da Costa e Esteves Carlos Hilário, Direito Constitucional Angolano, 5.ª ed., p. 75).   
No âmbito do direito penal, o princípio da legalidade, exprime-se na tipificação dos crimes, na previsão das penas e na determinação de circunstâncias restritivas, agravantes ou atenuantes da liberdade ou da qualificação da conduta do agente.  
No entanto, apesar do carácter impositivo que se possa extrair de várias dimensões do princípio da legalidade na actividade jurisdicional, nos processos penais, é importante referir que a liberdade do Juiz na apreciação e valoração dos factos está igualmente salvaguardada – n.ºs 1 e 3 do art.º 179.º da CRA.   
O princípio do Estado de Direito pressupõe a legalidade da função jurisdicional. De acordo com o qual, os tribunais carecem de base constitucional e legal para a sua existência e organização. Este princípio implica, naturalmente, que os tribunais podem em si mesmos violar normas constitucionais e legais, devendo as suas decisões serem avaliadas do ponto de vista da sua conformidade com a Constituição e com as demais normas jurídicas relevantes (…). O princípio do Estado de Direito, requer uma aplicação correcta, justa e consistente das normas jurídicas (vide Jónatas E. M. Machado, Paulo Nogueira da Costa e Esteves Carlos Hilário, Direito Constitucional Angolano, 5.ª ed., p. 75). 
Entrando para o caso dos autos, dir-se-á que a tese do Recorrente se afigura insufragável, porquanto, afastada da realidade fáctica, probatória e jurídica, se não  
veja-se: 
O crime de homicídio voluntário simples de que foi acusado e pronunciado, fazia carreira no artigo 349.º do Código Penal de 1886. De acordo com esta norma, “aquele que voluntariamente matar outrem, será condenado na pena de 16 a 20 anos de prisão maior”.  
No Código Penal vigente, o mesmo crime encontra-se previsto no artigo 147.º, que estabelece uma penalidade de 14 a 20 anos de prisão. 
Do Acórdão recorrido extrai-se, a fl. 245, que “(…) o arguido incorreu num crime de homicídio voluntário simples p.p. pelo artigo 349.º do Código Penal, a título de dolo eventual, porquanto, embora ter alegado que efectuou o disparo de forma acidental, tendo consciência da letalidade do instrumento utilizado (arma), ao fazê-lo direccionando a arma ao peito da vítima depois de manipulá-la, sabia que poderia alvejar mortalmente o desditoso, mesmo assim não se absteve, conformando-se com o resultado que produziu”.  
Assim, esta Corte conclui que o Acórdão recorrido não incorreu em qualquer ilegalidade que o maculasse com a pretensa inconstitucionalidade. 
Relativamente a sua pretensão de absolvição do crime de homicídio voluntário simples e responsabilização pelo crime de homicídio involuntário, nos termos do artigo 368.º do Código Penal, à título de convolação, fica prejudicada pelas razões acima enunciadas.  
Ademais, verifica-se que, com o pedido formulado, o Recorrente prendia uma reapreciação dos factos, objecto não circunscrito nas competências jurídico-constitucionais desta Corte, na medida em que, conforme o disposto nos artigos 181.º da CRA e 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, ao Tribunal Constitucional compete, em geral, administrar a justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional, nos termos da Constituição e da Lei, e não conhecer directamente do mérito dos litígios ou julgamento dos factos, cuja vocação a Carta Magna e a legislação ordinária, reservam aos tribunais da jurisdição comum (n.º 2 do artigo 176.º da CRA e artigos 2 e 3 da Lei n.º 29/22, de 29 de Agosto – Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum). 
Nestes termos, 
DECIDINDO 
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE. 
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 03/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC). 
Notifique. 
 
Tribunal Constitucional, em Luanda, 7 de Outubro de 2025. 
OS JUÍZES CONSELHEIROS 
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)  
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)  
Amélia Augusto Varela (Relatora)  
Carlos Alberto B. Burity da Silva 
Carlos Manuel dos Santos Teixeira  
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo  
Gilberto de Faria Magalhães 
João Carlos António Paulino  
Lucas Manuel João Quilundo  
Vitorino Domingos Hossi